Ao longo de 2022, o atual governo federal adotou diversas medidas temporárias para reduzir o preço dos combustíveis durante o ano eleitoral.
Foram medidas mais eleitorais do que técnicas, com impactos orçamentários na União e nos estados, judicializadas no Supremo Tribunal Federal (STF) e que deixam de herança para o próximo governo uma confusão fiscal com potencial para impactar os preços dos combustíveis, estopim de crises nacionais desde a greve dos caminhoneiros de 2018.
É urgente estudar alternativas para conter os danos decorrentes do fim da vigência dessas medidas, que pode desencadear aumento expressivo nos preços dos combustíveis e até uma possível crise de desabastecimento. Tema que não foi tratado no relatório final do gabinete de transição publicado.
Choque de preços e a desoneração de impostos federais
Além do prejuízo acumulado em 2022, de cerca de R$ 26 bilhões em perda de arrecadações em decorrência da isenção dos tributos federais – PIS/PASEP, Cofins e CIDE –, é necessário analisar o que acontecerá com o preço dos combustíveis quando as medidas temporárias se encerrarem no dia 31 de dezembro de 2022.
Com o restabelecimento das alíquotas vigentes para os tributos federais, os acréscimos previstos serão de cerca de R$0,69 por litro de gasolina e R$0,33 por litro de diesel já no primeiro dia do ano e terão grande impacto para a população.
Ainda é preciso destacar que gasolina corresponde a 6,8 do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo -IPCA, um aumento, considerando o cenário mais conservador, de 9% no preço da gasolina implicaria em um aumento de 0,61% no IPCA, gerando grande impacto inflacionário.
Desta forma, o governo deve ponderar as ações para conter os efeitos deixados pelas ações da gestão anterior e adotar medidas assertivas no curto, médio e longo prazos, para que mais oscilações como essas não ocorram e afetem os cidadãos drasticamente no futuro.
Limites legais e incertezas
Há rumores sobre a prorrogação das medidas adotadas, porém há limitação no caso da gasolina.
Junte-se a isso as leis complementares nº 192 e 194, promulgadas este ano, mas nunca completamente implementadas.
Foram alvo de diversas ações judiciais no STF e, mais recentemente, de um acordo costurado pelo governo atual e os estados, que levou a edição de novas regras para a cobrança de ICMS de apenas uma parte dos combustíveis, excluindo a gasolina.
Além da judicialização, há outra questão: os tributos federais para a gasolina não podem ser zerados devido à Emenda Constitucional 123, promulgada em julho.
A EC 123/22 prevê que eventual redução da carga tributária incidente sobre a gasolina deverá manter o diferencial competitivo em relação ao etanol hidratado, que havia em 15 de maio de 2022.
Assim sendo, será necessário preparação de atos normativos que considerem todas essas ações anteriores, as limitações legais e possa conter esse efeito imediato de choque de preços. Ações erráticas que já criaram um passivo judicial e vai pra conta de cada um de nós, brasileiros.
Impacto fiscal a partir de R$ 50 bi
Nesse contexto, considerando-se que a política da redução dos preços dos combustíveis é decorrente da artificialidade de uma redução temporária a zero das alíquotas dos tributos federais, é necessário elucidar os impactos em preços que ocorrerão ao fim do período regulamentado.
Os tributos federais (PIS/Pasep, Cofins e Cide) encontram-se zerados para o GLP P13, por prazo indeterminado, desde março de 2021; e para os demais combustíveis até 31 de dezembro.
Contudo, o marco legal das contribuições para os programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/PASEP) e para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), devidas pelos produtores e importadores de derivados, segue em vigor e é dado pelas leis 9.718/98 e 10.865/2004.
Nelas, estabelecem-se os tetos das alíquotas incidentes sobre os combustíveis, bem como se definem os fundamentos dessa tributação.
O Poder Executivo tem prerrogativa de aplicar, quando conveniente, os coeficientes de redução desses tributos por meio de decreto.
Esses decretos, que definem as alíquotas dos tributos federais para os combustíveis, estão em plena vigência, ou seja, as medidas aprovadas apenas suspenderam a sua eficácia por meio da zeragem, por Lei e por prazo determinado.
Findo o prazo legal, retorna toda a carga tributária já estabelecida em decreto para os combustíveis.
E ainda, é necessário registrar que essas estimativas de impacto (R$0,69 por litro de gasolina e R$0,33 por litro de diesel) – são conservadoras, uma vez que refletem a isenção tributária que deixará de vigorar em 31 de dezembro de 2022.
O preço final pode incorporar a forma pela qual a cadeia de suprimentos absorve esse acréscimo de custos, comumente agregando uma margem adicional.
Nesse sentido, é razoável esperar que os impactos sejam ainda mais expressivos do que os calculados, a depender do comportamento dos agentes frente a essas alterações.
Em resumo, com o retorno integral da tributação federal, o resultado seria (R$/litro):
Combustível |
PIS/PASEP + Cofins |
CIDE |
Total Tributos Federais |
Gasolina A |
0,7925 |
0,10 |
0,8925 |
Diesel |
0,3515 |
0 |
0,3515 |
Etanol Anidro |
0,1309 |
0 |
0,1309 |
Etanol Hidratado |
0,2418 |
0 |
0,2418 |
GLP |
0 |
0 |
0 |
QAV |
0,0712 |
0 |
0,0712 |
Ausência de previsão na lei orçamentária
Levando em conta a obrigação da EC 123/22, o diferencial competitivo que precisa ser preserva entre a gasolina e o etanol hidratado, imporá um reajuste de pelo R$ 0,45 centavos sobre a gasolina, no caso de manutenção da alíquota zerada para o etanol hidratado.
O atual governo federal encaminhou o PLOA 2023 sem a previsão de arrecadação de tributos federais sobre os combustíveis, conforme promessa de campanha do atual presidente.
No entanto, cabe ressaltar o equívoco do Ministério da Economia, que ignorara o comando constitucional (EC 123/2022) que impede a zeragem dos tributos incidentes sobre a gasolina após 31 de dezembro de 2022.
Não há qualquer registro de proposta de emenda constitucional para alterar a EC 123/2022 e prever uma extensão do prazo para zeragem desses tributos sobre a gasolina para o ano de 2023.
O fato de o governo federal encaminhar PLOA ao Congresso Nacional sem a previsão de cobrança de tributos sobre os combustíveis, aliado ao fato de isso ter sido apresentado como proposta de governo pelo incumbente, podem justificar que nem a imprensa nem as autoridades tenham se manifestado sobre a mudança que ocorrerá na cobrança dos tributos federais sobre os combustíveis a partir de 1º de janeiro de 2023.
No fiscal, se as medidas forem prorrogadas, o impacto em arrecadação em 2023 será de cerca de R$53,3 bilhões, conforme detalhamento:
Impacto da isenção da gasolina |
R$20,46 bilhões |
Impacto da isenção do diesel |
R$28,16 bilhões |
Impacto da isenção do etanol hidratado |
R$4,35 bilhões |
Impacto da isenção do querosene de aviação |
R$0,36 bilhões |
Impacto Total |
R$53,3 bilhões |
Risco de desabastecimento
Os técnicos consideram que há baixo risco de desabastecimento no país nos primeiros dias do ano, mas é preciso levar em conta que esse risco existe e precisa ser monitorado.
Um tanque de automóvel tem capacidade média de 55 litros e, considerando os cálculos apresentados neste artigo, o motorista pagará em média R$38,00 a mais para encher o tanque de seu veículo, valor expressivo principalmente considerando as categorias que utilizam veículos para fins profissionais.
Um tanque de caminhão tem capacidade média 500 litros, o que significa que para enchê-lo o motorista gastará em média R$165,00.
A exemplo do fenômeno ocorrido no início da greve dos caminhoneiros em 2018, a população tende a encher o tanque dos veículos e tentar estocar combustíveis quando a mídia noticia possíveis aumentos repentinos de preços.
Essa tentativa de economizar pode gerar um movimento de aumento da demanda que a tancagem não conseguirá suprir, podendo levar ao desabastecimento instantâneo, ainda que pontual, nos primeiros dias do ano.
Além desse movimento, sabe-se que aos primeiros sinais de aumento da demanda pela formação de filas os agentes de revenda tendem a aumentar o preço dos combustíveis, amplificando o efeito de desordem e gerando consequências negativas que precisam ser evitadas no início do novo governo.
Tudo isso deveria estar sendo monitorado e estudado pela Secretária de Petróleo e Gás (SPG) do Ministério de Minas e Energia (MME).
Porém, a Secretaria, que deveria cuidar do tema, se encontra em estado de abandono, acéfala, sem secretário e sem secretário-adjunto desde a publicação portaria MME 1.404/2022.
Ou seja, um dos assuntos de maior impacto para a população nas próximas semanas não está recebendo qualquer atenção.
Seria necessária a criação imediata de um comitê de crises, para propor ações de mitigação dos impactos relatados e proposição de instrumentos para solução progressiva da questão, para que o impacto seja contido no 1º dia do ano e resolvido definitivamente.
É preciso monitorar e reagir aos impactos econômicos, políticos e sociais advindos da situação relatada e elaborar plano com ações capazes de mitigar os problemas.
Ainda, é preciso criar condições de médio e longo prazos que promovam o desenvolvimento sustentável do setor de energia, garantindo previsibilidade e segurança do abastecimento e favorecendo redução dos preços para os consumidores de forma permanente e não apenas temporária e artificial.
ICMS
Com a sanção da LC nº 194/2022 os combustíveis e energia elétrica passaram a ser considerados bens e serviços essenciais e indispensáveis, que não podem ser tratados como supérfluos e, portanto, serão tributados considerando a alíquota geral, que variava de 17% a 18%.
O valor anterior à medida variava entre os estados, mas a média de incidência de ICMS na gasolina em 2021 foi de cerca de 27,1%, a redação ainda inclui uma garantia de compensação aos estados que perderem mais de 5% da arrecadação com o projeto até 31 de dezembro de 2022.
Esse fim da garantia de compensação a tendência é que os estados aumentem a pressão por revisão das medidas, além das análises de inconstitucionalidade em curso.
Diversos estados já se movimentaram para elevar esse teto e compensar parte das perdas com essa redução da carga tributária.
Mais recentemente, os estados chegaram a um acordo no STF e editaram um novo convênio cobrindo GLP e diesel B, sem a gasolina, nas novas regras da monofasia.
Paralelamente, o Congresso Nacional derrubou o veto que desobrigava a União a compensar diretamente a redução de repasses vinculados ao financiamento da educação básica, por meio do Fundeb.
Para a energia elétrica, a média de ICMS antes da LC 194/2022 era de cerca de 28%, assim quando a medida for suspensa pode-se esperar um aumento na conta de luz na ordem de 11%.
Assim sendo, é notório que a medida apresenta um elevado risco jurídico e é provável que em breve possa gerar um grande impacto para o consumidor, sendo necessário se antecipar a esse efeito.
Para aprofundar:
Considerações adicionais: EC 123/2022 e o mercado de etanol
Como consequência da aplicação das medidas aprovadas por meio das LC 192/2022 e LC 194/2022, os biocombustíveis, especialmente o etanol hidratado, tiveram sua competitividade duramente afetada pelo fim da diferenciação tributária com a gasolina comum. Já que houve um apoio ao consumo subsidiado de combustíveis fósseis em detrimento de energia mais limpa de biocombustíveis.
Foi nesse sentido que aprovada a EC 123/2022, para restabelecer a competitividade dos biocombustíveis e para garantir um mínimo diferencial tributário com o combustível fóssil, haja vista sua menor densidade energética. A emenda estabeleceu que o § 1º do art. 225 da Constituição Federal passa a vigorar com o seguinte texto:
Art. 225. ………………………………………………………………………………………….
§ 1º ………………………………………………………………………………………………….
VIII – manter regime fiscal favorecido para os biocombustíveis destinados ao consumo final, na forma de lei complementar, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis, capaz de garantir diferencial competitivo em relação a estes, especialmente em relação às contribuições de que tratam a alínea “b” do inciso I e o inciso IV do caput do art. 195 e o art. 239 e ao imposto a que se refere o inciso II do caput do art. 155 desta Constituição.
………………………………………………………………………………………………………… (NR)
Ou seja, prevê-se uma manutenção de diferencial tributário tanto no plano estadual (ICMS) quanto no plano federal na tributação do Programa de Integração Social (PIS) e à Contribuição Para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins).
Além disso, o art. 4º da referida EC nº 123/2022 estabelece que enquanto não entrar em vigor a lei complementar que versa sobre o inciso VIII do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, haverá necessariamente um diferencial competitivo dos biocombustíveis destinados ao consumo final em relação aos combustíveis fósseis em patamar igual ou superior ao vigente em 15 de maio de 2022:
Art. 4º Enquanto não entrar em vigor a lei complementar a que se refere o inciso VIII do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, o diferencial competitivo dos biocombustíveis destinados ao consumo final em relação aos combustíveis fósseis será garantido pela manutenção, em termos percentuais, da diferença entre as alíquotas aplicáveis a cada combustível fóssil e aos biocombustíveis que lhe sejam substitutos em patamar igual ou superior ao vigente em 15 de maio de 2022.
§ 1º Alternativamente ao disposto no caput deste artigo, quando o diferencial competitivo não for determinado pelas alíquotas, ele será garantido pela manutenção do diferencial da carga tributária efetiva entre os combustíveis.
§ 2º No período de 20 (vinte) anos após a promulgação desta Emenda Constitucional, a lei complementar federal não poderá estabelecer diferencial competitivo em patamar inferior ao referido no caput deste artigo.
§ 3º A modificação, por proposição legislativa estadual ou federal ou por decisão judicial com efeito erga omnes, das alíquotas aplicáveis a um combustível fóssil implicará automática alteração das alíquotas aplicáveis aos biocombustíveis destinados ao consumo final que lhe sejam substitutos, a fim de, no mínimo, manter a diferença de alíquotas existente anteriormente.
§ 4º A lei complementar a que se refere o inciso VIII do § 1º do art. 225 da Constituição Federal disporá sobre critérios ou mecanismos para assegurar o diferencial competitivo dos biocombustíveis destinados ao consumo final na hipótese de ser implantada, para o combustível fóssil de que são substitutos, a sistemática de recolhimento de que trata a alínea “h” do inciso XII do § 2º do art. 155 da Constituição Federal.
§ 5º Na aplicação deste artigo, é dispensada a observância do disposto no inciso VI do § 2º do art. 155 da Constituição Federal.
(…)
Art. 6º Até 31 de dezembro de 2022, a alíquota de tributos incidentes sobre a gasolina poderá ser fixada em zero, desde que a alíquota do mesmo tributo incidente sobre o etanol hidratado também seja fixada em zero.
Complementarmente, a EC 123/22, para não conflitar e comprometer as medidas tomadas com as LC aprovadas, autorizou que os tributos incidentes sobre a gasolina pudessem ser zerados até 31 de dezembro de 2022, desde que fossem também zerados os respectivos tributos incidentes sobre o etanol.
Ou seja, após esse prazo, o tributo incidente sobre a gasolina não poderá ser zerado, mesmo que se zerem também os tributos sobre o etanol, impondo também que o diferencial mínimo entre os tributos deverá ser aquele verificado em 15 de maio de 2022.
Miguel Ivan Lacerda é diretor do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e foi diretor de Biocombustíveis do Ministério de Minas e Energia (MME). É economista e especialista em Energia Renováveis.
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