Energia

Dez anos após criação da geração distribuída, ICMS ainda preocupa

Consumidores ainda precisam avaliar negociação de regimes especiais ou medidas judiciais para afastar imposto, escrevem João Paulo Cavinatto, Rafaela Canito e Gabriela Cavalcanti

Dez anos após criação da geração distribuída, ICMS ainda preocupa. Na foto, terraço de prédio com painéis fotovoltaicos para GD solar
O SCEE permite ao consumidor que produz energia, em volume superior ao necessário para uso próprio, injetar o excedente na rede (Foto: Solarimo/Pixabay)

Este mês faz dez anos da edição da Resolução Normativa Aneel nº 482 de 17 de abril de 2012, que criou o Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE) e permitiu que consumidores do mercado cativo de energia pudessem gerar a própria energia elétrica a partir de fontes renováveis, nas modalidades de micro e minigeração distribuídas (GD).

Após uma década da criação dessa sistemática, consumidores que optam pela GD ainda enfrentam os mesmos desafios tributários relacionados às discussões sobre a incidência de ICMS sobre geração distribuída

Na prática, o SCEE permite ao consumidor que produz energia — em volume superior ao necessário para uso próprio — injetar o excedente na rede.  Os créditos de energia, equivalentes à energia injetada, podem ser utilizados em até 60 meses, para abatimento em faturas de meses subsequentes.

Com a edição da Lei Federal nº 14.300, de 6 de janeiro de 2022, o Brasil deu contornos legais a importantes definições regulatórias — embora não se trate de uma norma com viés tributário.

A legislação reconhece expressamente, por exemplo, que a injeção de energia na rede, no SCEE, é realizada pela unidade consumidora a título de empréstimo gratuito (sem natureza mercantil, portanto)

Isenção limitada e incertezas na Justiça

Essa natureza já estava claramente prevista na Resolução nº 482 desde a sua redação original. Contudo, o Conselho Nacional de Políticas Fazendárias (Confaz), ao editar o Convênio ICMS nº 16, de 22 de abril de 2015, e autorizar a isenção de ICMS em determinadas operações internas de energia elétrica, realizadas no âmbito do SCEE, sugere que as operações de GD em geral configurariam fato gerador do ICMS.

Até então, como era de se esperar, contribuintes vinham obtendo provimentos judiciais favoráveis pela inexistência de fato gerador do ICMS em operações com energia elétrica realizadas no SCEE. A edição do Marco Legal da GD foi comemorada como um fortalecedor legal para a tese.

Todavia, uma recente sentença do Tribunal de Justiça do Estado São Paulo (TJ-SP), ao tratar da incidência de ICMS em GD, argumentou que o fato gerador do ICMS compreende operações relativas à circulação de mercadoria, independentemente de serem mercantis ou não. O entendimento indica que a controvérsia ainda não está perto de uma resolução feliz.

Esse entendimento de Primeira Instância está, evidentemente, na contramão dos posicionamentos reiterados dos Tribunais Superiores — que vêm restringindo a incidência do imposto somente em operação realizada com intuito de lucro e em que haja transferência de titularidade, tal como definido em casos sobre incidência do ICMS na transferência entre estabelecimentos do mesmo titular e na demanda contratada de energia elétrica.

Debate não se limita à natureza da operação em si

Mesmo aqueles contribuintes que optam por não discutir a ausência do fato gerador do ICMS nas operações com energia elétrica realizadas no âmbito do SCEE enfrentam desafios relacionados à abrangência do Convênio nº 16.

O convênio está, atualmente, limitado a casos de GD com potência até 1 MW (enquanto a redação atual da Resolução nº 482 abrange usinas com potência de até 5 MW) e pressupõe que a energia consumida tenha sido gerada pelo mesmo titular (ainda que em unidades consumidoras distintas) — o que deixa de fora do benefício a GD realizada na modalidade compartilhada (também já abrangida pela redação atual da Resolução nº 482).

É possível que, mesmo sem alteração do Convênio 16, a questão seja parcialmente resolvida em relação à geração compartilhada, se considerarmos que, do ponto de vista prático, o Marco Legal da GD permitiu a unificação da titularidade da usina de GD operada por diversos partícipes (consórcio, cooperativa, condomínio civil voluntário e outros).

De todo modo, em meio à crise energética, seria razoável imaginar que unidades da federação se ocupem de desonerar as operações com energia elétrica provenientes de fontes alternativas, ainda que o Convênio 16 não tenha sido atualizado para abarcar as novas disposições da Resolução nº 482.

Ampliação pontual vence no fim de 2022

Na tentativa de superar esses obstáculos, ainda que temporariamente, Estados como Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro instituíram normas que ampliaram, inicialmente, a isenção para potência de microgeração até 5 MW e para casos de geração compartilhada, no contexto da convalidação de benefícios fiscais concedidos sem respaldo em Convênio ICMS.

Porém, mesmo tais benefícios têm vigência limitada ao final deste ano.

Ainda é possível que esses Estados ampliem o prazo de vigência desse benefício se lançarem mão da autorização incluída pela Lei Complementar nº 186, de 28 de outubro de 2021 — que permitiu aos Estados prorrogarem os benefícios e incentivos fiscais convalidados até 31 de dezembro de 2032.

Se não houver essa prorrogação ou se nenhum novo Convênio for editado pelo Confaz, tudo indica, no entanto, que esses Estados retomarão a cobrança do ICMS sobre essas operações — o que vai, juridicamente, de encontro tanto à regra matriz de incidência do ICMS, quanto à tendência dos precedentes mais recentes dos Tribunais Superiores.

Passados mais de dez anos da criação da geração distribuída no Brasil, o ICMS ainda preocupa consumidores de energia elétrica produzida em GD, que precisam avaliar a possibilidade de negociar regimes especiais com fiscos estaduais ou mesmo ponderar a conveniência de ingressar com medidas judiciais para afastar a incidência do imposto sobre suas operações.

Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.

João Paulo M. Cavinatto, Rafaela Canito e Gabriela Cavalcanti são, respectivamente, sócio e advogadas da área de Tributos Indiretos e Direito Aduaneiro do Lefosse, escritório que oferece consultoria para geradoras, comercializadoras, transmissoras, distribuidoras e grandes consumidores de energia.