Tributação

Transmissão e geração de energia: preocupações com o relatório da CAE sobre a reforma tributária

A introdução do IBS, notadamente, cria complexidades considerando que as suas alíquotas poderão variar a depender, por exemplo, da localização de cada agente, escreve Diogo Olm Ferreira

Diogo Olm Ferreira, advogado no VBSO Advogados (Foto: Divulgação)
Diogo Olm Ferreira é advogado no VBSO Advogados (Foto: Divulgação)

No dia 29 de outubro de 2024, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado Federal divulgou um relatório contendo sugestões de alteração ao Projeto de Lei Complementar (PLP) 68, que regulamenta a reforma da tributação do consumo conforme a Emenda Constitucional nº 132/2023. Embora o PL 68 esteja tramitando oficialmente na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o relatório da CAE pode influenciar os próximos passos da tramitação no Senado Federal. Logo, o documento divulgado pela CAE merece uma análise cuidadosa.

O relatório é extenso (mais de 400 páginas) e traz mais de 70 sugestões de mudanças ao PL 68, incluindo propostas específicas para operações de energia elétrica. O foco desta análise repousa sobre os reflexos negativos dessas sugestões em relação à atividade de transmissão de energia, com adição de breve comentário sobre reflexos indiretos que poderão ser sentidos por geradoras de energia.

Diferimento nas operações com energia elétrica

Regras de diferimento para operações com energia vem sendo pleiteadas por inúmeras associações representativas de segmentos do setor elétrico desde a tramitação na Câmara dos Deputados. Assim que o PL 68 chegou ao Senado, inclusive, diversas emendas foram apresentadas para incluir previsões que deslocariam a incidência de IBS e CBS para o momento do fornecimento ao consumidor final.

Uma das propostas trazidas no relatório da CAE é a criação de uma regra de diferimento para a incidência de IBS e CBS, mas com um escopo restrito: o diferimento seria aplicado apenas a operações envolvendo geração, comercialização e distribuição de energia elétrica. O serviço de transmissão de energia não estaria sujeito ao diferimento.

Essa diferenciação consta expressamente na página 383, em que o relatório indica: “Diferimento da cobrança do IBS e da CBS incidente nas operações com energia elétrica para o momento do consumo, à exceção da transmissão de energia elétrica”.

Para a transmissão, sugere-se que o imposto seja devido “no momento em que se tornar devido o pagamento à concessionária do serviço de transmissão”.

Na prática, isso não alteraria a atual previsão do PL 68, permanecendo a dificuldade prática que tivemos a oportunidade de detalhar anteriormente. Em síntese, as transmissoras de energia realizam faturamento contra milhares de agentes conectados à rede básica de transmissão, levando em conta o aviso de crédito (AVC) disponibilizado pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (NOS).

Todas essas operações seriam tributadas no momento que os respectivos pagamentos se tornassem devidos. Ainda que a incidência atual de PIS e de COFINS também ocorra nessas operações, a introdução do IBS, notadamente, cria complexidades considerando que as suas alíquotas poderão variar a depender, por exemplo, da localização de cada agente. Essa questão será retomada em instantes.

Falta de diferimento para a transmissão: reflexos para geradoras

Antes, vale notar que as sugestões da CAE também podem criar distorções em relação a outro segmento do setor elétrico. Afinal, geradoras de energia poderão contar com diferimento da incidência de IBS e de CBS caso realizem vendas apenas para comercializadoras (ou seja, sem fornecimento para consumo).

No entanto, como a CAE sugere que a transmissora continue tributando todas as suas operações, o encargo de uso do sistema de transmissão pago pela geradora será onerado por esses novos tributos. Consequentemente, e considerando que as transmissoras repassarão o aumento do ônus tributário, as geradoras pagarão mais caro pela utilização da rede básica.

Naturalmente, existirá possibilidade de apropriação de créditos. No entanto, não existirão débitos de IBS e CBS em virtude do diferimento. Geradoras nessa situação dependerão do ressarcimento de saldos credores. Não há dúvida de que o PL 68 veicula promessa de devolução, como regra, em 180 dias, com possibilidade de prazos ainda menores, por exemplo, no caso de contribuintes de enquadrados em programas de conformidade fiscal.

Apesar de torcer para que a promessa se concretize, a desconfiança é a mãe da segurança, especialmente diante de inúmeras tentativas do governo federal em restringir compensação de créditos tributários nos últimos anos. Além disso, ainda que ocorra um descasamento de seis meses, as peculiaridades do mercado de crédito e dos reflexos da inflação no Brasil demanda uma avaliação sobre os impactos da sugestão a CAE para o fluxo de caixa das geradoras.

Aliás, a existência desse potencial acúmulo de créditos contraria a finalidade de várias outras previsões do PL 68. Isso porque existem inúmeras previsões para desonerar a implementação de projetos de infraestrutura ou aquisição de certos bens, com afastamento da incidência de IBS e CBS, mas sem que haja apropriação de créditos. Basta verificar que o PL 68 assegura a continuidade do Reidi, além de criar o Regime de Bens de Capital. Manter a tributação dos serviços de transmissão prestados a uma geradora, por propiciar acúmulo de créditos, contraria a lógica subjacente a esses regimes especiais.

Questões relativas ao local de ocorrência do fato gerador

O relatório da CAE também aborda o “local da ocorrência do fato gerador” em serviços de transmissão. Esse é um critério determinante para identificar o estado e município que terão competência para definir a alíquota de IBS.

Objetivamente, a atual redação do PL 68 sugere que a operação de transmissão ocorre onde localizado o estabelecimento principal do adquirente (isto é, o seu estabelecimento matriz). Entretanto, o relatório da CAE sugere que o “local da operação” seja o de “entrega ou disponibilização”, tanto no caso de operações para consumo de energia quanto para serviços de transmissão.

Ao que parece, os serviços de transmissão, na medida em que retirados da regra de diferimento, foram tratados lado a lado ao fornecimento de energia ao consumo. Ou seja, fornecimento ao consumo e transmissão foram tratados em conjunto, tanto para fins do diferimento quanto para definir o “local da operação”. Todavia, existem inúmeras diferenças em relação a cada uma dessas situações, justificando tratamento. E essa diferenciação, vale dizer, é necessária ainda que a atividade de transmissão não seja submetida a uma regra de diferimento.

O critério sugerido pela CAE introduz desafios práticos para as transmissoras e desconsidera a natureza do serviço de transmissão. Isso porque o critério de localização física (“local da entrega ou disponibilização”) desconecta-se do critério financeiro estabelecido pelo AVC, inviabilizando a definição adequada das alíquotas de IBS e CBS. Ao vincular o local da operação à “entrega” ou “disponibilização” da energia, a sugestão presume uma relação física entre a linha de transmissão e o consumidor final. No entanto, como o serviço de transmissão abrange todos os agentes conectados à rede básica (geradoras, distribuidoras e certos consumidores livres), a cobrança com base em “entrega” ou “disponibilização” carece de embasamento técnico.

Recorrendo a um exemplo, significa que uma transmissora responsável por uma linha em São Paulo, realiza faturamento para agentes localizados em Pernambuco. Aqui, temos um adquirente em Pernambuco, no sentido de pessoa responsável por pagar a contraprestação do serviço. No entanto, a alíquota aplicável seria definida pelo local da “disponibilização” da energia, o que ocorre apenas em São Paulo (onde está a linha de transmissão). Pela sugestão da CAE, a alíquota de IBS seria definida pelo Estado de São Paulo. No entanto, o pagamento realizado pelo agente localizado em Pernambuco não tem qualquer relação com o montante de energia que passa pela linha localizada em São Paulo. Ainda que se saiba a alíquota, não existe critério na legislação atual para definir um valor para o serviço que tenha sido prestado em São Paulo (e faturado para alguém localizado em Pernambuco).

Eis aqui o ponto mais preocupante do relatório da CAE em relação às transmissoras de energia: adotando-se o “local da operação” proposto para os serviços de transmissão, há o risco de que o IBS e CBS nasçam com previsões que geram uma impossibilidade prática de apurar os montantes devidos. Isto é, eventual lei que reproduzisse o “local da operação” acima seria publicada já com necessidade de correção, sob risco de não ser exequível em relação à atividade de transmissão. Constatando essa distorção enquanto o PL 68 tramita, é o caso de evitá-la urgentemente.

Considerações finais: sugestões para a disciplina tributária

A criação de regras de diferimento para operações com energia elétrica é extremamente benéfica. No entanto, excluir determinado segmento do escopo da sua aplicação não é coerente e gera o risco de distorções graves, não apenas para as transmissoras, quanto para as geradoras, de modo indireto.

Esse problema é resolvido incluindo os serviços de transmissão no rol de operações abrangida pela regra de diferimento, de modo que as transmissoras recolheriam IBS e CBS apenas em relação ao faturamento realizado para consumidores livres conectados à Rede Básica.

Além disso, a recomendação da CAE sobre o local da operação cria um descompasso entre a lógica financeira e a localização física dos serviços de transmissão, o que pode acarretar problemas operacionais e tributários para as transmissoras de energia.

Para evitar esse outro grave problema, o local da operação deveria ser definido com base na localização do estabelecimento principal do adquirente, entendido como aquele responsável por realizar pagamentos para a transmissora, seguindo o critério do ONS. Com isso, seria garantido um tratamento tributário mais adequado e coerente com a realidade operacional da atividade de transmissão de energia.

Para evitar esse outro grave problema, o local da operação deveria ser definido com base na localização do estabelecimento principal do adquirente, entendido como aquele responsável por realizar pagamentos para a transmissora, seguindo o critério do ONS. Com isso, seria garantido um tratamento tributário mais adequado e coerente com a realidade operacional da atividade de transmissão de energia.

Diogo Olm Ferreira é sócio da área de Direito Tributário do VBSO Advogados, bacharel e mestre na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, além de especialista em Direito Tributário internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).