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PPSA será privatizada? Perguntas e (algumas) respostas sobre o plano para liquidar o óleo da partilha

Projeto de lei que autoriza a venda antecipada da União na produção dos contratos de partilha começa a tramitar na Câmara

A PPSA será privatizada? Entenda o plano para liquidar o óleo da partilha. Na imagem, ministro de Minas e Energia, Adolfo Sachsida, e o ministro da Economia, Paulo Guedes (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
O ministro de Minas e Energia, Adolfo Sachsida, e o ministro da Economia, Paulo Guedes, incluíram incluíram, em maio, a Petrobras e a PPSA no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), para início dos estudos de privatização das “empresas e dos ativos sob a sua gestão” (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

BRASÍLIA e RIO — O projeto de lei nº 1.583/2022, apresentado pelo governo com o objetivo de autorizar a venda antecipada do petróleo e gás natural que cabe à União nos contratos de partilha, começou a tramitar na Câmara dos Deputados. Alexis Fonteyne (Novo/SP) — autor de um dos textos que acabam com o regime de partilha de produção — assumiu a relatoria do PL esta semana. A matéria pode, agora, começar a debatida na Comissão de Desenvolvimento Econômico.

De cara, uma das questões sem respostas é se, a três meses da disputa eleitoral, o Congresso vai aprovar o plano de liquidação do óleo e gás da União. As eleições deste ano colocam frente a frente, justamente, o presidente Jair Bolsonaro (PL), cujo governo é o autor da proposta; e Lula (PT) – o pai do regime de partilha.

Parlamentares ouvidos pela agência epbr esta semana deixam claro que, às vésperas do início do recesso do Legislativo, a partir de 14 de julho, o PL 1.583/2022 nem sequer começou a ser discutido.

E quando começar? Lideranças do próprio governo reconhecem que o centrão pode tentar carimbar o dinheiro da operação — o que leva a uma outra pergunta: o que será feito com as centenas de bilhões de reais que a equipe econômica de Bolsonaro promete levantar com a venda futura do óleo?

O governo encaminhou o texto para a Câmara em junho. O PL abre caminho para realização de leilões, por meio do qual uma empresa ou consórcio poderá ocupar o lugar da Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA) nos contratos e, assim, assumir os direitos da União pelo excedente em óleo (ou óleo lucro) da produção.

Para ajudar a clarear o debate sobre o assunto, a agência epbr consultou dois advogados – Ali Hage, sócio da área de Petróleo, Gás e Biocombustíveis do Veirano Advogados, e Manuela Dana, sócia da área de energia do Tocantins & Pacheco Advogado – e apresenta, a seguir, as principais perguntas e respostas (e algumas perguntas ainda sem respostas) sobre a venda antecipada do petróleo da União.

Cobrimos por aqui

1) Afinal, a PPSA vai ser privatizada?

Não exatamente. O que está em jogo não se trata da venda do controle da estatal, criada em 2013 para representar a União na gestão dos contratos de partilha. E sim da venda antecipada do petróleo e gás natural ao qual a União tem direito nesses contratos.

A proposta levanta muitas dúvidas sobre qual será o futuro da PPSA — uma vez que ela perderá a função de representar a União nos consórcios que operam ativos contratados sob o regime de partilha.

A estatal possui 58 empregados, responsáveis por, dentre outras competências previstas em lei:

  • representar a União nos contratos de partilha;
  • monitorar e auditar os custos dos projetos (que são descontados do óleo lucro e, na ponta, da parcela da União nos contratos);
  • comercializar, direta ou indiretamente, o óleo e gás da União na partilha;
  • representar a União nos acordos de individualização da produção – nos casos em que uma jazida ultrapassa os limites de uma área licitada e se estende, por exemplo, para áreas não contratadas — e que, portanto, pertencem à União.

2) O PL avança este ano?

De acordo com fontes consultadas pela epbr, lideranças do centrão até receberam positivamente a proposta – que antecipa um volume expressivo de recursos para o orçamento.

Alguns parlamentares, contudo, entendem que, sem uma discussão sobre o carimbo dos recursos, o PL dificilmente andará. Trata-se de uma articulação que demandará tempo, justamente num ano eleitoral em que o calendário legislativo, para grandes votações, fica mais curto.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP/AL), vale lembrar, articula para manter o controle do orçamento secreto em 2023, independentemente do resultado das eleições presidenciais.

Às vésperas do recesso parlamentar e das eleições para o Congresso, a tendência é que a matéria tenha algum espaço na pauta a partir de novembro, após as eleições – período em que, no apagar das luzes, crescem os riscos dos famosos jabutis.

O resultado das eleições para presidente e para o Congresso pode ser determinante para o andamento ou não da proposta.

3) Quanto o governo pode arrecadar com a venda antecipada do óleo e gás da União?

A equipe econômica do governo estima que a liquidação da parcela da União nos contratos de partilha renderá R$ 398 bilhões — assumindo um desconto dos fluxos futuros pela Selic vigente de 12,75%.

Trata-se, na prática, de uma antecipação de receitas. Na justificativa do projeto, o governo cita a crise atual, desencadeada pelas sanções das potências ocidentais à produção de petróleo russo, após a invasão da Ucrânia.

E alega que se trata de uma “oportunidade de monetização do petróleo, em momento oportuno em que o preço do barril chegou ao maior valor dos últimos dez anos e há forte demanda por esse produto no mercado”.

Os quase R$ 400 bilhões estimados pelo governo são inferiores aos cerca de R$ 500 bilhões que o ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a dizer, em 2020, no meio de uma queda sem precedentes do preço do petróleo, que a gestão privada dos contratos administrados pela PPSA poderia render à União.

O valor é inferior também ao que a própria PPSA estima ser possível arrecadar com a comercialização do óleo da União em dez anos. De acordo com as projeções da estatal, a União deve arrecadar US$ 122,7 bilhões com a venda do seu percentual na produção entre 2022 e 2031. Os contratos de partilha, vale lembrar, podem durar 35 anos.

4) As receitas da venda de óleo da União destinadas hoje à educação e saúde vão cair?

Sim, essa é a tendência. O projeto proposto pelo governo desvincula a aplicação das receitas da venda do óleo da União do Fundo Social, criado em 2010, no governo Lula (PT).

Hoje, metade dos recursos do fundo vai para as áreas de educação e saúde. Na justificativa do projeto, o governo defende a desvinculação de recursos públicos “em prol da flexibilidade orçamentária”.

A mensagem – assinada pelo secretário-executivo da Economia, Marcelo Guaranys, e pelo ministro de Minas e Energia, Adolfo Sachsida – alega que, se fosse mantida a atual vinculação, haveria uma “sobrearrecadação de recursos automaticamente vinculados ao Fundo Social”

“(…) Pelo elevado volume esperado, além de não encontrarem contrapartida de previsão orçamentária de despesa também não poderiam ser operacionalizados em um único exercício”, argumentam.

Ainda não há uma definição de como o valor arrecadado será distribuído. Mas é certo que os recursos antes reservados à educação e saúde competirão com outras áreas do orçamento pelo dinheiro disponível.

5) Como será feita, de fato, a venda antecipada do óleo da União?

A comercialização antecipada do óleo da União não é bem uma novidade. Em dezembro de 2021, por exemplo, a PPSA realizou um leilão para venda de 55,7 milhões de barris.

O volume foi todo contratado pela Petrobras, em contratos que variam de três a cinco anos, a depender do lote. A retirada das cargas será feita gradualmente ao longo desse período.

A diferença, dessa vez, é que o governo não tem mais a intenção de comercializar o óleo em si, mas sim a participação da União nos consórcios que operam os campos contratados sob o regime de partilha.

Fato é que o governo precisará de autorização legal para seguir com o plano. A PPSA só tem competência, na lei, para venda de cargas físicas de óleo – e não de contratos.

O PL autoriza a União a ceder, de forma integral, o direito à sua parcela do excedente em óleo (ou óleo lucro) proveniente de contratos de partilha e de acordos de individualização. O excedente em óleo é a parcela da produção em repartida entre a União e as empresas do consórcio de um determinado campo, no regime de partilha. É resultado da diferença entre o volume total da produção e os custos em óleo (por exemplo: os gastos com exploração, avaliação das descobertas, desenvolvimento e produção do campo).

Fonte: PPSA

O plano do governo é vender a participação da PPSA nos consórcios, mediante leilão público. Uma licitação para cada contrato, mediante a anuência prévia dos consórcios em relação à minuta de termo aditivo, que fará parte dos editais.

Se quem contratou as áreas para explorar, produzir e partilhar o óleo com a União não topar a entrada de um novo sócio, pelo texto, o governo não poderá oferecer a produção futura das áreas.

Mas em caso de sucesso, a PPSA deixa os consórcios. O novo titular dos direitos do óleo passa a compor os comitês operacionais dos ativos – hoje presididos pela estatal, que tem 50% dos votos e poder de veto.

Quem são os sócios da PPSA hoje nos contratos de partilha:

  • bp
  • Chevron
  • CNOOC
  • CNODC (CNPC)
  • Ecopetrol
  • Equinor
  • ExxonMobil
  • Petrobras
  • Petrogal
  • Qatar Petroleum
  • Repsol Sinopec
  • Shell
  • TotalEnergies

6) O regime de partilha acabará?

O fim do regime de partilha é tema de outros projetos no Congresso, dentre os quais o PL 6083/2016, por meio de substitutivo de Alexis Fonteyne (Novo/SP).

O PL da venda antecipada do óleo da União não acaba, em si, com o regime. Vale lembrar que a ideia é executar a operação por meio de um termo aditivo aos contratos de partilha.

Ali Hage afirma, no entanto, que o projeto apresentado pelo Executivo mexe nos fundamentos da lei de partilha.

“A cessão da participação da PPSA [nos consórcios] vai desencadear a elaboração de um aditivo ao contrato que, na minha leitura, quase transforma o regime e partilha num contrato de regime de concessão. Só que, lógico, há uma série de questões que não estão respondidas e que vão dar muito o que falar…”

“Serão contratos aditados de forma que o governo não tenha mais direito ao óleo. O consórcio funciona como na concessão, mas não é o regime de concessão. O regime fiscal, inclusive, é diferente”, comenta.

Na concessão, há o pagamento de royalties e participação especial (PE), enquanto nos contratos de partilha em questão não há pagamento de PE.

Segundo Manuela Dana, trata-se, praticamente, da criação de um novo regime – que não é partilha, concessão, nem cessão onerosa.

“Vamos ter um outro bicho saindo daí né? Um outro instrumento que vai ser o contrato de partilha privatizado”, disse.

7) Existe risco de judicialização da proposta?

Ali Hage destaca que o PL é curto, objetivo e vago em muitos pontos. Não que isso seja um defeito da proposta:

“Acho que estrategicamente desenhado dessa forma porque a discussão de cada detalhe vai puxar questões muito técnicas que talvez, no nível legislativo, seja difícil de se emplacar”, comenta.

“É como se tudo ficasse para ser ajustado no aditivo. Isso acaba dando uma liberdade interessante para que o aditivo seja feito de forma a acomodar essa transformação, mas também dá espaço para questionamentos. Afinal, o quanto o aditivo pode mudar o regime de partilha?”, completou.

Hage não vê espaço para questionamento do PL, em si, do ponto de vista jurídico:

“Trata-se de uma lei ordinária que muda uma lei ordinária [nº 12.351/2010, do regime de partilha]. A questão [sobre riscos de questionamentos] é mais quanto à implementação [da venda antecipada]”, disse.

Papel da ANP

O advogado acredita que a discricionariedade dada pelo PL à ANP, na elaboração dos aditivos e editais e minutas de contrato da venda antecipada pode ser “um prato cheio” para quem quiser traçar teses de que o melhor modelo, para a União, não é este.

O modelo proposto abre espaço para contestações de órgãos de controle como o Tribunal de Contas da União (TCU), porque a antecipação de recursos a longuíssimo prazo pode esbarrar em diferentes interpretações sobre a precificação — e, por consequência, sobre os reais benefícios da venda antecipada para a União.

Para Hage, o modelo de antecipação de vendas físicas de óleo seria menos complexo de se precificar que a proposta apresentada pelo governo ao Congresso.

“Quanto custa abrir mão dos poderes políticos da PPSA [nos comitês operacionais]? [É intangível], é uma discussão muito complexa. Corre o risco de irmos para um caminho do qual não conseguimos sair”.

“O discurso do governo com a antecipação é o de não correr mais riscos, de capitalizarmos o momento de preços altos. Tudo isso é sensato e faz sentido tentarmos monetizar o quanto antes. Agora, isso pode ser feito pela venda futura de óleo [físico]. É mais simples fazermos a precificação desse óleo do que entrarmos nesse buraco de mexer fundamentalmente no modelo de partilha”, avalia.

É possível garantir um resultado ótimo para o contribuinte?

Segundo um ex-executivo da PPSA, existe um risco de que a União, para ser bem-sucedida na operação, tenha de dar um desconto muito grande aos compradores. E a precificação do óleo da União, hoje, ignoraria os potenciais ganhos futuros com novas tecnologias.

Um exemplo disso é a perspectiva de que a PPSA, no futuro, tenha uma frota própria de navios de transferência – o que lhe permitiria vender óleo diretamente para as tradings.

Hoje, a estatal só pode vender os barris da União para empresas que contam com embarcações do tipo – geralmente as grandes petroleiras, o que limita o universo de clientes e, por consequências, os preços do óleo comercializado.

“Como se precifica isso na privatização?”, questiona o executivo, sob a condição de anonimato.

8) O modelo proposto é capaz de despertar o interesse das petroleiras?

Manuela Dana destaca que é provável que os atuais membros dos consórcios sejam os candidatos naturais à aquisição, para evitar a entrada, no comitê operacional, de novos membros — com quem a empresas ou atual consórcio não necessariamente têm afinidade.

Aliás, o próprio governo sempre viu os diferentes modelos já pensados para liquidar o óleo dessa forma. Quem já está no consórcio seria o principal interessado em elevar sua quota sobre o resultado da produção.

Manuela Dana, contudo, também relativiza o risco de entrada de novos parceiros.

“O membro do consórcio vão anuir [pela licitação] sem saber quem vai entrar no consórcio… No dia a dia, dependendo de quem for o novo sócio, pode ser muito mais fácil ou mais difícil [a gestão]. Mas é do jogo”, disse.

Hage, por sua vez, acredita que a negociação do aditivo, a consulta pública do edital e a própria licitação serão processos muito conturbados.

“Temos caminho longo para chegarmos à solução, mas chegando-se nela, deve haver interesse sim, porque são campos muito bons, muito produtivos. É uma oportunidade de agregar reserva à carteira como poucas hoje”, avalia.

9) As questões que ainda precisam ser respondidas

Para os advogados consultados pela epbr, existem ainda muitas pontas soltas no projeto de lei que jogam dúvidas sobre como será a execução da liquidação da parcela da União.

  • As regras de governança – como os votos nos consórcios – precisam ser detalhadas. A PPSA preside, pelo modelo atual, os comitês operacionais dos ativos e tem 50% dos votos e poder de veto.

“O PL diz que, uma vez cedida [a participação da PPSA], os poderes de gestão da estatal vão embora. A parte que assume passa a ser sócio como qualquer outro [agente privado]. O aditivo contratual terá que transformar algumas questões dessa governança, mas o projeto não diz como”, comenta Hage.

Para Manuela Dana, a coexistência de diferentes sócios é da natureza da indústria de óleo e gás. Nada que não possa ser resolvido com os acordos de operação, os JOAs.

“Nos consórcios é muito comum a figura dos JOAs que regulam a relação entre os sócios”, disse.

É uma prática sedimentado na indústria, reforça.

  • Além disso, a estatal, pelo regime de partilha, não assume os riscos dos investimentos. Como ficará a posição do comprador?

“Tudo leva a crer que, no aditivo, haja uma redistribuição dos direitos e obrigações do contrato, para que o comprador possa correr riscos e ter resultados como os demais players. O comprador tem que entrar com responsabilidade de investimento, tem que entrar correndo o risco e tem que ter percentual de participação. Mas como se faz essa realocação? Conforme a participação da União no excedente em óleo, que varia de acordo com o preço do petróleo e produtividade do campo? Não estamos falando de um percentual fixo”, questiona Hage.

“O mais delicado vai ser a questão do comitê operacional e os ajustes para tratar dos direitos e obrigações. Eu acho que esse é o maior gargalo desse projeto de lei, porque ele não definiu isso. Acho que é essa definição que vai dizer se será um modelo de sucesso ou não”, completou Manuela Dana.