O Brasil ultrapassou a marca de 250 mil sistemas de geração distribuída de energia elétrica conectadas à rede – painéis solares em telhados ou terrenos, aproveitamento da biomassa, centrais geradoras hidrelétricas de até 5 MW, entre outros projetos que se enquadram nessa modalidade.
O número de instalações em 2019 foi três vezes maior do que no ano anterior: foram mais de 90 mil unidades instaladas, segundo os dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), em comparação com cerca de 30 mil em 2018.
O ritmo de expansão da geração distribuída acelerou definitivamente, impulsionado pela queda nos preços dos equipamentos, pela valorização da energia limpa obtida de fontes renováveis e, principalmente, pelo significativo aumento nos preços da energia elétrica.
As crises sanitárias e econômicas provocadas pela pandemia da covid-19 conteve um pouco a velocidade do crescimento, mas estimamos que o ritmo será retomado quando o País voltar à rotina. O otimismo se deve ao fato de que os sistemas de GD representam uma economia financeira considerável para os consumidores e contribuem para a criação de um mundo mais sustentável.
Todavia, embora haja avanços, o mercado nacional ainda é pequeno na comparação com os outros: Austrália, China, Estados Unidos e Japão, por exemplo, já ultrapassaram dois milhões de unidades conectadas à rede.
O Brasil soma 3,2 GW de potência instalada considerando todas as fontes renováveis usada para GD, sendo que a maior parte é relativa à energia solar fotovoltaica, 2,9 GW. Enquanto isso, o Japão e a Alemanha, com populações bem menores, têm respectivamente 61GW e 48GW de potência somente na fonte solar.
Além do reduzido impacto ambiental, a geração fotovoltaica é a que mais gera empregos entre as energias renováveis. No mundo, ela emprega 3,4 milhões de pessoas direta e indiretamente, segundo a Agência Internacional de Energia Renovável (IRENA). Estima-se que para cada megawatt instalado sejam gerados 30 postos de trabalho.
São benefícios como esses e a perspectiva de desenvolvimento de um sistema elétrico mais eficiente, resiliente e com custos menores que estão sob ameaça com a discussão em torno da revisão da regulamentação da geração distribuída, iniciada no ano passado.
É consenso no setor de que há necessidade de estabelecer definições normativas que tragam mais transparência e confiança para esse mercado, mas as propostas apresentadas podem levar ao estrangulamento de um setor ainda em vias de consolidação.
Os impasses subsequentes à discussão a Revisão Normativa nº 482, publicada pela Aneel em 2012, tornaram evidente a necessidade que a geração distribuída, instrumento fundamental para o desenvolvimento sustentável do Brasil, seja tratada em Projeto de Lei específico. Nesse sentido, há duas propostas para a criação de uma espécie de marco regulatório para a GD.
Uma delas, o PL 616/2020, desconsidera os apelos da sociedade por energia limpa e extingue, a partir de 2023, o Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE), por meio do qual os consumidores que hoje investem em sistemas próprios de geração de energia podem disponibilizar o excedente para a distribuidora local (que vende essa energias aos demais consumidores), obtendo créditos em energia para ser consumida quando seu sistema não estiver gerando – à noite, por exemplo, no caso dos painéis fotovoltaicos.
As pessoas que, por motivos econômicos ou por consciência ambiental, investem em GD, estarão sujeitas aos preços da energia no mercado spot, o Preço de Liquidação das Diferenças (PLD).
Outro projeto, elaborado por uma equipe técnica, em parceria com o deputado federal Lafayette Andrada (Republicanos-MG), estabelece normas compatíveis com o atual estado de desenvolvimento do mercado de geração distribuída no Brasil, além de incluir um aspecto fundamental, que é a garantia de remuneração às distribuidoras.
De acordo com o texto, os benefícios para os produtores que já têm sistemas próprios instalados seriam mantidos e para as novas instalações, eles valeriam até 2021. A partir de 2022, haveria a diminuição gradual dos estímulos.
A proposta cria quatro categorias de geração distribuída: autoconsumo remoto; consumo remoto no projeto compartilhado comercial e residencial e microgeração local, cada uma com regras distintas após o início da migração e a cobrança equivalente a 10% da Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD) a partir de 2022, com aumento a cada dois anos, atingindo a cobrança de 100% do fio B – referente à distribuição – em dez anos.
Assim que as atividades do Congresso Nacional voltarem à normalidade, essa proposta será protocolada como emenda substitutiva dentro de um projeto já em tramitação na casa, conforme foi acordado com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.
A regulamentação por meio de projeto de lei foi a alternativa encontrada por especialistas e entidades do setor, em contraponto à proposta de revisão da REN 482/2012 conduzida no ano passado pela Aneel, que ainda se encontra em aberto.
A principal modificação está no mecanismo de compensação pela energia injetada na rede. A agência de energia propunha retirar os incentivos de forma drástica, para remunerar as distribuidoras pelo uso da rede de distribuição. Além de um prazo muito curto de transição, a fórmula usada reduziria em até 65% o valor da energia injetada.
A proposta da Aneel gerou grande repercussão no mercado, com a avaliação de que teria impactos negativos, desestimulando novos investimentos, com risco inclusive de inviabilizar a expansão geração distribuída. Sem falar no efeito sobre a geração de empregos: de acordo com estimativas do setor, se mantidas as regras atuais serão gerados mais de 600 mil novos postos de trabalho até 2035.
Adicione-se a isso o fato de que a geração distribuída ainda está em amadurecimento no Brasil, representando apenas 0,3% da matriz energética. A experiência internacional mostra que a criação e o desenvolvimento da GD se dão por meio de normas regulatórias de incentivo.
As políticas são formuladas num primeiro momento para incentivar a geração distribuída. Em todos os países bem-sucedidos nesse segmento, os aprimoramentos são feitos somente quando a geração distribuída se torna representativa na matriz, adequando-se a remuneração ao estágio de desenvolvimento dos sistemas e também considerando a redução nos custos de aquisição e instalação de equipamentos.
Dois exemplos em especial, trazem lições importantes. Considerado referência na regulação do segmento, o estado da Califórnia, nos Estados Unidos, promoveu a revisão das normas quando a geração distribuída atingiu 5% de participação no sistema elétrico, estabelecendo a cobrança do equivalente a 10,5% da tarifa de energia elétrica para injetar energia excedente na rede, percentual muito inferior aos propostos pela Aneel.
A Espanha é um caso emblemático para a atual discussão em torno da mudança nas regras da geração distribuída. Com a necessidade de aumentar o uso fontes renováveis o país experimentou um boom na instalação de sistemas solares fotovoltaicos. Em 2007, a quantidade de instalações cresceu cinco vezes em comparação com o ano anterior.
A combinação da política de incentivos adotada pelo governo e a queda nos custos dos equipamentos manteve o aumento no ano seguinte. Então, o governo espanhol modificou o marco regulatório e cortou incentivos, provocando a paralisação de novos projetos. Somente, uma década depois, com a adoção de um sistema de compensação de energia injetada similar ao que temos no Brasil, os projetos foram retomados. Assim como na Espanha, as novas regras propostas podem inviabilizar grande parte dos projetos de geração distribuída por aqui.
As vantagens da geração distribuída são muitas. Ela apresenta reduzido impacto ambiental e contribui para a diversificação da matriz energética ao usar fontes renováveis, além da hídrica, que, como sabemos vem sendo afetada pelo aquecimento global. Além disso, diminui significativamente as perdas elétricas durante o transporte, já que a energia é consumida em local próximo à geração.
Essas perdas chegam a 40% ao longo dos quilômetros de redes de transmissão e distribuição e são cobradas na conta de luz de todos os consumidores. Ao aproveitar o potencial energético próprio de cada região, a geração distribuída possibilita levar energia a regiões remotas, nas quais o fornecimento é ineficiente ou inexistente – regiões que são atendidas exclusivamente por geradores a óleo diesel ou que em situações críticas exigem o acionamento de usinas térmicas alimentadas por combustíveis fósseis, mais poluentes e mais caros.
Segundo estimativas, a postergação de investimentos em novas usinas de geração, linhas de transmissão e infraestrutura de distribuição, redução de perdas, alívio na operação do sistema, diminuição do acionamento de termelétricas mais caras e poluentes, proporcionadas pelas regras atuais, representam uma economia de mais de R$ 10 bilhões. É imperativo que a análise dos custos e benefícios da geração distribuída considere esses aspectos, assim como a emissão evitada de toneladas de CO2 na atmosfera.
Somado a tudo isto, o aquecimento global vem causando redução na vazão dos rios que abastecem as hidrelétricas no país, fenômeno que deve se acentuar. A ruptura de modelo centralizado, com poucas alternativas, passa obrigatoriamente pela maior autonomia dos consumidores e mais condições de escolha.
O setor já vem amargando os efeitos do processo de revisão das regras devido às incertezas e o prolongamento das tramitações dos projetos no Congresso, agora somados aos impactos da pandemia do coronavírus.
O surto do vírus na China, no início do ano, provocou interrupções no fornecimento de equipamentos, tais como painéis fotovoltaicos.
A valorização do dólar também encarece os custos dos projetos que dependem de componentes importados. E, quando a pandemia chegou ao Brasil, o mercado foi impactado também pelo isolamento social adotado como medida para conter a contaminação da Covid-19.
A geração distribuída de energia elétrica pode contribuir para a retomada da economia pós-crise. Políticas restritivas, que tolhem o mercado e inviabilizam investimentos privados, serão a pior escolha para um País rico em recursos, com grande potencial de crescimento e que pode se tornar um modelo mundial em diversificação da matriz com fontes renováveis hídricas e não-hídricas.
O marco legal da GD deve chegar até o final deste ano – a expectativa é que ele aponte diretrizes que promovam o crescimento, o desenvolvimento sustentável do Brasil e a geração de emprego e renda por meio de uma economia de baixo carbono e para uma matriz energética ainda mais limpa.
Carlos Evangelista é presidente da Associação Brasileira de Geração Distribuída (ABGD).