Biocombustíveis x alimentos?

EXCLUSIVO: Indústria e cientistas brasileiros vão à IMO rebater acusações contra biocombustíveis

"Não há dilema biocombustíveis versus alimentos", diz pesquisadora que reuniu trabalhos científicos sobre o tema

Organização Marítima Internacional discute em Londres mecanismo para acelerar substituição de combustíveis fósseis em navios | Foto: Divulgação IMO
Organização Marítima Internacional discute em Londres mecanismo para acelerar substituição de combustíveis fósseis em navios | Foto: Divulgação IMO

BRASÍLIA — Representantes da indústria de biocombustíveis e cientistas brasileiros vão apresentar na tarde desta quinta (10/4), em Londres, um compilado de estudos internacionais para rebater críticas, especialmente europeias, aos produtos de primeira geração baseados em culturas como cana, milho e soja.

A apresentação ocorre em um evento paralelo às reuniões da Organização Marítima Internacional (IMO, em inglês), onde será definido um mecanismo para a descarbonização de navios no horizonte até 2050.

O mecanismo será mandatório para o frete internacional e pretende viabilizar novos combustíveis à base de hidrogênio renovável para substituir os fósseis.

O governo brasileiro tenta garantir que biocombustíveis como etanol e biodiesel também sejam reconhecidos dentro do leque de soluções, mas enfrenta resistência da Europa.

O trabalho liderado pela professora da USP e coordenadora do programa de Pesquisa em Bioenergia Fapesp, Glaucia Souza, traz subsídios para a delegação brasileira na IMO, na medida em que rebate uma das principais críticas ao etanol e biodiesel: a concorrência com a produção de alimentos.

“Estamos oferecendo evidências de que a produção de biocombustíveis não compete com a produção de alimentos”, conta a pesquisadora que também é líder da Força-Tarefa de Descarbonização do Transporte com Biocombustíveis da Agência Internacional de Energia (IEA, em inglês).

“Quando começamos a olhar essa questão de competição de biocombustíveis com produção de alimentos, fomos descobrindo que não há correlação, esse discurso não é cientificamente embasado. Não é um dilema”, destaca em entrevista à agência eixos.

Segundo Souza, ao revisar a literatura sobre o tema a partir de uma análise estatística de comparação de artigos científicos, a pesquisa descobriu que as correlações feitas com a segurança alimentar são a partir de modelagens, sem observação de dado real.

“Onde se fala que biocombustível impacta produção de alimentos, normalmente é modelagem, não é observação de dado real. Não é ir verificar no mundo, pé no chão. O que eu fiz, então, foi apresentar o modelo de agricultura brasileiro, porque muitos países não conhecem”.

O compilado de mais de 80 pesquisas científicas que está sendo levado à IMO é revisado por nomes ligados à indústria de óleos vegetais, biodiesel, diesel verde e etanol, e do governo, entre eles, o comandante Flávio Mathuiy, assessor da Comissão Coordenadora para os Assuntos da IMO. Veja na íntegra

Mobilização do Sul Global

Para Souza, o desconhecimento sobre o modelo de produção agrícola brasileiro e os investimentos que são feitos para reduzir o impacto no campo prejudicam o país na contabilidade de carbono em fóruns internacionais.

“Nós temos práticas que o mundo não conhece, então precisamos divulgar isso, porque quando [eles] fazem as contas, a gente sempre sai perdendo”.

Ela explica que parte do compilado teve origem no estudo que a força-tarefa apresentou ao G20, no ano passado, com a contabilidade de carbono da produção de biocombustíveis. E vem de uma necessidade de demonstrar que os países do Sul Global podem contribuir de maneira significativa na trajetória zero líquido da navegação.

“São países emergentes, com economias pujantes e potencial enorme de produção de biocombustíveis que ainda não estão fazendo isso. A ideia é: nos países que já estão produzindo biocombustível, por exemplo, América Latina, calcular como dobrar. Nos países que não produzem, mas já têm cultivo e vocação para a agricultura, mostrar uma possibilidade”, comenta.

O foco são combustíveis com escala: etanol de cana e milho, biodiesel e diesel verde (HVO). Na visão da cientista, não adianta ficar falando em produtos que não existem, não têm escala, e a aviação é um exemplo disso.

“Tem muita pesquisa que não está entregando no volume necessário, principalmente para transporte marítimo e de aviação, porque não tem. No Brasil, conseguimos entregar produtos que podem sim ajudar a navegação”.

Brasil perdeu o voo, mas pode embarcar nos navios

A mobilização é uma tentativa de garantir que as especificidades brasileiras e de países emergentes do Sul Global sejam levadas em conta no mecanismo da IMO, evitando acordos que criarão novos custos e mudanças bruscas na produção e consumo desses mercados a partir de uma imposição de tecnologias do Norte.

“A indústria da aviação se organizou antes e pegou os biocombustíveis, e o Brasil em geral, um pouco no contrapé. De modo que, quando ela determinou as características e as exigências que ela tem como premissa básica, predominou a ótica europeia. Agora, na IMO, estamos conseguindo chegar junto antes de uma decisão”, comenta Camilo Adas, diretor de Transição Energética da Be8 e um dos revisores do compilado.

A produtora de biocombustíveis anunciou no final de março uma parceria com a Vast, no Porto do Açu, em busca de clientes para o biodiesel no transporte marítimo.

Em entrevista à agência eixos, Adas, que também integra o grupo de trabalho do Ministério da Indústria e Comércio (MDIC) para Transição Energética da Industria Naval, avalia que o Brasil aprendeu a lição com o esquema da aviação internacional (Corsia) e se reorganizou nos últimos quatro anos para abordar a transição energética justa.

“Estamos mostrando um exemplo inédito da indústria, da academia e do próprio poder público que representa oficialmente o Brasil na IMO. Estamos abordando informações que não para defender uma estratégia exclusiva, ou geopolítica, mas para defender a transição energética de uma forma socialmente justa e escalável”, afirma.

Segundo Adas, o objetivo do trabalho é mostrar que todo o cone Sul pode contribuir com a descarbonização, em um contraponto à defesa de rotas tecnológicas específicas que ainda não estão disponíveis em escala.

“O nosso pleito principal é permitir que todos participem. Permitir uma transição energética em base global, onde as regras sejam globais, mas onde cada região possa contribuir com o que tiver de melhor, e não simplesmente predefinir rotas tecnológicas, que apenas um grupo de indústrias possa acreditar que queira desenvolver”, completa.

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