O desfile militar realizado nesta semana em Pequim, em comemoração ao fim da Segunda Guerra Mundial — quando China e Estados Unidos combatiam do mesmo lado contra o Japão — serviu também como recado de que a China não disputa apenas poder bélico, mas também energético e tecnológico em relação ao Ocidente.
A corrida é por tecnologias limpas e soberania energética. E, neste sentido, o país se prepara para repetir com o hidrogênio verde o que já fez com os painéis solares e os carros elétricos, isto é, dominar toda a cadeia de valor, da pesquisa ao fornecimento global.
Segundo relatório recente da S&P Global Commodity Insights, a China produzirá 33,4 milhões de toneladas métricas de hidrogênio verde em 2050, contra 20 milhões da União Europeia e apenas 4,7 milhões dos Estados Unidos. As projeções para os EUA foram reduzidas em mais de 60% após cortes em subsídios.
Os europeus, por sua vez, seguem com dificuldades para erguer uma indústria competitiva diante do ritmo mais lento na expansão da produção doméstica e dependência de projetos internacionais para importações.
A história recente
No início dos anos 2000, o Ocidente liderava a inovação em energia solar. Mas foi a China que, com escala produtiva, políticas industriais agressivas e subsídios direcionados, barateou os módulos fotovoltaicos, consolidou fabricantes nacionais e concentrou a cadeia global.
Hoje, a China detém mais de 80% da capacidade da cadeia de painéis fotovoltaicos no mundo.
O mesmo ocorreu com os veículos elétricos, em que montadoras europeias rapidamente assistiram ao país asiático assumir liderança mundial, exportando tanto baterias quanto automóveis, respondendo por mais de 70% da produção global em 2024.
Agora, tudo indica que o hidrogênio — em especial o produzido por eletrólise da água a partir de energia renovável — seguirá essa trajetória.
A lógica por trás da estratégia chinesa
A aposta chinesa no hidrogênio e na eletrificação não é apenas ambiental. Trata-se de um objetivo estratégico de soberania energética.
Apesar de ter reservas próprias de petróleo e gás, a China não consegue suprir sua demanda colossal e depende fortemente de importações, sobretudo do Oriente Médio.
O carvão, abundante em seu território, responde ainda por metade da matriz elétrica, mas é incompatível com as metas de descarbonização e prejudica a qualidade do ar nas grandes cidades.
Assim, Pequim vê no hidrogênio uma forma de reduzir a dependência de combustíveis fósseis importados e, ao mesmo tempo, modernizar sua base industrial.
A demanda chinesa por petróleo, há muito um importante impulsionador deste mercado, está desacelerando. E o uso de carvão no consumo de energia do país caiu para 55,3% em 2023. Uma queda é de 12 % em comparação a 2013.
Não por acaso, o país já concentra 70% das instalações globais de eletrolisadores e já exporta equipamentos para Europa, Oriente Médio, Brasil e Estados Unidos.
A União Europeia, inclusive, chegou a definir regras para barrar eletrolisadores chineses no seu leilão de hidrogênio renovável, para projetos europeus que quisessem acessar subsídios.
Empresas como Xinjiang Goldwind e Envision Energy apostam em integração vertical, da geração renovável à produção de hidrogênio e derivados como amônia e metanol.
Além da indústria química, a China já lidera no transporte pesado movido a célula a combustível, com 28 mil veículos em circulação, incluindo 15 mil ônibus e caminhões.
São números que se somam a uma infraestrutura de mais de 390 postos de abastecimento de hidrogênio, muito à frente dos EUA, que contam com menos de 100.
EUA perdem fôlego
O contraste com os Estados Unidos é cada vez mais nítido. Desde 2024, cortes nos incentivos fiscais — como a redução do prazo do crédito da Seção 45V — enfraqueceram projetos.
A Thyssenkrupp, por exemplo, abandonou projetos de hidrogênio verde nos EUA.
A McKinsey estima que cerca de três quartos das propostas de hidrogênio limpo provavelmente não atenderão aos novos padrões de qualificação para crédito tributário (devem estar em construção até o final de 2027), com o pacote anti-renováveis de Donald Trump.
A S&P projeta que o país poderá ainda ter relevância no chamado hidrogênio azul, obtido a partir de gás natural com captura de carbono, com 14,1 milhões de toneladas previstas para 2050.
No hidrogênio verde, que exige enorme integração com renováveis, os EUA estão claramente ficando para trás.
A vantagem chinesa da escala
O grande trunfo da China está justamente na escala. A forte concorrência doméstica entre fabricantes vem reduzindo drasticamente o custo dos eletrolisadores, componente que responde por boa parte do preço do hidrogênio verde.
O país já começou a construir gasodutos dedicados para transportar hidrogênio da Mongólia Interior até a capital.
Com metade da geração de energia da China proveniente de carvão, a co-combustão de hidrogênio verde e derivados é também estimulada pelo governo chinês como uma maneira atraente de descarbonizar o setor energético no curto prazo, em vez de desativar por completo as usinas a carvão.
Esse movimento repete a trajetória da solar. Primeiro, o mercado interno massivo gerou escala e aprendizado tecnológico, depois, vieram as exportações em massa, que tornaram a China praticamente imbatível no setor.
Agora, com contratos em todos os continentes e metas internas ambiciosas, a indústria de hidrogênio verde chinesa segue o mesmo roteiro.