O hidrogênio é a matéria-prima do cosmos, o primeiro átomo a surgir após o Big Bang, e ainda hoje, o mais abundante no universo.
O menor dos átomos está presente nas estrelas, nos planetas, nas galáxias e no próprio sol, onde alimenta reações de fusão nuclear que irradiam luz e calor para sustentar a vida na Terra. Cada raio de sol que toca nosso planeta é, em essência, uma dádiva do hidrogênio.
Essa singularidade cósmica contrasta com os desafios do hidrogênio quando na atmosfera terrestre. Embora seja abundante no universo, por aqui o hidrogênio raramente é encontrado em estado puro, está quase sempre ligado a outros elementos, como o oxigênio na água ou o carbono nos hidrocarbonetos.
Para usá-lo como fonte de energia, precisamos separá-lo, armazená-lo e transportá-lo: tarefas que exigem tecnologia, infraestrutura e visão estratégica.
E é justamente essa visão que tem colocado o hidrogênio no centro das discussões na transição energética. Em um mundo que busca reduzir suas emissões de gases de efeito estufa (GEE), o hidrogênio, na sua forma gasosa (H2), aparece como uma alternativa promissora e potencialmente transformadora.
Ele pode alimentar indústrias pesadas, substituir combustíveis fósseis em processos químicos e até servir como vetor de armazenamento de energia renovável.
Mas será que ele é realmente o “canivete suíço” da descarbonização? Ou estamos diante de mais uma promessa tecnológica inflada por expectativas irreais?
Onde o hidrogênio é essencial? Onde ele é apenas uma opção entre outras, e onde ele simplesmente não faz sentido? Vale subir e descer a escada do hidrogênio proposta por Michael Liebreich e descobrir como esse elemento ancestral pode, ou não, moldar o futuro energético.
A escada do hidrogênio
Para separar o hype da realidade, o pesquisador Michael Liebreich propôs a chamada “escada do hidrogênio”, uma hierarquia que organiza os usos do gás segundo sua viabilidade (Figura 1).
No topo da escada estão os usos essenciais, como na produção de aço, fertilizantes e processos industriais que não têm alternativa limpa. No meio, os usos possíveis, como transporte pesado e aviação, onde o hidrogênio compete com outras soluções. Na base, os usos improváveis, como carros e aquecimento residencial, onde a eletrificação direta é mais eficiente.
Essa escada não é apenas uma metáfora, é uma espécie de guia estratégico para evitar desperdícios e focar onde o hidrogênio realmente faz sentido.
O trilema energético
Toda política energética enfrenta o trilema: como equilibrar sustentabilidade, segurança e custo? O hidrogênio sempre foi forte no primeiro pilar, mas fraco nos outros dois. As guerras (Ucrânia-Rússia, por exemplo) e os conflitos geopolíticos, no entanto, mudam o jogo.
O hidrogênio produzido localmente com fontes renováveis passou a ser visto como uma solução voltada para a segurança energética. Assim, o hidrogênio tem espaço como vetor estratégico da transição. E o custo?
Ainda é caro produzir hidrogênio de baixo carbono de forma sustentável e a baixo custo. Os mais otimistas indicam que em dado momento breve o hidrogênio de baixa intensidade de carbono vai equalizar em custo com aquele produzido a partir de fontes não renováveis, como carvão e gás natural, de onde ele é hoje majoritariamente produzido.
O otimismo é palpável. A União Europeia direciona centenas de bilhões em investimentos com intuito de tornar o “hidrogênio verde” competitivo com o “cinza”, derivado do gás natural, na próxima década. Esses investimentos não são apenas financeiros, são apostas políticas, industriais e ambientais.
Desafios técnicos e econômicos
Mas o caminho é íngreme. O hidrogênio é leve e não “gosta” de ficar confinado. Transportá-lo é como tentar enviar isopor de um lado para o outro. Sua eficiência energética é questionável. Converter eletricidade em hidrogênio e depois de volta em eletricidade é um processo com perdas significativas, um “nonsense” termodinâmico.
A infraestrutura necessária é colossal. Adaptar casas, fábricas e veículos exige uma revolução logística que dificilmente fará sentido técnico ou econômico.
De olha na escada
Quando se compara o hidrogênio com outras tecnologias, como baterias em carros e ônibus, as baterias ganham de lavada. Trens e caminhões? Baterias são suficientes. Empilhadeiras movidas a hidrogênio? Quase invisíveis frente às elétricas. Aquecimento residencial? Bombas de calor são muitas vezes mais eficientes. Aviação e transporte marítimo?
O volume necessário de hidrogênio líquido torna essas aplicações inviáveis com a tecnologia atual. O veredito é claro: o hidrogênio não é para tudo.
O hidrogênio não compete apenas com o petróleo, ele disputa espaço com baterias, biocombustíveis e eletrificação direta. E o mercado é implacável, vence o que for mais barato, eficiente e conveniente. Isso exige que o hidrogênio encontre seu nicho, seu território exclusivo. Não basta ser limpo, é preciso ser superior onde outras soluções falham.
A ambição é grande, mas a realidade impõe limites. Para atender apenas os dois primeiros degraus da escada do hidrogênio, seria necessário multiplicar por cinco toda a capacidade instalada de energia solar e eólica no mundo. E isso antes mesmo de descarbonizar o setor elétrico atual.
O hidrogênio não é uma panaceia, é uma peça valiosa, mas limitada, no quebra-cabeça da transição energética.
Inteligência estratégica
O hidrogênio é versátil, útil em situações específicas, mas longe de ser uma ferramenta universal ou um “canivete suíço” da transição. Usá-lo com sabedoria é o segredo. A escada do hidrogênio nos ensina a priorizar, a investir com inteligência e a evitar modismos.
Com políticas públicas bem desenhadas, inovação tecnológica e foco estratégico, o hidrogênio pode ser um aliado poderoso, desde que saibamos quando, onde e como utilizá-lo. É preciso cuidado ao subir e descer essa escada, fugir da hype, para evitar “tombos” e degraus em falso.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.
Referência
Liebreich, M. Hydrogen Ladder Version 5.0. Liebreich Associates, 2023. Disponível em: <https://mliebreich.substack.com/p/hydrogen-ladder-version-50>. Acessado em 13 de outubro de 2025.