Combustíveis e Bioenergia

Pegada de carbono das baterias – parte 1: do 8 ao 80 

Variedade de processos de produção e falta de padronização dificultam mensuração das emissões de GEE associadas à fabricação de baterias

Mensuração da pegada de carbono das baterias para veículos elétricos – parte 1: do 8 ao 80 . Na imagem: Construção da unidade de concentrado de lítio da Sigma no Vale do Jequitinhonha (Foto: Divulgação)
Construção da unidade de concentrado de lítio da Sigma no Vale do Jequitinhonha (Foto: Divulgação)

A fabricação das baterias dos veículos elétricos é intensiva em emissões de gases de efeito estufa (GEE), como já indicado no artigo Eletrificação: poluindo mais para poluir menos – parte 1, baterias. Isso faz com que os veículos elétricos “nasçam” emitindo muito carbono antes mesmo de rodarem o primeiro quilômetro.

Mas, afinal, qual é a pegada de carbono da bateria de um veículo elétrico?

Esta é atualmente uma questão difícil de se responder, porque ela varia consideravelmente, a depender da composição química, do design da célula, do método de produção, do local de produção, entre outros inúmeros fatores.

Para elucidar essa dificuldade, vale destacar algumas observações feitas por BOUTER & GUICHE (2022), que realizaram uma revisão estatística em mais de 500 estudos de análise de ciclo de vida (ACV) de baterias automotivas de íons de lítio, publicados entre 2015 e 2019.

Os resultados encontrados pelos referidos autores para a pegada de carbono de baterias NMC, LFP, LMO e NCA podem ser observados na Figura 1.

A pegada de carbono de uma tradicional bateria de lítio-níquel-manganês-cobalto (NMC), usualmente empregada nas baterias de veículos elétricos, representada pelos pontos azuis no gráfico, varia de 40 a quase 500 kg CO2eq/kWh. Como pode ser observado, a dispersão dos valores é grande.

Figura 1 – Dispersão dos resultados de emissões de GEE do LCA de acordo com a energia específica da bateria, para as diferentes químicas do cátodo. As barras (direita) representam o número de observações por intervalo de valores de emissões de GEE, e as barras (topo) representam o número de observações por intervalo de valores de energia específicos (Fonte: BOUTER & GUICHE, 2022)

Figura 1 – Dispersão dos resultados de emissões de GEE do LCA de acordo com a energia específica da bateria, para as diferentes químicas do cátodo. As barras (direita) representam o número de observações por intervalo de valores de emissões de GEE, e as barras (topo) representam o número de observações por intervalo de valores de energia específicos (Fonte: BOUTER & GUICHE, 2022)

Dada a dispersão, é usual que se avalie qual é a mediana da amostra. De forma surpreendente, os autores descobriram que a mediana das emissões de GEE relatadas nos estudos é fortemente influenciada pela localização geográfica do autor correspondente.

Para autores dos EUA a mediana das observações foi de 45,9 kg CO2 eq/kWh, enquanto ela foi de 157,9 kg CO2 eq/kWh para um autor correspondente da Europa e 156,9 kg CO2 eq/kWh para um autor correspondente da China.

BOUTER & GUICHE afirmam que “isso é difícil de explicar, pois as químicas dos quatro cátodos são representadas” no levantamento, isto é, não se espera que haja discrepância entre os valores por conta da nacionalidade de quem fez o estudo.

Curiosamente, os autores americanos reportam emissões de GEE incrivelmente menores na ACV das baterias chinesas do que os próprios chineses, que são os maiores produtores mundiais.

Por que os valores variam tanto?

Mensurar as emissões de carbono que ocorrem na fabricação das baterias é um grande desafio. As incertezas inerentes sobre os cálculos das emissões de veículos elétricos surgem de uma miríade de incógnitas conhecidas, mas de difícil rastreabilidade, sobre as atividades de mineração e refino dos principais componentes das baterias.

Construir um veículo elétrico (EV) requer dezenas de quilos a mais de cobre, níquel, grafite, entre outros elementos, do que construir um carro de combustão interna (Figura 2).

Figura 2 – Metais utilizados em veículos elétricos comparado com veículos convencionais (Fonte: adaptado de IEA, 2021)
Figura 2 – Metais utilizados em veículos elétricos comparado com veículos convencionais (Fonte: adaptado de IEA, 2021)

A composição da pegada de carbono das baterias de veículos elétricos inclui várias etapas do ciclo de vida, desde a extração de matérias-primas como o lítio, cobalto e níquel, até o processamento, fabricação, transporte e eventual descarte da bateria.

Cada fase contribui para a emissão de gases de efeito estufa. A complexidade aumenta quando consideramos que essas etapas ocorrem em diferentes regiões do mundo, com diferentes processos e práticas de produção.

Um estudo realizado por AULANIER & KERMADEC (2023) traz números importantes que merecem atenção. Os autores indicam que o processo de produção de lítio para bateria a partir de salmoura no Chile é cinco vezes menos intensivo em emissões do que a partir do minério de espodumênio (um silicato de alumínio e lítio) australiano. No entanto, as reservas de salmoura são mais limitadas e consomem muito mais água para produzir cada tonelada de lítio.

O estudo indica também que o modelo americano GREET e o relatório EcoInvent, bancos de dados usualmente utilizados nas ACVs, subestimam enormemente a pegada de carbono do grafite produzido através do tradicional processo Acheson, presente na China, para produção de grafite utilizado nas baterias.

Foi constatado que as emissões associadas ao desgaste dos cadinhos de grafite utilizados no processo (que têm vida útil limitada, sendo usados em até 4 ciclos de grafitização) não foram consideradas pelo GREET ou EcoInvent. Isso pode explicar em parte por que os americanos reportam emissões de GEE menores para as baterias chinesas.

A depender do processo, as emissões de produção do grafite variam enormemente, de 1,7 a 52,5 tCO2e por tonelada de grafite produzido. O modelo GREET considera a pegada de carbono por tonelada de grafite como 4,5 tCO2e, enquanto o EcoInvent considera 5,2 tCO2e.

Se o desgaste dos cadinhos de grafite for considerado no processo Acheson, a pegada de carbono deveria ficar entre 44,7 e 52,5 tCO2e/t segundo o estudo realizado para a Carbone4 (Figura 3). A China é o principal refinador de grafite, produz entre 60% e 80% do grafite refinado do mundo.

Figura 3 – Pagadas de carbono do grafite (Fonte: AULANIER & KERMADEC, 2023)
Figura 3 – Pagadas de carbono do grafite (Fonte: AULANIER & KERMADEC, 2023)

Na mesma linha, os autores afirmam ainda que nos últimos anos o método de produção de sulfato de níquel a partir de ferro-gusa de níquel tornou-se bastante popular na China, mas ele não foi considerado no modelo GREET.

Tal método de produção tem uma pegada de carbono aproximadamente 4 vezes superior à do sulfato de níquel produzido pelo processo hidrometalúrgico de lixiviação ácida (Figura 4), outra rota usualmente utilizada. Isso reforça a importância da capilaridade da ACV para se ponderar a intensidade de carbono de determinado elemento.

Figura 4 – Pagadas de carbono do sulfato de níquel (Fonte: AULANIER & KERMADEC, 2023)
Figura 4 – Pagadas de carbono do sulfato de níquel (Fonte: AULANIER & KERMADEC, 2023)

Finalmente, os autores, após refinar os cálculos para alguns materiais, afirmaram que a pegada de carbono das tradicionais baterias de lítio NMC situa-se entre 77 e 221 kgCO2e/kWh, em comparação com o intervalo de 53 a 68 kgCO2e/kWh calculado pelo tradicional modelo GREET para a mesma química.

Oito ou oitenta

Os dados apresentados deixam claro que há uma grande dispersão a respeito da pegada de carbono das baterias de lítio, amplamente utilizadas nos veículos elétricos, podendo o valor final variar por um fator de 10. É o famoso “oito ou oitenta”.

Os motivadores disso são variados, pois como brevemente apresentado ao longo do texto, dependem da composição química da bateria, do tipo de processo de fabricação utilizado na obtenção das principais matérias-primas, entre tantos outros fatores.

Não resta dúvida de que a ACV é a ferramenta certa para fornecer a pegada de carbono, entre outros indicadores de impacto, para as baterias de veículos elétricos. No entanto, a leitura da literatura científica destaca que ainda há muita disparidade nos resultados, dificultando a orientação das políticas públicas e fomentando o uso dos dados dispersos para reforçar tanto narrativas pró como contra os veículos elétricos. Tem número para “todos os gostos”.

Tal fato realça a necessidade de se continuar a melhorar a transparência dos dados e de se estabelecer uma espécie de “protocolo” e harmonização para avaliação da pegada de carbono das baterias vendidas no mercado. Sem isso, é muito difícil dizer qual é a real emissão de GEE associada à produção das baterias.

A Europa já deu os primeiros passos neste sentido, com a criação do “passaporte das baterias”, mas isso é conversa para um próximo artigo. Por enquanto, ficaremos entre o 8 ou 80. Vamos adiante!

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.

Referências

AULANIER, H. M.; KERMADEC, A. H. Increase the accuracy of carbon footprint for Li-ion battery. França: Carbone4, 2023.

BOUTER, A.; GUICHET, X., 2022. The greenhouse gas emissions of automotive lithium-ion batteries: a statistical review of life cycle assessment studies. J. Clean. Prod. 344, 130994. Disponível em: <https://doi.org/10.1016/j.jclepro.2022.130994>. Acessado em agosto de 2024.

IEA (2021). The Role of Critical Minerals in Clean Energy Transitions. Disponível em: <https://www.iea.org/reports/the-role-of-critical-minerals-in-clean-energy-transitions/executive-summary>. Acessado em agosto de 2024.