Agir de maneira rápida e eficiente frente a um problema para reduzir seu impacto é uma orientação básica e primordial para superar um contexto adverso.
O Brasil pecou nesse quesito para gestão dos efeitos da pandemia de covid-19, resultando em quase 700 mil mortes, além dos danos econômicos.
Quais serão os resultados que colheremos com o choque dos preços do petróleo?
Embora haja enorme celeuma com esse assunto, o que me motiva escrever este artigo é que, apesar do farto noticiário que informa acerca das discussões entre poderes executivo e legislativo, além da abordagem em comentários de diversos especialistas, não consegui detectar a apresentação dos principais parâmetros que deveriam circunstanciar a questão no Brasil.
Penso ser fundamental, antes de qualquer que seja a opinião acerca da melhor abordagem para o problema, saber bem do que se está falando.
Como o texto não é curto, adianto a síntese dos argumentos:
- Existe um excesso de arrecadação gerado pelos aumentos dos preços do petróleo, sobrecarregando os contribuintes, sem que haja retorno, já que o mesmo será diluído no resultado fiscal negativo decorrente do processo inflacionário gerado;
- Existe espaço fiscal (recursos financeiros) para tratar a questão e medidas são necessárias para utilizá-lo em proveito de melhores resultados fiscal, econômico e social;
- A preocupação fiscal não pode se restringir ao controle dos dispêndios, mas deve priorizar o próprio resultado final;
- O foco do problema deve ser o controle inflacionário, por meio da mitigação dos aumentos de custos da economia, e não o controle dos preços de todos os combustíveis;
- Tratar a atual crise de aumento de custos na economia é fundamental para proteger o PIB e prevenir o aumento de desemprego e da crise social.
Para suavizar a tensão inicial, proponho a seguinte metáfora: um destacado produtor de milho, beneficiado com uma sucessão de aumentos de preços desta commodity, se encontra perturbado com o proporcional aumento de preços para as pamonhas que consome.
Um leitor mais ansioso poderá dizer: já entendi a comparação, mas não é o governo que produz petróleo, são empresas. Calma.
A riqueza e os custos do petróleo
Government take é uma expressão utilizada por estudiosos da indústria do petróleo, para efeito de comparações, que representa o percentual de participação nas receitas da produção de petróleo e gás natural retido pelo governo de cada país.
Para se ter ideia, esse percentual das receitas passa facilmente de 60% entre os principais países produtores. No Brasil, espera-se superar 80% nos principais campos do pré-sal. Isso significa dizer que os governos são os principais “donos” e beneficiários do aumento de preços do petróleo.
- Leia em epbr: A verdade sobre o nível de produção das refinarias da Petrobras, por Rodrigo Lima e Silva
Essa apropriação das receitas da produção se dá sob diversos títulos, entre tributos e outras formas, denominadas no Brasil como participações governamentais, entre elas os famosos royalties.
Pode-se consultar a respeito na página da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) na internet. Neste link
Há também didática explicação na publicação do Relatório Fiscal da Petrobras de 2021. Ambos são fonte da maioria dos dados utilizados neste artigo.
Por que introduzo esse aspecto? Porque é fundamental para a abordagem fiscal e financeira, até então muito repercutida como entrave para a gestão da crise, sem que se apresentem dados de forma mais completa e sistêmica.
Apenas conjecturam estimativas bastante simplificadas sobre os dispêndios decorrente de eventuais subsídios aos preços dos combustíveis e possíveis fontes dos recursos, sem a devida mensuração.
Excedente de arrecadação
Pois bem. Vejamos o que os números resultantes dos aumentos de preços do petróleo nos trazem em termos fiscais.
Dados publicados pela ANP revelam que, somente entre royalties e participações especiais, o Brasil arrecadou em 2021 R$ 77,459 bilhões, contra R$ 46,707 bilhões em 2020.
Ou seja, superior ao ano anterior em R$ 30,752 bilhões — um aumento de 65,84%.
Detalhe: a produção total de 2021 foi 1,5% menor que a de 2020, que significa que o crescimento da receita se deu pelo aumento dos preços.
E nem entraram nesta conta os 3,9 bilhões de barris que União recebeu dos contratos de partilha de produção (que devem crescer aceleradamente, a partir de 2022).
Com menor precisão (não obtive valores agregados do setor), também é possível sondar os reflexos no campo tributário com os dados dos resultados de 2021 publicados pela Petrobras, já que ela responde por mais de 70% da atividade do setor de petróleo e gás natural no Brasil.
Para simplificar, vejamos apenas 2 itens: o ICMS (estadual) e o IR/CSLL (federal).
O relatório fiscal da Petrobras de 2021 informa que a empresa recolheu R$ 23,5 bilhões relativos ao imposto de renda e contribuição social sobre o lucro líquido, montante superior em R$12,7 bilhões em relação a 2020 — um aumento de 117%. Relativo ao ICMS, a Petrobras recolheu, em 2021, 43% a mais que o ano anterior, totalizando um acréscimo de R$ 28 bilhões.
Considerando somente os tributos federais e as participações governamentais, a Petrobras recolheu R$ 46,1 bilhões a mais em 2021.
A Petrobras também anunciou o pagamento de R$ 37,3 bilhões em dividendos. A União detém 36,75% do capital da empresa.
Os dados pesquisados permitem supor que o excedente de arrecadação, federal e estadual, proporcionado pelo aumento dos preços no petróleo e dos combustíveis em 2021, pode ter ultrapassado R$ 100 bilhões e, em 2022, deverá ser significativamente maior.
A média dos preços do petróleo tipo Brent, em 2021, foi de cerca de US$ 70 o barril. Esta segunda semana de março de 2022 está encerrando com a cotação a US$ 111 o barril, o que que equivale a um valor superior 58,57% em relação à média de preço do ano anterior.
Há poucos dias, a cotação do Brent se aproximou de US$ 140 o barril e poderá ultrapassar este valor conforme os desdobramentos da crise internacional.
Deve-se observar que, em 2022, essas receitas governamentais devem crescer mais do que a proporção do aumento de preços do petróleo por conta de uma expectativa maior de produção e o efeito do impacto do aumento da rentabilidade dessa atividade.
Desse modo, é possível deduzir que, quanto maior o aumento de preço do petróleo maior a margem fiscal gerada para uma política governamental. Ou seja, no caso do Brasil, este próprio fator negativo a ser enfrentado gera meios para tratá-lo, que permite construir uma equação para balanceamento da questão.
Deixo um pouco as contas de lado para conjecturar quais parâmetros entrariam nessa equação. Sabemos que o fenômeno aumento dos preços do petróleo é uma variável incontrolável. Porém seus efeitos são passíveis de mitigação (variáveis controláveis, dependentes de outras variáveis — fiscais).
Quais são as variáveis controláveis? Os preços dos derivados do petróleo vêm de forma imediata.
Impactos inflacionários
Mas, espere um pouco. A inflação não é também um efeito dos aumentos? Se aumento de preços nos derivados do petróleo pode ser mitigado o respectivo impacto inflacionário também pode, consequentemente, ser mitigado. E por que se adicionaria na equação esta variável, tornando-a mais complexa?
Basicamente, dois aspectos explicam.
O impacto inflacionário é fundamental para a determinação das variáveis fiscais que irão dar solução à equação. Segundo, e tão importante quanto, é o foco do problema na gestão da crise.
Novamente recorrendo à metáfora, o aumento de preços do petróleo é o agente causador da enfermidade, mas a inflação é o que representa a doença.
O aumento dos preços dos derivados é o mecanismo responsável por induzir a enfermidade que, uma vez provocada, ganha escala gerando uma série de efeitos danosos à economia e à vida da população, tornando-se, inclusive, autônoma ao agente causador — tenderá a persistir, mesmo sem novos aumentos, ou a regredir menos que uma eventual queda de preços do petróleo.
Portanto, ainda que seja relevante o impacto direto aos consumidores em geral, não se demonstra que esse deva ser o foco principal de uma estratégia para a crise, a não ser por argumentos demagógicos.
Qual a vantagem de ter focos claros e prioridades definidas para uma gestão de crise? Eficiência. Quando se tem recursos limitados, não é possível resolver todos os problemas simultaneamente.
A primazia do controle do impacto inflacionário sobre o impacto de preços ao consumidor geral é facilmente observada por beneficiar diretamente toda a população e não somente os consumidores imediatos dos combustíveis.
Evidentemente, existem os casos especiais, como os das pessoas de baixa renda e os preços do GLP.
Portanto, é preciso separar as necessidades inquestionáveis de assistência social, da política macroeconômica de proteção à economia nacional, para não ser contraproducente na alocação de recursos.
Com focos bem definidos, ganha-se em eficiência, podendo se direcionar esforços, também com visão microeconômica, para os segmentos mais sensíveis ao aumento de custos com os preços dos derivados do petróleo.
Então, necessita-se de um adequado mapeamento dos setores da economia e suas respectivas sensibilidades aos preços dos derivados do petróleo. Sabe-se que o Brasil tem uma matriz de transportes fortemente sensível à variação de preços do diesel.
Além disso, não devem ser desconsiderados outros setores importantes da economia, impactados com os insumos provenientes do petróleo, como o agrícola, a indústria química e até a de geração de energia, alcançando, além dos combustíveis tradicionais, o querosene de aviação, a nafta e o gás, por exemplo.
Enfim, é a sensibilidade dos custos de cada setor ao aumento dos preços do petróleo a sinalizar o critério racional para uma política de mitigação de impacto inflacionário.
Por que comento o óbvio? Porque não vejo o devido aprofundamento da questão.
Se a pandemia causou o estrago que conhecemos, são previsíveis os desdobramentos de uma crise dos preços dos derivados de petróleo no Brasil.
Sim, particularmente nós que temos uma matriz econômica ineficiente, seja no aspecto tributário, de produtividade ou de custos no geral.
Além do dano social diverso, tornando mais aguda a crise provocada pela pandemia, espera-se a retração econômica, a perda de competitividade dos produtos exportados, o aumento do câmbio, dos juros e do desemprego. Devo lembrar que a crise é mundial e isso também trará fortes pressões externas para o aumento da inflação.
Por outro lado, nossa condição de produtor e exportador de petróleo nos possibilita inverter a desvantagem em vantagem competitiva.
Como o atual fenômeno do aumento dos preços do petróleo e da inflação são mundiais, se o Brasil estabelecer uma política eficiente de mitigação, o fato de haver maior peso dos derivados do petróleo nos custos da economia nacional, comparativamente aos outros países, pode fazer com que nossos produtos fiquem mais competitivos nos mercados internacionais em relação aos países que não conseguirem mitigar o aumento de custos em suas cadeias produtivas.
E pode, ao mesmo tempo, tornar menos drástico o impacto nos preços de todos os produtos internos (dos quais cito apenas o principal: alimentação).
Creio não ser necessário explicar isso. Apenas vou ilustrar com um exemplo recente de como é difícil, com os nossos custos, manter a competividade em um produto no qual somos campeões, como a soja, em uma matéria deste mês, que relata perda de concorrência para o produto americano.
Volto às contas. Segundo o Banco Central, o Brasil gastou, em 2021, R$ 136 bilhões a mais com juros da dívida pública, em relação à 2020.
Desses, R$ 87,510 bilhões correspondem ao incremento atrelado ao índice inflacionário do período. Então temos que inflação mais aumento da taxa Selic representam crescimento da dívida pública e redução do resultado fiscal do governo.
O aumento da inflação induz ao aumento da taxa de juros, formando uma “bola de neve” desastrosa, pois limita também o crescimento econômico, prejudicando o resultado fiscal. O mecanismo é bem conhecido.
Estima-se que o impacto somente do último aumento dos preços dos combustíveis acrescerá 1,5% no IPCA.
Penso que a tendência à repercussão inflacionária seja significativamente superior, pois a intensidade da transmissão dos aumentos pode ser maior neste caso de elevados níveis de variação, descolando do histórico base de análise.
Além disso, o cálculo pode ser ainda pior. Considere não ser suficiente ao agente econômico ajustar seu preço unitário ao aumento dos custos dos insumos.
Se houver uma expectativa de queda de demanda, os preços unitários deverão ser elevados ainda mais para balanceamento da receita total com os custos fixos, fazendo com que o aumento necessário seja maior do que os dos próprios custos variáveis.
É isso ou a inviabilidade da respectiva atividade econômica. Pergunte a qualquer empreendedor, do micro ao grande. Ainda não temos ideia da dimensão que a escalada inflacionária pode tomar ou do nível de desestruturação de determinadas atividades econômicas.
Portanto, o cenário que se avizinha é de elevação da inflação e dos juros e de retração econômica.
Não sabemos, ainda, o impacto que haverá na dívida pública, mas cabe a pergunta: é preferível gastar R$ 50 bilhões em política anti-inflacionária e seus benefícios ou os mesmos R$ 50 bilhões em mais juros da dívida?
A proporção pode não ser esta, mas qual estudo temos? O que sabemos é que cada ponto percentual a mais de inflação ou da taxa Selic, representa bastante bilhões a mais de dispêndio fiscal com a dívida pública. Dispêndio é dispêndio, seja ele na forma de subsídios ou de juros.
Qual a melhor aplicação? Aí se encontra a relação entre as variáveis de controle da equação de uma política de subsídios.
Por último, a conta a ser feita também tem relação com o PIB e o resultado fiscal. Com uma carga tributária brasileira superior a 30%, fica evidente a sensibilidade do resultado fiscal à variação do PIB. Em 2021, o PIB cresceu 4,6% e foi alcançado superávit primário de R$ 64,7 bilhões (União, estados e municípios).
Somente a arrecadação federal aumentou 17,36% em relação a 2020. O contexto de elevação da inflação e dos juros trabalha contra o PIB e, por consequência, contra o resultado fiscal.
Estima-se que a indústria do petróleo e gás no Brasil responde por 13% do PIB nacional e 50% da oferta interna de energia.
Compensa contentar-se com o excedente de arrecadação deste setor (comparado à situação de estabilidade de preços do petróleo) enquanto os 87% restantes do PIB derretem? Quanto se perde de arrecadação a cada aumento da inflação e dos juros?
Mesmo as empresas que sobreviverem ao aumento de custos, recolherão menos impostos devido à redução de suas margens de lucro.
Papel da política monetária
A Lei Complementar 179/2021 estabeleceu a autonomia do Banco Central (BC) e seu objetivo fundamental de assegurar a estabilidade de preços.
Porém, a autarquia apenas controla a política monetária, cujo principal instrumento é a taxa Selic, que é uma ferramenta impotente para o tipo de inflação de custos que estamos vivenciando. O aumento dos juros, por maior que seja, não irá conter o aumento dos preços dos transportes, por exemplo.
Além disso, a LC 179/2021 também atribui ao BC fomentar o pleno emprego. E a elevação da taxa de juros prejudica o nível de emprego na economia. Nesse caso, quais são as alternativas de política anti-inflacionária do governo?
Será que não aprendemos com a covid-19 que, independentemente de ideologias, existem situações nas quais é necessária a atuação estatal?
Concluo que, para avaliar a necessidade e a viabilidade de aplicação de uma política anti-inflacionária, por meio de subsídios aos derivados do petróleo, há, pelo menos, três dimensões de impacto fiscal a serem consideradas:
- o excedente de arrecadação decorrente da variação dos preços do petróleo;
- a evolução do dispêndio dos juros com a dívida pública, decorrente do impacto da variação dos preços do petróleo; e
- o impacto na arrecadação governamental em razão do reflexo da variação dos preços do petróleo no PIB.
Particularmente, eu ainda consideraria as futuras pressões fiscais decorrentes das demandas por auxílios sociais, já que um cenário de inflação e recessão deve gerar mais desempregos e redução da segurança alimentar (fome) para as famílias brasileiras.
Talvez cheguem à conclusão que subsidiar os preços dos itens que mais impactam a inflação, antes de ser um dispêndio, é um investimento para um melhor resultado fiscal e social.
Reflexos da desoneração dos combustíveis
Na última quinta (10/03), o Senado aprovou o projeto de lei que cria regras para estabilização dos preços dos combustíveis (PL 1472/2021) e possibilita um sistema de bandas de preços, com a finalidade de estabelecer limites para a variação de preços dos combustíveis derivados de petróleo e GLP.
Pode ser uma base inicial que, devidamente ajustada, se efetive em uma ferramenta de contenção do aumento dos custos dos derivados do petróleo.
Teria que haver os estudos fiscais que estabeleçam a capacidade de mitigação conforme as metas, por cada item, e se definir os preços base de partida (ideal que não sejam muito superiores aos valores médios de 2021, cuja inflação já foi absorvida).
Assim, cada subsídio poderá ser dimensionado conforme a disponibilidade e o objetivo fiscal.
De toda sorte, a decisão de se adotar ou não uma política anti-inflacionária de subsídios aos derivados do petróleo deve ser amparada por estudos bem fundamentados e com dados e critérios objetivos.
O problema é que essa decisão não é para ontem — é para 2021 (a crise de preços e custos já existia antes da guerra da Ucrânia).
Não dá para ficar somente observando para ver o que acontece, até porque, ainda que a guerra cesse, os efeitos na economia mundial continuam em repercussão acelerada. Ainda, e principalmente, porque, em se tratando de política anti-inflacionária, cada dia de atraso na sua adoção significa perda de eficácia no seu resultado.
Como na pandemia, não se reverterão as mortes desnecessárias. Uma coisa é certa: se o aumento descontrolado de custos não for contido, não só teremos um pior resultado fiscal, mesmo com os contribuintes pagando mais tributos pelo petróleo e derivados, mas também o aumento da crise econômica e social.
Marcelo Rocha do Amaral é graduado em Administração, Economia e Direito e Mestre em Regulação e Gestão de Negócios pela Universidade de Brasília. Auditor Federal de Controle Externo no Tribunal de Contas da União (TCU), atua na fiscalização do setor de petróleo e gás natural e sua regulação desde 2011. Este artigo expressa opinião pessoal do autor e não representa posicionamento institucional do TCU.