O setor brasileiro de gás natural talvez esteja vivendo algo parecido ao que se chama de “anarquia relacional” – um modelo de relacionamento não baseado em normativas, mas somente naquilo que cada uma das partes envolvidas concorde.
É o paralelo que faço ao ler opiniões que insistem em contestar, contra todas as normas e legislação vigente, a classificação do gasoduto Subida da Serra.
A infraestrutura de distribuição de gás canalizado, construída pela Comgás em São Paulo, vem sendo sistematicamente questionada de forma vazia e sem fundamentação legal e regulatória, numa demonstração oportunista que busca claramente influenciar um processo que corre no Supremo Tribunal Federal (STF).
Nesse processo que corre no Núcleo de Solução Consensual de Conflitos (Nusol), conduzido pelo ministro Edson Fachin, estão de um lado o estado de São Paulo e a Arsesp (Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo), defendendo a sua competência para classificar o gasoduto; e de outro, advogando a competência federal, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
Os argumentos contrários ao Subida da Serra com a sua classificação original, a de gasoduto de distribuição, mais uma vez desconsideram pontos definitivos:
1. A Constituição Federal de 1988 – A Carta Magna, em seu artigo 25º, parágrafo 2º, dá às unidades da federação a competência para regular os serviços de distribuição de gás canalizado;
2. A Lei nº 14.134 – Aprovada em março de 2021 e sancionada em abril de 2021, ou seja, dois anos após a autorização concedida pela Arsesp ao projeto de construção do Subida da Serra, a chamada Nova Lei do Gás, em seu artigo 7°, inciso 1°, dá garantias e resguardo a projetos anteriores de qualquer regulamentação que venha a ser estabelecida pela ANP ao dispor o seguinte:
“Fica preservada a classificação do gasoduto enquadrado exclusivamente no inciso VI do caput deste artigo que esteja em implantação ou em operação na data da publicação desta Lei.” Essa regulamentação sobre as características de gasodutos de transporte, aliás, ainda não aconteceu desde então, passados quase quatro anos da promulgação da lei.
Parece pouco importar para quem é adepto dessa espécie de anarquia relacional, portanto, a legitimidade da construção de gasoduto de distribuição e da competência da Arsesp em autorizar o projeto e sua operação no âmbito da 4ª Revisão Tarifária Ordinária da Comgás.
Tampouco parece importar que o projeto do Subida da Serra tenha sido aprovado pela Arsesp no ano de 2019, totalmente nos limites de sua competência e inteiramente dentro dos termos da legislação aplicável naquele momento e em linha com a autonomia concedida pela Constituição Federal de 1988 aos estados para regular os serviços de distribuição de gás canalizado.
Para esses, não importa que o Subida da Serra tenha total aderência regulatória e tenha sido submetido previamente a consulta e audiência públicas, sem nada ter sido questionado, e assim foi, porque o projeto desde o princípio não se configura como uma infraestrutura para realização do serviço de transporte de gás, mas sim de distribuição.
Inclusive, não custa lembrar que seu trajeto é paralelo a outro gasoduto previamente existente da Comgás, o que reafirma seu perfil de reforço metropolitano da rede de distribuição local de gás canalizado entre a Baixada Santista e a Região Metropolitana de São Paulo.
Nada disso importa para os que insistem nesse insano questionamento, em que só quem perde é o país.
Disputa regulatória e impactos no mercado de gás
O curioso é que essas mesmas vozes nada falam sobre um dos pontos mais nebulosos do mercado brasileiro de gás natural: os chamados contratos legados de transporte celebrados entre a Petrobras e as transportadoras de gás.
A venda dos ativos de transporte da Petrobras, que originou os contratos legados, foi uma operação comercial entre agentes privados.
O pagamento das receitas previstas nesses contratos está garantido, na sua totalidade, mas essas receitas não guardam correspondência com a remuneração justa e razoável que deveria ter a transportadora, baseada nos custos do serviço e no adequado retorno do capital investido, conforme recomendado pelas boas práticas internacionais e determinado pela legislação e regulação vigentes.
Cabe ressaltar que o item XXXVI, do Art. 3º da Lei 14.134/2021, determina expressamente como deve ser calculada a Receita Máxima Permitida de Transporte.
No caso da região Sudeste, a tarifa de transporte média deveria ser cerca de 50% inferior às atualmente praticadas, levando em conta as regras acima citadas e os dados contábeis publicados pela transportadora, conforme simulação realizada pela ARM Consultoria e submetida como contribuição em consulta pública aberta em 2024 pela ANP.
Esse elevado custo do transporte, combinado a (ainda) pouca concorrência do lado da oferta, são fatores determinantes que afetam a competitividade do gás. Uma situação que acaba por estimular uma série de projetos que pratica a conexão direta com fontes de suprimento, sem passar pelo elo do transporte, o que, diga-se de passagem, é absolutamente permitido pela lei, com muitos exemplos em operação país afora.
Como é aceitável que, sem base legal e regulatória, vejam-se no direito de questionar a autonomia dos estados em realizarem o planejamento da infraestrutura das redes de distribuição que estão sob sua competência, ao passo que realizam nada ou muito pouco para desenvolver o setor de gás, apenas limitando-se a viver das receitas advindas de gasodutos construídos há décadas?
Ao contrário do que se viu no transporte que nos últimos dez anos, onde sua malha cresceu menos de 1%, a malha de distribuição no país se multiplicou por 2,3 vezes, crescendo em cerca de 24.000 quilômetros, o que representa duas vezes e meia a extensão de toda a malha de transporte no país!
Autonomia estadual e a falta de um operador técnico
No mais, nesse aguardado processo de conciliação no STF, deveríamos parar para refletir que, de um lado, estão um estado (São Paulo) e um regulador (Arsesp) que fizeram corretamente o seu trabalho; de outro lado, um regulador que não consegue nem mesmo dar conta de uma agenda regulatória extensa e importante para o desenvolvimento do setor do gás no país.
A ausência de uma atividade regulatória ágil, permanente e correta no setor do gás são fatores que contribuem para esse estado de anarquia relacional, pela qual qualquer um entende que deve valer as suas regras em razão dos seus interesses.
Imaginem se, a partir de agora, os estados, seus reguladores e concessionárias passarem a depender da ANP para decidir a expansão de suas redes?
Imaginem se os gasodutos construídos anteriormente a uma futura regulação que a ANP venha a publicar de classificação de dutos sejam pleiteados pelos transportadores?
Se criado o precedente, casos como os gasodutos de distribuição Gascabo e Gascam no RJ, Marlim Azul (também no RJ), dentre muitos outros, poderiam vir a ser considerados como “de transporte”
O caso do Subida da Serra não pode ser tratado nessa anarquia relacional. É uma infraestrutura que tem total aderência legal e regulatória, e precisa ser tratada dentro das regras e normas existentes à época.
Não podemos deixar de lado a razão e as bases legais e regulatórias para ingressar numa discussão passional que só levará a questão para um campo nebuloso e de insegurança jurídica.
Lançar mão da tese de que dessa decisão sobre o Subida de Serra depende o futuro “mercado integrado do gás” não tem o menor fundamento.
Afirmar que “interesses nacionais” devam prevalecer sobre os “interesses locais” beira o absurdo, uma vez que a Constituição de 1988 dá autonomia aos estados para organizarem suas concessões, planejarem e expandirem as redes locais de distribuição de gás por meio de suas concessionárias, o que vem gerando grandes benefícios para os estados, municípios e para o próprio país.
Ao contrário do que ocorre no setor elétrico, a Lei 14.134 não considerou a figura de um operador técnico do sistema que, com a fragmentação do transporte e venda de ativos pela Petrobras, deixou de ser realizado de forma integrada. Quando os ativos eram da Petrobras, cabia à estatal realizar a gestão da oferta e o balanço da oferta e da demanda em articulação com as distribuidoras estaduais.
Hoje não temos uma gestão centralizada da logística de gás. E muitos acabam confundindo a suposta questão da malha integrada com a gestão e operação integrada por um gestor técnico independente semelhante ao Operador Nacional do Sistema (ONS), que cuida do setor elétrico.
Curioso que a ANP esteja preocupada, no caso do Subida da Serra, com uma hipotética redução da movimentação do gás no gasoduto de transporte enquanto existem diversos exemplos de projetos não conectados ao transporte pelo país, sem que ela tenha se manifestado. Hoje, mais de 50% da geração térmica já ocorre fora da malha interligada e isso contribui negativamente para a modicidade da tarifa de transporte? Sim.
A eventual capacidade não utilizada na malha de transporte, ainda por cima, ficará disponível para algum comercializador ofertar gás aos clientes elegíveis de São Paulo, a partir do aumento da oferta de gás no Brasil, ou mesmo, para levar gás para a malha da TBG em razão do declínio previsto da oferta de gás da Bolívia. Nesse sentido, a transportadora inclusive, apresentou projeto de uma estação de compressão em Japeri.
Ou seja, o Brasil está gastando tempo e esforço inutilmente por um tema que não deveria nem mesmo estar sendo discutido, uma vez que o Subida da Serra está completamente em consonância com a Constituição Federal, a Lei 14.134 e as regulações federal e estadual.
O Subida da Serra, importante ressaltar, é uma infraestrutura que deu maior robustez ao sistema e trouxe benefícios para a concorrência e diversidade da oferta.
Imaginem agora, os consumidores e distribuidoras do Sudeste, virem a questionar o recém aprovado projeto da NTS de uma estação de compressão em Japeri que visa, principalmente, ampliar a capacidade para entregar gás à TBG diante da perspectiva de declínio da oferta da Bolívia, mas que trará impacto nas tarifas de transporte da NTS.
Deveríamos, isso sim, começar a discutir os necessários aperfeiçoamentos da Lei 14.134, inclusive a figura de um Operador Técnico do Sistema Gasista no país, o que possibilitaria o melhor planejamento integrado e a gestão eficiente e segura da oferta e das infraestruturas de transporte.
Esses questionamentos a projetos que fazem bem para o país geram perturbações indesejáveis e, sem dúvida, trazem insegurança para quem realmente vem realizando investimentos em infraestrutura no país. Não podemos perder mais tempo com questões absurdas.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.
Bruno Armbrust é sócio-fundador da ARM Consultoria, com 35 anos de experiência no setor de Gás & Energia. Foi presidente do grupo Naturgy na Itália e vice-presidente da Associazione Nazionale Industriali Privati Gas e Servizi Energetici na Itália (Assogas). Também foi presidente da Naturgy no Brasil entre 2007 e 2019.