Em entrevista na semana passada à Globonews, ao tratar das discussões a respeito da política para o gás natural no país, o atual Ministro do Ministério de Minas e Energia (MME), Alexandre Silveira, declarou que o gás natural é um bem essencial.
Essa declaração vem a calhar neste momento em que as tratativas sobre os potenciais desdobramentos da reforma tributária estão a todo vapor, inclusive para a indústria de petróleo e gás.
Por meio da proposta de emenda à Constituição 45/19, (PEC 45/2019), o Congresso Nacional avalia substituir a atual sistemática de tributação sobre o consumo, que conta com cinco tributos: IPI e PIS/Cofins (federal); e ICMS e ISS (estadual e municipal) por um sistema que se pretende mais simples, com apenas dois tributos.
São eles a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS, de competência federal) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS, de competência estadual e municipal), incidentes sobre operações com bens e serviços (inclusive direitos), com legislação nacional e alíquotas uniformes (haverá exceções, referidas pela PEC 45 como regimes fiscais específicos, favorecidos ou diferenciados).
O texto da PEC 45 aprovado pela Câmara dos Deputados prevê ainda a possibilidade de instituição de Imposto Seletivo (IS) com natureza extrafiscal que permitiria à União taxar bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, conforme definido em lei.
E a contribuição por estados e Distrito Federal sobre produtos primários e semielaborados produzidos nos respectivos territórios, para investimento em obras de infraestrutura e habitação.
Implicações da classificação do gás natural como bem essencial
A aprovação da PEC 45 será o primeiro passo rumo à implementação da reforma: parcela relevante das regras gerais aplicáveis aos novos tributos será definida pelo Congresso somente em momento posterior, via legislação complementar – inclusive a definição de contribuintes e momento de ocorrência do fato gerador – e ordinária.
Tal legislação infraconstitucional demanda logicamente menor quórum para sua aprovação, não gerando, portanto, o mesmo nível de segurança jurídica que a própria emenda à Constituição, à qual estará subordinada.
E é por esta razão que diversos setores da economia nacional estão se movimentando para demonstrar ao Congresso os respectivos impactos da PEC 45, de modo a eventualmente justificar a previsão de regimes diferenciados ou favorecidos no próprio texto constitucional e, a reboque, afastar potencial sujeição ao IS e/ou à contribuição pela legislação infraconstitucional.
Uma alternativa para garantir que o gás natural não venha a sofrer um tratamento tributário mais oneroso em decorrência da reforma seria constar expressamente na Constituição a sua condição de bem essencial.
A discussão sobre a essencialidade desse produto não é nova e já foi enfrentada por ocasião da edição da Lei Complementar nº 194, de 23 de junho de 2022, por meio da qual o Congresso Nacional alterou o Código Tributário Nacional para reconhecer expressamente que, para fins da incidência do ICMS, o gás natural seria considerado bem essencial e indispensável, e não poderia ser tratado como supérfluo.
Oportunidades para biogás e biometano
A esse respeito, vale comentar que a PEC 45 já traz a possibilidade de instituição de regime favorecido para biocombustíveis – de modo a assegurar tributação inferior a incidente sobre combustíveis fósseis –, o que poderia abranger em tese operações com biometano ou biogás.
Contudo, pelas peculiaridades das operações com gás natural, já se pode antever dificuldades de implementação desse tratamento diferenciado, sobretudo pela possibilidade de mistura do biometano com o gás natural de origem fóssil nos gasodutos utilizados para transporte e distribuição do produto.
Neste ponto, emerge outro antigo tópico que tangencia o setor de gás natural: o regime monofásico de tributação de combustíveis, que recebeu previsão constitucional na PEC 45.
Uma alternativa segura para implementação de regime fiscal favorecido para o biometano seria a tributação monofásica na origem, antes que fosse possível qualquer mistura de gases de fontes distintas.
Entretanto, embora não se tenha dúvida quanto ao seu emprego como combustível, o gás natural historicamente vem sendo tratado pela legislação tributária em apartado dos demais combustíveis sujeitos à tributação concentrada de PIS/Cofins ou à substituição tributária (e mais recentemente à monofasia) de ICMS.
Na nova sistemática, o gás natural poderá ser incluído no regime monofásico para IBS e CBS? Quais seriam os impactos de tal inclusão no processo de abertura do mercado de gás natural, ainda em formação e com dinâmica distinta dos demais combustíveis sujeitos à tributação monofásica?
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Gás como insumo agrícola, regimes especiais: as incertezas na PEC 45
E as discussões não param por aqui, pois apesar da natureza combustível do gás natural, é um fato que ele tem outras finalidades, a saber, por exemplo, a aplicação como matéria-prima em vários setores.
É o caso da transformação do gás natural em fertilizante para utilização no setor agropecuário. No texto atual da PEC 45, insumos agropecuários farão jus à redução de 60% do valor do IBS e da CBS.
Tal regra seria aplicável no fornecimento do gás natural como insumo para fertilizantes? Se sim, como garantir sua aplicação, se para o gás natural também for instituída a monofasia – a qual independerá da finalidade dos combustíveis, conforme atual redação da PEC 45?
Há ainda questões relativas ao fim dos regimes fiscais para aquisição de ativo imobilizado (como o Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura – Reidi e outros).
O texto da PEC 45 prevê a possibilidade de redução do impacto do IBS e da CBS sobre a aquisição de bens de capital – isso pode abrir espaço para criação de tratamentos diferenciados para aquisição de equipamentos para a indústria de gás natural?
Como se vê, há muitas dúvidas sobre potenciais impactos tributários da reforma tributária em seu formato atual para o seguimento de gás natural. Essa reflexão deverá continuar, ainda, nas próximas fases de implementação da PEC 45 de modo a resolver antigas complexidades enfrentadas pelo setor.
- Opinião | O impacto da reforma tributária sobre investimentos em petróleo e energia, por Tiago Severini
A PEC 45 delega à lei complementar a competência para definir o que será considerado destino, para fins de incidência dos novos tributos.
Há aqui evidente oportunidade para que o setor de gás natural firme em lei complementar a legitimidade de utilização do fluxo contratual para determinar o destinatário de suas operações, superando de uma vez por todas antigas discussões sobre a fungibilidade do gás natural, que se intensificaram com a abertura de mercado.
Hoje, esse conceito está previsto em tratamento tributário diferenciado sujeito à adesão em regulamentação editada pelo Conselho Nacional de Políticas Fazendárias (Confaz) e, como tal, não tem a força normativa de uma lei complementar.
Sem falar ainda em oportunidades de simplificação de obrigações acessórias, que demandam alto investimento de contribuintes e é tema particularmente caro ao setor de gás natural, devido em especial ao fluxo contínuo das moléculas nos gasodutos.
Por fim, a depender dos desdobramentos finais da reforma tributária, é fundamental ainda que agentes do setor se movimentem também para revisar seus contratos em decorrência dos impactos da alteração da sistemática de tributação, a fim de evitar surpresas indesejadas em seus negócios.
De acordo com a PEC 45, o IBS e CBS serão cobrados por fora, ao contrário do ICMS e PIS/Cofins ora incluídos no preço de mercadorias.
Jayme Freitas e Rafaela Canito são, respectivamente, sócio e counsel de Tributário do Lefosse, com atuação nos setores de petróleo e gás, energia e em projetos de infraestrutura.
Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.
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