Conflito federativo

Conflito entre Rio de Janeiro e União ameaça regime fiscal do pré-sal

Regime fiscal e contratual instituído após amplo debate no Congresso Nacional pode ser impactado com um novo conflito federativo entre estado do Rio e União, escreve Leonardo Costa da Fonseca

Conflito federativo entre estado do Rio de Janeiro e União ameaça regime fiscal do pré-sal, alerta Leonardo Costa da Fonseca [na imagem], advogado e sócio da área de energia do escritório Advocacia Bettiol (Foto Divulgação)
Leonardo Costa da Fonseca é advogado e sócio da área de energia do escritório Advocacia Bettiol | Foto Divulgação

O estado do Rio de Janeiro é o ente da federação mais beneficiado no Brasil com o pagamento das participações governamentais advindas da exploração de petróleo e gás.

As estimativas indicam uma injeção até o final do ano de 2024 de R$ 25 bilhões exclusivamente nas contas do Tesouro Estadual, fruto dos royalties e participações especiais, fortalecendo sua economia.

Apesar dessa injeção financeira expressiva, os gestores públicos e parlamentares estaduais enfrentam um dilema e uma profunda contradição.

Há um antigo e conhecido déficit nas contas públicas, particularmente no pagamento dos salários dos aposentados e pensionistas.

Na última década, para tentar contornar esse problema, as receitas provenientes dos royalties e das participações especiais foram securitizadas em uma operação financeira internacional.

Chamada de operação Delaware, a operação envolveu a criação de uma sociedade de propósito específico no exterior para viabilizar a emissão de bonds (títulos de dívida) que foram adquiridos por investidores estrangeiros.

Assim, o Rio de Janeiro recebeu de forma antecipada uma quantia financeira de cerca de R$ 8 bilhões, que na época foi usada para cobrir o déficit da autarquia denominada RioPrevidência, que faz a gestão do sistema previdenciário estadual, em troca de remunerar de maneira expressiva os investidores que adquiriram os referidos títulos.

A operação teve sérias repercussões políticas, com investigações ainda em curso no Tribunal de Contas do Estado, Poder Judiciário e Ministério Público. O Rio de Janeiro, ainda hoje, desembolsa valores vultosos para honrar as obrigações financeiras pactuadas, comprometendo grande parcela da receita oriunda dos royalties e participações até 2029 com tais pagamentos.

Além disso, parte desses recursos gerados pela indústria de O&G são destinados ao RioPrevidência para cobrir o déficit recorrente nas despesas com servidores inativos e pensionistas.

De acordo com dados do Portal da Transparência, até outubro de 2024, o Tesouro Estadual recebeu cerca de R$ 18 bilhões em royalties e participações, dos quais 80% foram repassados ao RioPrevidência, com o restante sendo destinado ao Fundo Estadual de Conservação Ambiental, Fundo Estadual de Segurança Pública e Desenvolvimento Social e ao Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público.

Em setembro de 2024, a questão ganhou mais atenção da opinião pública, com a edição do decreto estadual 49.292/2024, que flexibilizou os repasses dos recursos decorrentes de royalties e participações realizados pelo Tesouro Estadual ao RioPrevidência.

A oposição parlamentar ao Governo ingressou com medida na Justiça Estadual questionando a legalidade do ato, mas o pedido liminar foi indeferido, e, agora, buscam a sustação do ato executivo por meio de Decreto Legislativo para garantir o fluxo recorrente de recursos para cobrir todas as despesas com o pagamento da folha servidores inativos e pensionistas.

A situação atual evidência a contradição enfrentada pelo estado: a população, especialmente a mais necessitada, não consegue usufruir plenamente dos benefícios decorrentes da extração de óleo e gás natural.

A maioria dos recursos é destinada à cobertura de déficits, e não – como deveria ser – para reforçar investimentos diretos em saúde, segurança, educação e infraestrutura, áreas onde o Estado enfrenta dificuldades crônicas.

Por outro lado, há quem diga que, sem esses recursos, a situação financeira do Rio de Janeiro seria ainda pior.

Isso se deve ao fato de que, sem a injeção bilionária dos royalties e participações, o estado não teria receitas suficientes e, portanto, condições de custear todas as suas despesas, o que agravaria ainda mais sua crise econômica e sua capacidade de quitar os salários dos seus servidores inativos e pensionistas, entre outros serviços públicos.

Além disso, o Rio de Janeiro e outros estados produtores são beneficiados, desde 2013, com uma decisão liminar concedida pela ministra Cármen Lúcia, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4917, que suspendeu os efeitos da lei federal 12.734/2012, a qual alterou a forma de distribuição dos royalties e participações especiais.

Foi permitindo, portanto, que os Estados produtores não precisam repartir tais valores com municípios não confrontantes, como determinado na aludida lei, e garantido o recebimento das participações governamentais nos patamares atuais.

O dilema do Rio de Janeiro também se reflete na formulação da política tributária do Estado e na sua relação com os contribuintes de diferentes segmentos.

Com uma recuperação econômica ainda tímida e um déficit persistente, a indústria de petróleo e gás, especialmente o setor de upstream, se torna alvo de frequentes iniciativas com vieses arrecadatórios.

E, pior, embora essa indústria seja uma grande geradora de riqueza, com a arrecadação de tributos, geração de empregos e investimentos em infraestrutura, o estado frequentemente impõe novas obrigações tributárias ao segmento de upstream e, nos últimos anos, algumas iniciativas do fisco estadual causaram grande ruído no setor.

Cobrança de ICMS na transferência do excedente em óleo

A atual e, talvez, a que causará mais impacto nos próximos anos, foi a elaboração de uma tese jurídica pela Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro no sentido de que a transferência de excedente em óleo do contratado – no caso o operador do campo – para a União, no regime de partilha da produção, configura circulação onerosa de mercadoria, razão pela qual incide o conhecido Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) em favor do estado.

Em resumo, a modalidade contratual mencionada acima foi criada após a descoberta das vastas reservas de petróleo no pré-sal, tendo sido instituída pela lei federal 12.351/2010 após amplo debate no Congresso Nacional.

Nesse regime, a União, como proprietária dos recursos naturais, concede à operadora o direito de explorar e produzir o petróleo, ficando estabelecido que, após o pagamento dos custos da operação (conhecido como custo em óleo), o excedente de óleo é repartido entre a União e o operador, conforme as condições estabelecidas no contrato de partilha e edital das rodadas promovidas pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

Na hipótese, o estado defende que a lei federal 12.351/2010 seria inconstitucional e foi editada pela União com o propósito de frustrar os estados e municípios de receberem as participações especiais, visto que concentrou nesse ente uma expressiva parcela das participações governamentais recebidas, deixando para eles apenas o recebimento dos royalties.

Ignorando a sistemática adotada pelo legislador e no modelo contratual do regime de partilha, afirmou o estado que na modalidade adotada existiria uma espécie de atividade mercantil entre o operador e a União quando da transferência do óleo do ponto de medição para o ponto de partilha, constituindo fato gerador do referido tributo estadual.

Diante dessa orientação jurídica, e mesmo sem respaldo de uma decisão do Supremo sobre a matéria, a Secretaria Estadual de Fazenda seguiu com o lançamento tributário do ICMS supostamente não pago pelos operadores dos campos do pré-sal nos últimos anos.

Foi instaurado no ano de 2023 um contencioso administrativo fiscal bilionário entre a Petrobras e o Fisco Estadual para discutir justamente a legalidade da cobrança do ICMS.

Conforme já sinalizado pela companhia ao mercado, foi lançada uma provisão no valor de R$ 1,6 bilhões (setembro/2024).

O impasse não está limitado à Petrobras. Existem dezenas de contratos assinados no polígono do pré-sal com outros operadores internacionais em fase de produção que podem sofrer (ou já sofreram) autuações fiscais com a nova interpretação adotada pelo Estado, que optou por ignorar um regime legal em vigor por mais de uma década.

Viés arrecadatório do estado do Rio

Cabe ainda chamar a atenção para o fato de que, além de buscar o recolhimento dos tributos devidos nos últimos anos, o Estado poderá exigir o pagamento de ICMS nas operações futuras, ou seja, quando o excedente de óleo for repartido entre o operador e União, conforme obrigação legal e contratual.

Pela preservação da segurança jurídica no segmento de O&G, deve-se considerar a possibilidade da União, ou os operadores de forma organizada, adotarem uma postura mais combativa junto ao Rio de Janeiro e, com isso, questionarem, ainda no âmbito da Justiça Federal ou Supremo Tribunal Federal (STF), o entendimento adotado pelo Fisco Estadual de desconsiderar a presunção de constitucionalidade de uma lei federal aprovada após amplo debate público que contou com a presença de parlamentares representando os interesses do Estado do Rio de Janeiro no Congresso Nacional.

A preocupação da indústria com o viés arrecadatório do estado do Rio de Janeiro e a resistência ao contrato de partilha da produção, remonta à rodada zero de licitação dos blocos do pré-sal.

Por exemplo, na contribuição encaminhada durante a consulta pública promovida pela ANP, o Instituto Brasileiro de Petróleo chamou atenção para o fato de que seria adequado melhor definir o conceito de ponto de medição no contrato, a fim de evitar discussões futuras sobre a transferência de titularidade entre os entes federativos.

Da mesma forma, a ExxonMobil, na contribuição apresentada na consulta e audiência pública n15/2017, que englobava a 2ª e 3ª rodada de licitação dos blocos do pré-sal, sugeriu a inclusão de uma cláusula no contrato de partilha de produção uma cláusula ainda mais protetiva ao investidor, com referência expressa ao direito de pleitear o reequilíbrio econômico-financeiro quando os regimes fiscais do contrato forem alterados, muito em linha com as recomendações difundidas pela Association of International Energy Negotiators.

Ambas as contribuições não foram aceitas naquele momento pela ANP, tampouco foram adequadamente abordadas nos estudos que antecederam a realização da nova consulta e audiência pública 06/2024, tendo ocorrido ao longo dos anos alguns ajustes redacionais apenas para melhor abordar ponto relacionado à propriedade do óleo.

Considerando os novos blocos do pré-sal disponibilizados e a expectativa de realização da sessão pública de oferta até o final do primeiro trimestre de 2025, é muito provável que a preocupação quanto à estabilidade dos regimes fiscais seja novamente discutida na fase de apresentação de contribuições na consulta e audiência pública 06/2024 aberta pela ANP, cuja audiência ocorrerá ainda em dezembro de 2024.

Isso porque, até a efetiva publicação do edital e diante do conflito federativo (ainda velado) entre União e o estado do Rio de Janeiro, os interessados em adquirir blocos exploratórios precisam entender se o regime fiscal atualmente em vigor pode ser tornar um componente de risco capaz de prejudicar o retorno do investimento a ser realizado.

Ou seja, entender se é o caso, numa visão mais conservadora, de modelar o valuation do projeto considerando a carga adicional de ICMS cobrando pelo estado do Rio de Janeiro quando o óleo é repartido entre operador e União.

A tese jurídica adotada pelo Rio de Janeiro confronta com as premissas adotadas pelas empresas, muitas delas internacionais, ao seguirem com investimentos no polígono do pré-sal.

Apesar da questão estar em discussão administrativa e ainda existir a possibilidade de uma judicialização, se no futuro – por mais absurdo que seja – for confirmada a atuação bilionária lavrada em desfavor da Petrobras pela Secretaria Estadual de Fazenda, boa parcela das margens previstas nas operações nos campos do pré-sal serão direcionadas para pagamento de tributos adicionais ao Fisco Estadual.

Obviamente tais dispêndios não estavam previstos nos planos de negócio preparados meticulosamente pelas grandes petroleiras globais que operam no pré-sal.

O professor Owen Anderson e outros estudiosos do setor, na obra International Petroleum Law and Transactions, reforçam que a estabilidade do regime jurídico e fiscal são pilares importantes para que uma nação que recebe investimentos de uma indústria global não crie assimetria de informações.

Isso porque, as dúvidas ou incertezas contribuem diretamente para criar uma percepção de risco elevada quando, por exemplo, se considera seguir com investimentos em geografias como o Brasil.

Muito embora imbuído de um espírito legítimo de questionar no Judiciário atos do Poder Legislativo Federal, o Estado do Rio de Janeiro tem historicamente tentado criar diferentes formas de desestabilizar os regimes fiscais e contratuais customizados para o polígono do pré-sal e áreas estratégicas.

Por exemplo, quando da criação do modelo contratual de cessão onerosa, instituído pela lei federal 12.276/2010, o estado do Rio de Janeiro se apressou para ajuizar uma ADI 4492 com o objetivo de suspender os efeitos da referida lei e asseverou que a medida frustrou a expectativa de receita do Tesouro Estadual, visto que receberia apenas os royalties e não mais a participação especial.

Alguns anos antes, com a edição das leis estaduais 4.117/2003 (Lei Noel) e 7.183/2015 (Nova Lei Noel), as operações de extração de petróleo e gás ficaram sujeitas à incidência de ICMS.

Ambas as leis, vale relembrar, foram devidamente questionadas por representantes da indústria nas ADIs 3019 e 5481, respectivamente, tendo sido reconhecida no STF a inconstitucionalidade da tentativa do Estado de realizar cobrança de tributo na atividade de upstream.

Mesma conduta foi percebida quando da edição da lei que criou a denominada Taxa de Controle, Monitoramento e Fiscalização das Atividades de Exploração e Produção de Petróleo e Gás, oportunamente julgada inconstitucional pelo STF quando da apreciação da ADI 5480.

Não obstante, passado algum tempo depois do julgamento desfavorável, o estado reeditou a referida taxa publicando a lei 10.254/2023, com alguns pequenos aperfeiçoamentos, o que causou inquestionável incômodo a todos os operadores que atuam no Rio de Janeiro.

Por ora, o estado não regulamentou a cobrança dela, mas já sinalizou que fará ajustes na lei com o propósito de evitar maiores judicializações.

O que se nota, considerando o histórico não muito distante da evolução da indústria de óleo e gás, é que a população do Rio de Janeiro não usufrui integralmente das vultosas riquezas geradas com os royalties e participações especiais.

Por outro lado, necessário reconhecer que sem essas receitas o Estado estaria em condições financeiras ainda mais fragilizadas, lembrando ainda que vigora o Regime de Recuperação Fiscal que, entre outros, contempla uma dívida do Rio de Janeiro com a União no montante de aproximadamente R$ 200 bilhões.

Insegurança na oferta de blocos no pré-sal

O histórico da política tributária e a relação com o contribuinte configura uma contradição, visto que, ao mesmo tempo que o Estado é beneficiado com a pujança das riquezas geradas pela atividade de upstream, tem se demonstrado um detrator dos regimes contratuais e fiscais.

Tais parâmetros fiscais, contratuais e legais servem de base para as empresas seguirem com os expressivos investimentos de exploração e produção no polígono do pré-sal e áreas estratégicas.

O impasse deflagrado pelo estado do Rio de Janeiro com a intenção de exigir a cobrança de ICMS quando o óleo é repartido pelo operador com a União é mais um exemplo do viés arrecadatório e um incentivo negativo.

E, pior, a investida ocorre momentos depois do estado sofrer derrotas no STF como a discussão envolvendo a Lei Noel – que cobrava ICMS da atividade de extração – e a norma que criou a Taxa de Fiscalização Ambiental – devida também pelos operadores que exercem atividades offshore.

Boa parte dos blocos inseridos na consulta e audiência pública 06/2024 aberta pela ANP, cuja audiência pública está agendada para dezembro de 2024, são áreas que confrontam com o estado do Rio de Janeiro.

Necessário acompanhar a desdobramento do tema, e se os blocos no pré-sal e áreas estratégicas com sessão de oferta prevista para 2025 serão menos atrativos para investidores avessos a riscos.

Muito embora a gestão de risco seja algo muito estudado e difundido na indústria de O&G, pode ser que não exista demasiado apetite ou paciência para conviver por anos de operação com um contencioso fiscal bilionário e, ainda, acompanhar mais um capítulo do conflito federativo (mesmo que velado) entre Estado do Rio de Janeiro e a União.

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.


Leonardo Costa da Fonseca é advogado e sócio da área de energia do escritório Advocacia Bettiol.