Opinião

O combate ao devedor contumaz no setor de combustíveis: impactos, desafios e fundamentos jurídico-constitucionais

Fraude fiscal pressiona empresas regulares, reduz arrecadação e amplia risco de desabastecimento, escrevem Felipe Boechem, Marcelo Ribeiro e Rafael Martins

Análise e tendências da evolução do produtos energéticos líquidos usados como combustíveis em transporte no Brasil. Na imagem: Caminhões-tanque em distribuidora de combustíveis da Petrobras, com tanques de armazenamento ao fundo (Foto José Cruz/Agência Brasil)
Distribuidora de combustíveis da Petrobras (Foto José Cruz/Agência Brasil)

Os combustíveis fósseis e renováveis possuem um papel estratégico na matriz energética nacional. Derivados de petróleo respondem por 37% do suprimento energético brasileiro, e biocombustíveis por 33%.

A relevância econômica desses bens, somada à capilaridade da cadeia de distribuição, e sua importância para atingir objetivos constitucionais como desenvolvimento nacional e redução de pobreza, impõem atenção redobrada ao seu regime jurídico.

A Constituição disciplina o tema em múltiplos dispositivos. O art. 177 atribui à União o monopólio da produção, refino, importação e transporte de petróleo e derivados. O art. 238 exige lei para regular a venda e revenda de combustíveis. O art. 146-A, introduzido pela EC 42/2003, autoriza “critérios especiais de tributação” para coibir desequilíbrios concorrenciais. 

Apesar de sua importância, o tema do abastecimento de combustíveis recebeu pouca atenção da doutrina, em parte devido à posição historicamente dominante de uma empresa no setor (Petrobras) e à evolução gradual da regulação ao longo do tempo. 

De fato, houve marcos importantes — como a extinção do antigo Conselho Nacional do Petróleo em 1990 e sua substituição pelo Departamento Nacional de Combustíveis — que contribuíram para o início de uma abertura do mercado, mesmo com o controle de preços, o que dificultava a efetiva concorrência e favorecia práticas como a adulteração de combustíveis.

A Lei do Petróleo de 1997 e a criação da Agência Nacional do Petróleo Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) representaram avanços significativos, ao prever a liberalização dos preços e instituir uma agência reguladora com foco na garantia do suprimento. 

Ainda assim, o tema permaneceu marginalizado, talvez pela crença geral de que o abastecimento estaria sempre assegurado, seja por agentes tradicionais do setor como a Petrobras, seja por uma combinação fortuita da ação das forças do mercado e do poder público. 

No entanto, eventos recentes, como a greve dos caminhoneiros em 2018 e a pandemia de covid-19 em 2020, evidenciaram os riscos de desabastecimento e reacenderam o debate sobre a natureza essencial e os problemas associados a disrupções na cadeia de suprimento de combustíveis.

Jogo desigual

Nesse contexto, emerge o devedor contumaz: empresa que, de forma deliberada e reiterada, deixa de recolher tributos não por dificuldade financeira, mas como estratégia de negócio. A prática gera quatro efeitos principais. 

Primeiro, queda substancial na arrecadação: estimam-se passivos superiores a R$ 240 bilhões (ou 3 vezes o orçamento de obras públicas da União) concentrados em pouco mais de mil contribuintes. 

Segundo, “dumping fiscal”: ao vender combustível com tributos sonegados, o infrator oferece preços artificialmente baixos, corroendo margens de competidores adimplentes, expulsando-os do mercado e desestimulando novos investimentos. 

Terceiro, facilitação da infiltração criminosa: a liquidez do setor converte-se em plataforma para lavagem de dinheiro, aquisição de armamentos e financiamento de ilícitos correlatos, com ganhos a partir da operação de combustíveis que segundo estimativas já superam mais que 3 vezes os auferidos no tráfico de drogas.

Quarto, não pagar tributos pode elevar a inflação. O ponto aqui não é defender uma carga tributária ainda mais elevada — que, é claro, gera impactos negativos sobre a formação de preços — e sim que a redução da arrecadação, causada pelo não pagamento intencional de impostos, em situações em que eles seriam devidos, pode causar déficits fiscais e distorções no mercado aptos a aumentar pressões inflacionárias.

Nessa linha, Estados-nações que não arrecadam ficam sujeitos a desequilíbrios fiscais, precisando muitas vezes emitir papel moeda para compensá-los (com consequente potencial de espiral inflacionária).

Por outro lado, a sonegação cria um ambiente competitivo desleal, pressionando os agentes que cumprem suas obrigações fiscais a reduzir artificialmente os preços para se manterem no mercado.

Esse desequilíbrio pode, ao longo do tempo, levar à saída de empresas relevantes, resultando em maior concentração de mercado e favorecendo práticas de manipulação de preços por um número restrito de players.

O dano, contudo, transcende números imediatos. Ao deixar de recolher recursos ao Erário, o devedor contumaz acaba, ainda que indiretamente, por contribuir para a limitação da capacidade estatal de fiscalização, impactando o financiamento de entes como a ANP e mecanismos de controle setoriais.

Além disso, a percepção de “jogo desigual” compromete a segurança energética, provoca descrédito institucional e afugenta capitais produtivos.

De fato, quanto a esse último ponto, é essencial considerar que um mercado composto exclusivamente por agentes regulares, que operam de forma transparente e cumprem suas obrigações fiscais, teria condições mais favoráveis para expandir suas atividades.

A ausência da concorrência desleal imposta pelos devedores contumazes permitiria maior previsibilidade, um “level playing field”, o que poderia, por sua vez, resultar em mais investimentos e preços médios mais baixos para os combustíveis. Esse cenário beneficiaria diretamente o consumidor final e fortaleceria a confiança no setor.

Embora existam instrumentos dispersos — sobretudo sanções administrativas derivadas de normas estaduais, além dos crimes contra a ordem tributária e econômica previstos na Lei 8.137/1990 —, eles se mostram insuficientes diante da sofisticação dos devedores contumazes, que combinam abuso do direito de defesa, sucessão fraudulenta de empresas e morosidade judicial para perpetuar a inadimplência.

Diante dessa conjuntura, é bem-vinda a proposta de um arcabouço federal que (i) ajude a articular e expandir as iniciativas estaduais hoje existentes, (ii) fixe critérios claros para enquadramento da prática, e (iii) defina sanções graves para quem delinque.

Nesse sentido, o PLP 164/2022, aprovado na CCJ do Senado, tramita atualmente na CAE da mesma casa legislativa. O substitutivo apresentado pelo relator, Senador Veneziano do Rêgo, caracteriza como contumaz o devedor que, cumulativamente:

  1. deixar de recolher tributos por quatro períodos consecutivos ou seis alternados em doze meses;
  2. (ii) possuir débitos tributários acima de R$15 milhões ou superiores a 30% do faturamento do ano anterior (com valor igual ou superior a R$1 milhão); e
  3. não contar com justificativa ou garantia, nos termos do projeto. 

As sanções incluem exclusão de benefícios fiscais, vedação à contratação com o poder público e, em casos extremos, intervenção, liquidação extrajudicial ou falência.

O projeto, que se aplica a setores de risco, como o de combustíveis, institui ainda controle especial do recolhimento do tributo, manutenção de fiscalização ininterrupta no estabelecimento da empresa, admite controle especial na arrecadação e possibilita, via lei própria, a adoção de alíquotas específicas para prevenir desequilíbrios da concorrência.

Trata-se de medidas que, se aplicadas adequadamente, podem contribuir para o estabelecimento de um mercado de combustíveis com concorrência justa e, consequentemente, com mais agentes, maior segurança de abastecimento e mais geração de renda, investimentos e recolhimento de tributos — em cumprimento aos ditames e ao conteúdo normativo da Constituição.

Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.


Felipe Boechem é sócio de Petróleo e Gás do Lefosse.

Marcelo Ribeiro é sócio de Penal Empresarial do Lefosse.

Rafael Martins é counsel de Petróleo e Gás do Lefosse.

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