A polêmica atrelada à classificação do Gasoduto Subida da Serra (GSS) deflagrou disputa acirrada entre as competências federal e estadual do setor de gás natural, representadas nas figuras de seus respectivos reguladores: a ANP, na esfera da União, e a Arsesp, no estado de São Paulo.
Mas algo muito mais sério está agora nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF).
Nosso tribunal supremo tem diante de si a responsabilidade de não apenas disciplinar os comandos constitucionais e legislativos envolvidos na classificação de gasodutos de transporte ou de distribuição de gás natural, mas também de emitir um sinal inequívoco: no Brasil, a Constituição e as leis valem para todos, não importando quão poderosos sejam os envolvidos.
Em outras palavras, o STF precisa estabelecer que, em nosso país, a famigerada tese do “too big to fail” (ou “muito grande para falhar”) não se aplica.
O gasoduto Subida da Serra é um gasoduto com 31,5 quilômetros que conecta um terminal de regaseificação de GNL (gás natural liquefeito) no Porto de Santos diretamente à malha da Comgás.
Em outras palavras, o gasoduto conecta uma fonte primária de suprimento a um mercado local, uma das funções mais importantes – e, neste caso, fácil de se verificar – de um gasoduto de transporte.
No entanto, em 2019 a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp) classificou o gasoduto Subida da Serra como um duto de distribuição, decisão que gerou firme reação da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), que entende que o gasoduto deve ser classificado como ativo de transporte, conforme a Constituição e a Nova Lei do Gás (lei 14.134/2021), que conferem à União o monopólio do transporte de gás natural e à ANP a atribuição de classificação de ativos de transporte.
Diante do desafio de sua autoridade federal pela Arsesp, a ANP inclusive abriu uma Consulta Pública (CP 10/23) que recebeu mais de 140 contribuições da sociedade em novembro de 2023. A ANP finalmente reiterou sua posição em 25/jul/2024, mantendo sua decisão de classificar o gasoduto Subida da Serra como ativo de transporte.
Ato seguinte, em 31/jul/2024 o governo paulista, representado pela Procuradoria Geral do Estado (PGE/SP), contestou a decisão da ANP e ajuizou uma ação (ACO 3688) no STF para questionar a competência da União e da ANP sobre o tema. Os argumentos apresentados pela PGE/SP podem ser assim resumidos:
- o GSS é um mero “reforço ao gasoduto de distribuição” já existente;
- o GSS não atende às características de gasoduto de transporte exigidas na legislação;
- o “interesse geral” defendido pela ANP é “meramente hipotético e indireto”;
- a decisão da ANP implica expropriação pela União de bem integrante da base de ativos da Comgás;
- a decisão da ANP gera risco à segurança operacional do abastecimento de gás na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP); e
- a decisão da ANP ameaça a estabilidade tarifária e gera insegurança jurídica e regulatória.
A ANP, por sua vez, reagiu aos argumentos da PGE/SP da seguinte forma:
- as características e conexões do GSS são suficientes para classificá-lo como duto de transporte;
- a classificação como ativo de transporte atende ao marco legal;
- a tese do “interesse geral” segue preceitos estabelecidos na Lei 11.909/09 (1ª Lei do Gás) e Lei 14.134/21 (Nova Lei do Gás);
- a expropriação do ativo nunca foi sugerida;
- não há risco ao abastecimento da RMSP pois há um gasoduto em operação em traçado paralelo ao GSS; e
- classificar o GSS como ativo de distribuição gerará impactos tarifários negativos a todos os consumidores atendidos pelo sistema integrado de transporte, inclusive aqueles localizados no estado de São Paulo.
A análise de todos os argumentos acima é detalhada no estudo “O papel do STF após decisão sobre a classificação do Gasoduto Subida da Serra” (na íntegra, em .pdf). Por limitação de espaço, exploremos apenas os penúltimos argumentos e contra-argumentos (itens “e” e “k” das listas acima).
A alegação da PGE/SP de que a classificação do GSS como duto de transporte implicará “risco à segurança operacional do abastecimento de gás canalizado” não é sustentada por várias evidências físicas e operacionais. Afinal:
- há gasoduto em operação em traçado quase idêntico ao GSS;
- redundâncias na rede de distribuição garantem o suprimento;
- a segurança operacional e de abastecimento da RMSP é também assegurada por rotas alternativas de suprimento de gás que complementam o GSS, mitigando os referidos riscos de interrupção.
Na verdade, os riscos e ineficiências surgem justamente quando o GSS é classificado como ativo de distribuição, pois o gasoduto Subida da Serra:
- duplica os custos de infraestrutura para atender ao mesmo mercado paulista atual;
- implica bypass do sistema integrado de transporte de gás, conectando fonte supridora diretamente na malha da Comgás;
- provoca esvaziamento da malha de transporte e aumento da tarifa;
- limita a competição e gera o isolamento de consumidores, que ficam dependentes de uma única fonte de suprimento de gás; e
- caracteriza verticalização e concentração de atividades, já que o Terminal de Regaseificação de São Paulo (TRSP) e a Comgás pertencem ao Grupo Compass.
Se o STF mantiver a decisão da ANP de classificar o GSS como ativo de transporte, o país reafirmará um compromisso com um modelo que permite a diluição dos custos de expansão da infraestrutura do setor de gás natural; contribuirá para o maior poder de escolha dos consumidores; e fortalecerá a segurança do abastecimento, combatendo a formação de mercados isolados.
Aliás, apenas um sistema integrado assegura que interesses nacionais prevaleçam sobre demandas locais, não importando o quão poderosas sejam as pressões locais.
O que está em jogo, neste momento é toda a arquitetura do setor de gás natural.
O respeito à Constituição, aos marcos legais e ao papel da ANP será visto como sinal importante para estimular a eficiência global das redes em um setor econômico estratégico para o desenvolvimento econômico e essencial para a transição energética.
Esse é o peso que recai sobre nosso Supremo Tribunal Federal.
Eduardo Müller Monteiro é diretor Executivo do Instituto Acende Brasil.
Patricia Guardabassi é gerente de Projetos do Instituto Acende Brasil.
Fabrizio Loes é economista do Instituto Acende Brasil.