BRASÍLIA – Os planos do Ministério de Minas e Energia (MME) para o enquadramento nas novas regras de debêntures incentivadas são incluir a produção de gás natural associado, permitindo assim que investimentos no upstream sigam contemplados nas possibilidades de captação.
As áreas técnicas da pasta concluíram a proposta de regulamentação e a portaria está passando por análises jurídicas. O gás natural foi contemplado na edição do decreto 11.964/2024, quando as regras foram atualizadas e passaram a excluir o petróleo.
A pasta entende que, dada a decisão do governo de incluir o gás natural, é preciso manter a produção associada ao petróleo nas possibilidades de emissão, do contrário a política teria efeito muito limitado. Cerca de 90% da produção brasileira de gás é associada ao petróleo.
A intenção é que toda a cadeia seja contemplada, da produção à infraestrutura de processamento, transporte e distribuição de gás natural, além da geração de energia.
Os chamados corredores azuis não serão enquadrados – são os pontos de abastecimento de veículos leves e pesados, caso em que é necessário equipamentos de alta pressão para abastecer os caminhões.
Recentemente, por recomendação do Ministério da Indústria e Comércio (MDIC), Lula (PT) vetou medidas nesse sentido na sanção do Mover.
O mercado aguarda a edição da portaria para ter segurança na emissão de novas dívidas, segundo advogados consultados pela agência epbr.
O MME já havia esclarecido, em junho, que usinas termelétricas a gás natural poderão ser financiadas com a emissão das debêntures incentivadas.
“(…) os pedidos de protocolo para projetos de investimentos do setor prioritário de geração de energia elétrica por fontes renováveis, usinas termelétricas a gás natural e minigeração distribuída podem ser protocolados conforme as diretrizes do art. 8º do Decreto nº 11.964, de 2024”, diz o ministério em seu site.
O gás natural entrou de última hora, em uma decisão que coube à Casa Civil. Por mais que a atualização das regras tenha sido promovida pelo caráter ambiental, há uma questão fiscal, de fundo: transferir recursos de velhas para novas cadeias industriais.
Primeiras versões limitaram, por exemplo, o acesso de produtores de biocombustíveis à emissão de debêntures (mais detalhes ao longo do texto).
O gás é prioridade para o Planalto. Além das iniciativas domésticas, Lula tem protagonizado uma articulação regional com governos e empresas públicas e privadas do Brasil, Bolívia e Argentina para elevar a oferta de gás a preços competitivos, um pleito da indústria brasileira.
No anúncio do novo decreto, o ministro da Casa Civil, Rui Costa (PT), defendeu que não caberia renunciar à arrecadação, mantendo subsídios para um segmento de alto retorno, que é o petróleo.
“O objetivo, portanto, é fomentar aqueles segmentos que têm taxa de retorno menores, mas são essenciais para a qualidade de vida das pessoas”, justificou.
As debêntures de infraestrutura, particularmente, são uma aposta do governo Lula para atrair capital estrangeiro, de fundos soberanos, dispostos a entrar no país em sociedade com operadores nacionais. Incluídos aí os petroestados do Golfo Pérsico.
Essa matéria conta com informações antecipadas pelo político epbr, serviço de assinatura exclusivo para empresas (teste grátis por 7 dias), entre outubro de 2023 e julho deste ano.
Novas regras alteram fluxo de emissão de debêntures
Pelas leis que hoje regulamentam a emissão de debêntures incentivadas (12.431/2011) e de infraestrutura (14.801/2024), nem o MME, nem a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) ou a Receita Federal, têm atribuições autorizativas.
A responsabilidade de garantir que o projeto atende às normas regulatórias recai sobre o emissor e o titular do projeto.
Em caso de ofertas em desacordo com as regras, a legislação prevê a aplicação de multa equivalente a 20% do valor captado na emissão dos títulos. É a insegurança que o mercado quer evitar.
Em nota, o MME confirmou à agência epbr que a portaria vai incluir a produção de gás associado. “O documento [portaria] prevê que seja contemplada toda a cadeia do gás natural, incluindo o gás natural associado”.
Reiterou ainda a alteração no fluxo de emissão, já que antes era necessária a autorização prévia dos ministérios para cada projeto.
Agora, cabe às empresas assegurar que as emissões estão enquadradas nos requisitos estabelecidos pelo decreto 11.964/2024.
“Por isso, ainda é necessária a emissão de portaria regulamentando o procedimento para projetos de gás natural e biocombustíveis”, explica o MME.
“Em relação aos incentivos existentes à geração, o decreto também abrange projetos de investimentos de geração de energia elétrica por fontes renováveis, usinas termelétricas a gás natural e minigeração distribuída, além de projetos de transmissão e distribuição”.
Na área de energia, o texto classifica como prioritários projetos ligadas aos seguintes segmentos:
Geração por fontes renováveis, transmissão e distribuição de energia elétrica;
- Gás natural;
- Produção de biocombustíveis e biogás, exceto a fase agrícola;
- Produção de combustíveis sintéticos com baixa intensidade de carbono;
- Hidrogênio de baixo carbono;
- Captura, estocagem, movimentação e uso de dióxido de carbono;
- Dutovias para transporte de combustíveis, incluindo biocombustíveis e combustíveis sintéticos com baixa intensidade de carbono.
Como o gás natural entrou nas debêntures?
A Casa Civil foi determinante para incluir o gás natural no decreto, apurou a epbr. Partiu de uma conclusão, ao cabo, do conjunto do governo que o energético é o combustível da transição. Mas entrou na reta final das discussões, que começaram na metade de 2023.
Ao editar o decreto, o Ministério da Fazenda afirmou se tratar de um ‘realinhamento’ da política para o desenvolvimento de infraestrutura direcionada para a transformação ecológica, “afastando projetos que produzam externalidades negativas para o meio ambiente”, como diz a justificativa enviada para o Planalto.
A pasta buscou desde o início manter a neutralidade fiscal. As debêntures incentivadas, com desoneração para investidores, e de infraestrutura, para os emissores, representam a renúncia de receitas.
Com os gastos previstos no orçamento, a Fazenda evitou a necessidade de encontrar novas fontes para compensação.
As primeiras propostas que circularam em 2023, para discussão interna no governo, nem sequer contemplariam todos os projetos de biocombustíveis.
Etanol e biodiesel entrariam mediante investimentos na melhoria da eficiência energético-ambiental. Já previam, por sua vez, o redirecionamento da política para os sintéticos e avançados, por exemplo.
Partiu, assim, de um ponto mais restrito, uma dinâmica vista com naturalidade por membros da equipe econômica. À época, o governo se antecipava para ter as propostas maduras antes da sanção da lei das debêntures de infraestrutura, que viria em janeiro.
Em fevereiro, a inclusão do gás natural já estava consolidada, bem como a exploração de minerais críticos.
A própria Fazenda sugeriu incluir o desenvolvimento de lavras e minas, dado que os impactos fiscais já haviam sido dimensionados pelo MME e cabiam no orçamento.
As informações constam em documentos obtidos com fontes ou por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Nesta quinta (18/7), a Casa Civil informou apenas que os “ministérios e órgãos federais estão regulamentando por meio de portarias o que é possível ou não de ser financiado por debêntures. E estas portarias não passam formalmente pela Casa Civil”.
Tanto o Ministério dos Transporte quanto o Ministério de Portos e Aeroportos já publicaram as suas portarias.
Fazenda reitera atribuições do MME
Procurada pela agência epbr, a Fazenda reiterou a visão que os termos do decreto garantem ao Ministério de Minas e Energia a obrigação de acompanhar a implementação dos projetos e informar aos demais órgãos envolvidos (CVM e Receita) a “ocorrência de situações que evidenciem a não implantação” ou a “implantação em desacordo”.
“Essa obrigação existe independentemente da existência de portaria ministerial setorial complementar”, disse a Fazenda, por meio de sua assessoria de imprensa.
Sobre o gás natural ou termelétricas, a pasta se limitou a dizer que as “emissões destinadas a financiar projetos de produção de petróleo não estão em conformidade com o decreto”.
Gás associado representa 90% da produção
Um campo pode ser formado por diferentes reservatórios, distintos entre si: apenas com petróleo, gás natural, ou ambos os fluidos.
Ao todo, o gás não associado corresponde a 10% da produção total no país e, por vezes, está em campos que também produzem petróleo e gás natural associados.
O país tem uma produção total de gás da ordem de 150 milhões de m³/dia, mas cerca de um terço chega ao mercado consumidor – a maior parte é reinjetada para elevar a extração de petróleo, especialmente nos grandes campos do pré-sal.
Considerando os patamares atuais, até maio de 2024, há menos de 10 mil m³/dia de gás em campos que não produziram sequer uma gota de óleo, o que pode variar mês a mês.
Portaria dará mais segurança para emissão de debêntures
As produtoras independentes de óleo e gás recorreram a essa fonte de financiamento. Estão entre as emissoras em anos recentes a Enauta, 3R Petroleum e Origem Energia, todas registradas de 2022 em diante, segundo dados da Anbima. A última oferta da Petrobras ocorreu em 2019.
No primeiro semestre, as emissões incentivadas atingiram R$ 64,45 bilhões, sendo R$ 29,9 bilhões do setor de energia elétrica, o maior deles. Petróleo e gás atingiu R$ 7,5 bilhões, 55% a mais que em 2023 e maior valor da série histórica.
A Anbima lançou essa semana o Boletim de Debêntures Incentivadas e de Infraestrutura, que terá periodicidade mensal, onde serão publicados os dados sobre as emissões com benefícios fiscais.
Há um período de transição, em que as petroleiras ainda conseguem captar com base nas regras anteriores.
O advogado Alberto Faro, sócio do escritório Machado Meyer, corrobora com o entendimento que as térmicas a gás natural estão contempladas.
“O decreto preserva empreendimentos relacionados que utilizem gás natural para fins de geração de energia. Existia uma dúvida se, nessa transição entre a lei e o decreto, o governo ia simplesmente deletar o setor de petróleo e gás como um todo, mas me parece que não foi isso que aconteceu em relação à geração de energia elétrica a gás natural”, analisa.
“Quem tem autoridade para barrar baseado na redação ampla? O MME não tem, porque ele teria se refizesse a regulamentação ou se o decreto de regulamentação fosse refeito. O MME não tem que autorizar, ele tem que receber [o protocolo do projeto]. Teoricamente, ele não pode se opor”, explica Manuela Dana, especialista da área de energia da Bichara Advogados.
“E o mesmo para a CVM. O decreto não diz que a CVM tem que julgar o que ela acha da adequabilidade ou não daquele protocolo”, completa a advogada.
“A gente tem gás associado, mas a gente sabe que empreendimentos de exploração e produção têm uma produção de petróleo também. Esse decreto não proíbe que se faça uma debênture de petróleo. Ele só não lista”, completa Manuela Dana.
“O gás é um combustível fóssil, sim, mas ele é entendido como um combustível mais limpo do que petróleo, mina de carvão e os outros combustíveis fósseis mais tradicionais”, comenta.
Alberto Faro afirma que o mercado não deverá se aventurar com a emissão de debêntures enquanto não sair a portaria do MME. “Há uma tendência, obviamente, de o mercado tentar aguardar os esclarecimentos que vão vir na portaria do MME”.
“Ao mesmo tempo em que a gente pode interpretar que existiria aqui uma zona de oportunidades, de possibilidade de emissão enquanto a portaria não é publicada, por outro lado, a interpretação que surge nessa mesma tese é a de que, se há uma zona cinzenta, a portaria pode eventualmente esclarecer isso em desfavor dessa emissão”, diz.
Com colaboração de Luma Poletti Dutra, editora responsável por pedidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI)