RIO — As propostas para Lei Geral do Licenciamento Ambiental vão desencadear questionamentos no Supremo Tribunal Federal (STF) se forem aprovadas como estão nos relatórios em discussão no Senado Federal. O projeto avançou e pode ser aprovado nas comissões esta semana.
Há uma simplificação dos ritos para infraestrutura de petróleo e energia. E dispensa de licenças a produção agropecuária, o que mobiliza o setor à favor das mudanças. Também acaba por envolver novas energias, como a produção de hidrogênio e instalação de data centers, em razão do alto consumo de recursos hídricos.
Há um rito especial, com dois relatórios nas comissões de Meio Ambiente, relatado por Confúcio Moura (MDB/RO), e de Agricultura, com a ex-ministra da área, Tereza Cristina (PP/MS). Ambos publicaram os relatórios este mês, marcando o avanço do texto, após ficar quase dois anos parado.
Em resposta, o Observatório do Clima publicou um documento na sexta (16/5) que cita o termo “inconstitucionalidade” doze vezes ao longo de suas mais de 100 páginas (veja a íntegra em .pdf), em que é feita uma avaliação de cada artigo do PL 2159/2021.
“[Na forma atual, o projeto] está repleto de inconstitucionalidades, promovendo a fragmentação normativa entre estados e municípios e criando um cenário de insegurança jurídica que tende a gerar, como um dos seus principais efeitos, uma enxurrada de judicializações”, diz a entidade.
O texto permite, por exemplo, a dispensa da licença de operação para linhas de transmissão, subestações e redes fibra óptica, gasodutos, oleodutos, minerodutos, além de rodovias e ferrovias. As empresas poderão pedir que condicionantes sejam estabelecidas na etapa anterior, de construção, eliminando uma etapa do licenciamento.
- Hoje, os licenciamentos ocorrem em três fases (trifásicos), quando são solicitadas licenças prévias, de instalação e de operação. Em cada uma, são apresentados estudos de impactos, estabelecidas e fiscalizadas condicionantes.
- Projetos de grande porte, como linhas de transmissão e gasodutos interestaduais são licenciados pelo Ibama.
“O texto fala que você poderia passar direto — depois da licença de instalação — para a operação. Isso é bastante complicado. Imagine uma dutovia funcionando sem o órgão licenciador verificar se os requisitos técnicos foram cumpridos”, afirma Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima.
Há ainda duas inovações nos relatórios do Senado: obras em projetos em operação são isentos de licenciamento quando não houver “incremento” dos impactos ambientais; e há um enquadramento nas licenças por adesão e compromisso (LAC) de serviços de dragagem e manutenção de rodovias.
“A impressão que dá é que eles querem que o próprio responsável técnico pelo empreendimento, da parte do empreendedor, já saia liberando tudo isso. Os textos que fazem essas simplificações são bastante problemáticos”, diz Araújo.
A diretora de Políticas Públicas da Fundação SOS Mata Atlântica, Malu Ribeiro, chama atenção para os impactos diretos que projetos de infraestrutura como linhões de transmissão têm causado na Mata Atlântica, e levado à perda de florestas maduras que representam menos de 14% da cobertura original do bioma.
Segundo ela, a aprovação do novo marco legal pode ampliar ainda mais essa pressão sobre ecossistemas frágeis.
“Esse projeto de lei afasta o parecer e não torna mais vinculante, por exemplo, o posicionamento do ICMBio, de órgãos ambientais, que esses traçados tendem a cortar áreas protegidas. É um absurdo que não tenha um EIA-RIMA, porque o estudo de impacto ambiental vai trazer no mínimo três alternativas de traçado”, pontuou.
Ela cita o exemplo do gasoduto Bolívia-Brasil, que passou por um processo completo de licenciamento, com EIA-RIMA e audiências públicas, sem impedir a realização da obra. Segundo Ribeiro, é injustificável que agora se queira eliminar essas etapas.
“Isso pode trazer, inclusive, riscos tanto de blackouts, como de incêndios, explosões. Tragédias anunciadas”.
A Lei Geral do Licenciamento Ambiental é uma pauta prioritária do Fórum de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Setor Elétrico (FMASE), que congrega 13 associações de geração, transmissão, distribuição, comercialização e consumo de energia.
A diretora socioambiental da Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia (Abiape) e coordenadora do grupo de licenciamento ambiental do FMASE, Julia Sagaz, afirma que o projeto “traz segurança jurídica para quem precisa de uma licença”.
A entidade é defensora da simplificação para as infraestruturas lineares, sob o argumento de que a licença de instalação já contempla os maiores impactos dos projetos.
Sobre a limitação das condicionantes, prevista na nova lei, Sagaz destacou que elas devem ter relação direta com o empreendimento. Como exemplo de medida desconexa, ela citou uma exigência imposta à hidrelétrica de Belo Monte: “Foi exigido a construção de um estádio de futebol, e nem existe um time por lá”.
Licenciamento ambiental da exploração de petróleo e gás
O Observatório do Clima vê risco de o projeto interferir no licenciamento de óleo e gás ao simplificar o escopo das licenças que são emitidas com apenas uma fase de licenciamento, por meio da Licença Ambiental Única (LAU).
É o caso da exploração no offshore, feita mediante emissão de licença de exploração. Seria como liberar o projeto da Petrobras no FZA-M-59 (bloco 59), da Foz do Amazonas, sem estudos de impacto ambiental (EIA). “Estará configurada inconstitucionalidade”, diz a entidade.
Araújo, que foi presidente do Ibama, defendeu em coletiva com jornalistas a inclusão de dispositivos sobre as avaliações ambientais estratégicas (AAE), instrumentos previstos na legislação vigente, mas que não são aplicados.
No caso do setor de óleo e gás, há previsão de realização de estudos por bacias sedimentares — dois foram contratados e não concluídos. E ainda não há planos concretos para a Foz do Amazonas.
Além das áreas contratadas, onde a Petrobras pretende perfurar, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) vai realizar em 17 de junho um leilão com mais 47 blocos.
“A lei de licenciamento deveria tratar de avaliação ambiental estratégica. E acho um tiro no pé o empresariado não querer, porque eles tratam como se fosse mais uma burocracia”, diz Suely Araújo.
“A tendência é que uma avaliação regional ambiental bem feita facilite [o licenciamento], porque já seriam afastados [locais] onde não pode haver determinados tipos de empreendimento”.
Hidrogênio e data centers têm alto consumo de água
A diretora da Fundação SOS Mata Atlântica, Malu Ribeiro, chama atenção para o risco de se ignorar a relação entre o licenciamento e a disponibilidade hídrica das regiões, com a desvinculação entre a licença e a outorga do uso de água, por exemplo.
“A outorga é o instrumento que faz o elo entre a Política Nacional de Recursos Hídricos e a Política Nacional do Meio Ambiente. É ele que determina quanto e como se pode usar a água numa determinada bacia, e em que condição essa água pode ser devolvida ao ambiente”, explica.
Segundo ela, há casos no país em que a instalação de termelétricas foi barrada por conta do estresse hídrico, como nas bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, no interior de São Paulo, onde há muita demanda por água, e ao mesmo tempo águas de baixa qualidade, por conta da poluição de rios.
“O comitê das bacias indicou que não havia como conceder outorga, e o licenciador negou o pedido. Mas se o licenciamento for concedido antes, quem vai ter coragem técnica ou política de negar a outorga depois?”, questiona.
É uma questão diretamente ligada ao aumento da produção de hidrogênio de baixo carbono — a rota verde (energia renovável e eletrólise) consome menos que outras alternativas.
Malu também alerta para o impacto do uso da água em data centers, que muitas vezes devolvem ao meio hídrico uma água aquecida, com consequências graves para os ecossistemas aquáticos.
“Nos Estados Unidos,por exemplo, um dos graves problemas foi relacionado à temperatura, porque a água voltou para o ambiente. Isso mata peixes, mata todo o ecossistema, impede diversos usos, aumenta a temperatura da água, leva à eutrofização da água”.
Ela lembra ainda que as termelétricas utilizam grandes volumes de água para refrigeração, convertendo-a em vapor, que se perde no ambiente — sem retorno ao ciclo hídrico. “Não podemos tratar a outorga como um carimbo burocrático. É um instrumento vital para a sustentabilidade hídrica do país”.
O diretor-adjunto do Instituto Democracia e Sustentabilidade, Marcos Woortmann, cita o caso da termelétrica que busca licenciamento para operar com captação de água em um córrego do Distrito Federal.
“Tem uma termelétrica que está buscando, nesse momento, ser licenciada, cujos impactos são absolutamente transparentes, são visíveis e existe uma pressão muito forte para ter socorro na capital do país, na capital da República”
Segundo ele, é justamente o processo de licenciamento ambiental que permite a participação da sociedade civil em apontar riscos.
“Estamos falando de impactos em cidades, estamos falando de impactos diretos em escolas, tudo isso mensurado, apresentado, inclusive, em audiência pública (…) Agora, quem que faz essas ponderações, quem que traz essas preocupações acerca das consequências é a sociedade civil, em grande medida”.