Opinião

Terraplanismo solar

Enquanto a GD solar avança no país, especialistas alertam que subsídios ocultos pesam nas contas de luz de consumidores sem painéis solares, escreve Ricardo Brandão

Ricardo Brandão, diretor de Regulação da Abradee (Foto Divulgação)
Ricardo Brandão é diretor de Regulação da Abradee | Foto Divulgação

Sempre fui curioso sobre o estudo do espaço, planetas, estrelas e outros corpos celestes. Desde criança era fascinado pela corrida espacial entre soviéticos e norte-americanos, desde o primeiro voo orbital de Iuri Gagarin, as primeiras e espetaculares fotos do nosso planeta azul, até a chegada do homem à lua.

Confesso que nunca consegui entender os que duvidavam da conquista espacial. Entendia menos ainda aqueles que, mesmo diante de todas as evidências, fatos e dados, teimavam em afirmar que a Terra era plana. 

O terraplanistas não estão apenas no campo da astronomia. Destacam-se em vários momentos da nossa vida cotidiana e do debate público. Em comum, eles têm uma firme convicção que é absolutamente imune à contestação por fatos e dados facilmente verificáveis.

“Quando se faz a compensação da geração distribuída, os consumidores sem painéis solares pagam os outros 72% da conta, em um mecanismo de subsídios cruzado.”

Esse aspecto marcou o movimento de defesa da geração solar distribuída na Brasil. O modelo de geração distribuída com regime de compensação instituído pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) em 2012, chamado também de net metering, estabelecia que o consumidor com painéis solares em seu telhado pagaria apenas pelo “consumo líquido”, ou seja, quando o seu consumo de energia fosse maior do que a sua produção de energia injetada na rede. 

Se, por exemplo, consumisse 800 kWh/mês e produzisse outros 800 kWh/mês ou mais, nada pagaria, ou na verdade pagaria o faturamento mínimo, que é um valor extremamente baixos. 

Se o único componente da conta de luz fosse a geração de energia, essa compensação até poderia fazer sentido. Não é. 

A geração de energia comprada pela distribuidora corresponde a cerca de 28% da tarifa de energia. Além disso, existem os custos de transmissão (11%), distribuição (25%), encargos (16%) e tributos (20%). 

Quando se faz a compensação da geração distribuída, os consumidores sem painéis solares pagam os outros 72% da conta, em um mecanismo de subsídios cruzado.

Isto é apenas um fato, claramente identificável sem maiores esforços, apenas observando os números do qualquer processo tarifário. O subsidiômetro da Aneel estima o peso da geração distribuída na conta do consumidor residencial em torno de 3,8%, em média (cerca de R$ 10 bilhões em 2024). 

Em algumas distribuidoras este impacto já passa dos 15% da tarifa. Um observador mais atento perceberá que, além deste subsídio cruzado decorrente da compensação, existe também o impacto da sobrecontratação de energia na conta de energia, a energia contratada pelas distribuidoras nos leilões, mas que sobra por conta da produção não planejada dos painéis solares.

E essa energia que sobra é na maioria dos dias do ano mais barata que o subsídio da GD, o que impacta na conta dos consumidores. Isso também é apenas um fato.

É um subsídio oculto, que não aparece na fatura de energia, mas que pesa no bolso no consumidor. E justamente por ser um subsídio oculto e silencioso, ele propicia espaço para malabarismos verbais e o discurso terraplanista solar. 

Porque se o consumidor comum tivesse voz e fosse perguntado se concordava em ter a sua tarifa aumentada para custear o desconto para uma pequena parcela da população que possui painéis solares, em sua casa ou por assinatura, a resposta sem dúvida seria um sonoro NÃO!

O discurso terraplanista solar aparece em vários momentos. Primeiro, simplesmente negava que existia o subsídio cruzado ou que isso majorasse a conta de energia dos demais. 

Depois, que não usavam as linhas de transmissão, como se à noite a energia que os abastecesse não viesse de hidrelétricas e termelétricas distantes de sua casa, usando tanto a rede de transmissão quanto a de distribuição. 

Quando, em 2019, a Aneel abriu consulta pública para equilibrar este subsídio, que nada mais era do que fazer com o usuário de GD pagasse também pelos encargos setoriais e a sua parcela de uso da transmissão e distribuição, saíram com o discurso de “taxar o sol”, que sequer era original, dado que a expressão já havia sido antes utilizada na Espanha em 2013, em Portugal em 2016, em Porto Rico, nos Estados Unidos, entre outros. Pelo visto, o terraplanismo solar não é exclusividade do Brasil.

O mais curioso é o discurso de que a geração distribuída reduz a conta de energia dos demais consumidores. Essa afirmação afronta até mesmo a lógica e a comparação com qualquer outro país. A Alemanha, que tem um forte incentivo para geração distribuída, tem a maior tarifa residencial do mundo. Fato. Nos EUA, a California e o Havaí, estados com a maior quantidade de geração distribuída solar per capita, têm a tarifa residencial três vezes maior que a média nacional. Fato. 

Se a GD realmente reduzisse a conta de luz, o Brasil teria sido um exemplo para o mundo, porque passamos de 2 GW de GD em 2019 para os atuais 35 GW. Isso sem falar nos vultosos investimentos que as distribuidoras fazem para conectar a GD, que entram na base de remuneração de investimentos e impactam todos os consumidores sem GD. 

Por isso, se algum consumidor sem GD teve redução da conta de energia nestes últimos anos, por favor me avise. Porque se a GD realmente reduz a despesa com energia, eu prefiro receber a minha parte em Pix.

Em resumo, negar que um desconto, um subsídio ou qualquer modalidade de benefício tarifário para um grupo aumenta a tarifa dos demais é como afirmar que a Terra é plana: não resiste ao mais elementar teste de realidade.

Setor defende jabutis

O mais recente exemplo do terraplanismo solar apareceu nas manifestações do segmento solar contrárias ao veto dos jabutis do projeto de lei das eólicas offshore, no qual uma das emendas amplia de 12 para 24 meses o prazo para implementação de geração distribuída com o modelo antigo de compensação integral de todas as componentes tarifárias até 2045. 

Um dos argumentos do discurso é defender que a extensão do prazo vai viabilizar empreendimentos que não ficariam prontos em 12 meses, e por isso perderiam o benefício da compensação integral, por culpa das distribuidoras. 

Ocorre que o art. 26, § 4º, da lei 14.300/2022 já estabelece que o prazo de 12 meses não corre enquanto existir pendência por parte da distribuidora. O segundo e mais surpreendente argumento é que a extensão de prazo não provoca qualquer impacto na tarifa, dado que se trata de um subsídio já existente.

A renomada consultoria PSR fez a conta desse impacto: R$ 54 bilhões até 2050. E conta nem é difícil de reproduzir, a partir do volume de geração adicionada segundo cálculos das próprias associações de GD, e considerando a diferença entre a média de compra de energia pelas distribuidoras (R$ 263/MWh) e a tarifa média Brasil (R$ 739/MWh). 

E a conclusão parte de um silogismo simples: se o empreendimento não entra operação em 12 meses, ele perde o generoso desconto. Se entra em operação entre 12 e 24 meses com a aprovação do PL, vai auferir este desconto até 2045. A diferença é justamente a parcela que entrará na tarifa caso o PL seja sancionado sem o veto a este artigo.

É apenas um fato, facilmente constatável, assim como observar a Terra redonda a partir de imagens produzidas do espaço.

Cabe a nós, terrabolistas, este tedioso ofício de dizer e explicar o óbvio, com dados, fatos e cálculos reproduzíveis por qualquer um que se interesse pela verdade e pela investigação. As energias renováveis são parte importante da transição energética, mas já são bastante competitivas hoje sem subsídios. 

O Brasil já produz atualmente mais de 90% da sua eletricidade a partir de fontes renováveis, não sendo o nosso desafio, como acontece com países desenvolvidos, limpar a nossa matriz, que já é bastante limpa.

Nossos desafios hoje são confiabilidade (assunto para um futuro artigo) e redução da conta de energia para o consumidor. Só assim teremos uma transição energética justa, que traga benefícios para toda a sociedade e não apenas para um pequeno grupo beneficiado por subsídios na tarifa de energia.


Ricardo Brandão é diretor de Regulação da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee).

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