A principal pauta do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) na COP 25, realizada em Madri, na Espanha, foi a provação do Artigo 6 do Acordo de Paris, que disciplina o mercado de carbono, no contexto das metas de redução dos gases do efeito estufa.
Mesmo com avanços, sobretudo na postura brasileira, não foi possível fechar um acordo para o Artigo 6, explicam nessa entrevista Marina Grossi, presidente do CEBDS e Ronaldo Seroa, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), especialista em mercado de carbono e consultor do conselho.
O Artigo 6 trata dos resultados de mitigação internacionalmente transferidos (ITMO, na sigla em inglês), que é o conjunto de regras para permitir que os créditos de carbono sejam transacionados entre os países signatários do Acordo de Paris.
O que foi negociado, e será novamente na COP 26, em 2020, é como serão feitas essas transações e a sua contabilização para o cumprimento de metas do acordo de 2015, que precisa ser implementado na próxima conferência climática da Organização das Nações Unidas (ONU).
“De qualquer maneira, a gente observou uma nova postura pró-mercado de carbono. É uma mudança histórica, porque, até então, a posição do Brasil nas conferências era reticente, não dava tanta importância os mecanismos de mercado”, explica Ronaldo Seroa.
Para Marina Grossi, mesmo sem um acordo fechado, a participação empresarial e da sociedade civil brasileira na COP 25 demonstra que há um envolvimento crescente com as conferências do clima e com os objetivos do Acordo de Paris.
“Teve essa mudança histórica do governo brasileiro e outra, em relação às florestas. Começamos a ter a sinalização que para a próxima COP a mensagem estará mais clara pró-mercado já que a gente viu alguns participantes importantes do setor agrícola, de florestas, de uma maneira que não participavam antes”, afirma.
Leia a entrevista na íntegra
Qual era a expectativa para participação do Brasil na COP 25?
Marina Grossi: Foi levar os dois principais pontos que a gente tem debatido muito aqui no Brasil, que tem trabalho com vários setores e levado para o governo: que se fechasse o livro de regras do Acordo de Paris e, sobretudo, o Artigo 6, que é onde o setor privado tem a participação, que cria mecanismos financeiros para atuação do mercado. Nossa expectativa era que se fechasse [um acordo para o Artigo 6]; mas não fechou.
Tínhamos uma proposta muito clara dos princípios que deveriam reger a atuação do governo, do ponto de vista do setor privado, para que o mercado de carbono funcione bem e o Brasil tire vantagem disso, mas apesar de o governo ter se declarado pró-mercado, no fim, o Artigo 6 não conseguiu ser fechado. Não foi só o Brasil, outros países também [apresentaram exigências].
A visão clara, pró-mercado [de carbono], do Brasil precisa ser mais bem trabalhada e outros países também pediram [alterações]. Essa discussão vai para a próxima COP.
Ronaldo Seroa: De qualquer maneira, a gente observou uma nova postura pró-mercado de carbono. E uma mudança histórica, porque, até então, a posição do Brasil nas conferências era reticente, não dava tanta importância os mecanismos de mercado, não tinha nenhum debate na NDC brasileira. Então, isso ficou cristalizado e daqui para frente, pelo o que a gente entende, vai nortear a posição do Brasil para a COP 26.
[A Contribuição Nacionalmente Determinada ou NDC (na sigla em inglês) são os compromissos firmados pelo Brasil no Acordo de Paris.]
Marina Grossi: Teve essa mudança histórica do governo brasileiro e outra, em relação às florestas. Começamos a ter a sinalização que para a próxima COP a mensagem estará mais clara pró-mercado já que a gente viu alguns participantes importantes do setor agrícola, de florestas, de uma maneira que não participavam antes.
Quais foram as exigências que impediram um acordo para o Artigo 6?
Ronaldo Seroa: O Artigo 6 tinha vários empecilhos. O Brasil queria de alguma maneira vender créditos sem ajustar essas vendas à meta brasileira, ou seja, o Brasil venderia um crédito que já teria sido usado tanto pelo Brasil quanto pelo país comprador. Esta posição, o Brasil flexibilizou, mas foi no final, uma construção criada dentro da própria conferência.
Outras questões também tinham criado alguns obstáculos nas discussões entre as partes, no Artigo 6.2 [ver nota]. Neste caso, o Brasil não criou problemas, mas Europa, Estados Unidos tinham visões diferentes. O Artigo 6 não fechou não apenas por conta do Brasil, ficaram quatro ou cinco assuntos pendentes, contra vinte ou trinta que tínhamos no passado.
Nota: o Artigo 6.2 trata dos objetivos do mercado de carbono – “promover o desenvolvimento sustentável e garantir a integridade ambiental e a transparência, inclusive em governança” – e da contabilidade dos créditos em relação às metas individuais – “empregar uma contabilidade robusta para garantir, inter alia [entre outras coisas], que a dupla contagem seja evitada, em conformidade com a orientação adotada pela CMA [órgão de controle do Acordo de Paris]”
Marina Grossi: Na Polônia [COP24, de 2018], o Brasil foi o grande obstáculo do Artigo 6. [Agora], com essa postura pró-mercado de carbono, a gente começou a ter uma inflexão, uma mudança na postura do governo.
E os outros países?
Ronaldo Seroa: são quatro assuntos pendentes: como o MDL [ver nota] vai ser transacionado, o ajuste correspondente, o cumprimento de metas antes de vender os créditos e a taxação sobre as transações do Artigo 6.
O Brasil não quer que tenha essa taxação, os Estados Unidos também não. Os países que são beneficiados pela taxação querem, que são os da África. Essas são as questões que me parecem que ficaram pendentes.
Tinha-se uma posição da Austrália quanto ao MDL [ver nota]. Na última hora, o país queria usar [os créditos de carbono] para o cumprimento das metas, em uma posição até mais radical que a do Brasil – que queria vender, mas não queria usar para o cumprimento das metas. Seria tentar vender algo já mitigado para cumprir uma meta futura.
Os Estados Unidos queriam impor que as vendas de crédito do Artigo 6.2 acontecessem apenas depois que o país comprovasse ter cumprido as suas metas, o que reduziria muito o potencial do mercado.
[Nota: MDL é o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), criado pelo Protocolo de Kyoto, que prevê a possibilidade de compensação, por meio de créditos de carbono, por redução de emissões. A discussão no Acordo de Paris é como e se transferir os créditos para o Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável (MDS), criado pelo Artigo 6. O governo brasileiro defende que há um saldo de créditos gerados, mas não pagos ao Brasil, por países em desenvolvimento, da ordem de US$ 2,5 bilhões, com base no MDL.]
Fica a percepção, contudo, que houve um avanço significativo nessa discussão, então?
Marina Grossi: Teve um avanço, sim, mas não fechou. A expectativa era que se fechasse um acordo. O que teve de ganho concreto da COP da Polônia para essa é que o Brasil foi um obstáculo para o Artigo 6 e agora houve uma flexibilização dessa postura, de ser pró-mercado e aceitar o mercado como um elemento para que a gente cumpra a meta da NDC e possa transacionar créditos de carbono no futuro.
Como essa flexibilização aconteceu, mas não fechou o livro de regras do Acordo de Paris, que segue para a próxima COP, a gente vê que houve um avanço em vários pontos que estavam em aberto, restringimos para menos pontos e continua a negociação. É difícil tirar uma fotografia agora e dizer que são posições definitivas dos países porque isso pode mudar, não acha?
Ronaldo Seroa: Sim e, inclusive, quando o Brasil flexibilizou, outros complicadores, que não apareciam antes, surgiram. A coisa não andava por conta do Brasil, mas quando sai do caminho, apareceram outros problemas.
Bem, esse ano as políticas ambientais do Brasil foram muito questionadas. Teve a crise dos incêndios na Amazônia, a forma como o governo lidou com isso, tanto na retórica quanto nas ações tomadas, de fato. Como o Brasil foi recebido na COP nesse primeiro ano do governo?
Marina Grossi: Teve toda uma participação da sociedade civil, tínhamos o Espaço Brasil, que não foi o governo federal que proporcionou, mas tivemos lá manifestações tanto de governadores, de ONGs, de ambientalistas, de representações da sociedade, então não é apenas governo.
O sucesso das COPs só pode aumentar. Tem a participação da sociedade civil e das empresas, dos governos subnacionais, deputados de vários lugares do país, que percebem que a COP tem que avançar, que eles têm que estar presentes, então claro que no âmbito da ONU são os governos nacionais que estão fazendo a negociação, mas o governo tem que representar os anseios da sociedade.
Estávamos lá, o CEBDS com as propostas concretas para o mercado de carbono e o Artigo 6; também outras representações da sociedade dizendo o que tem que ser feito a respeito do desmatamento, discussões sobre nossos marcos regulatórios, pagamentos por serviços ambientais…
Teve uma discussão ampla, mas é claro que o desmatamento ilegal não conta a favor da imagem do país lá fora. Não estamos nem falando de política, mas de lei, de cumprir a lei. Cerca de 90% do nosso desmatamento é ilegal e isso é uma questão que deve ter uma clara sinalização que não toleramos mais isso. Para a próxima COP, é uma discussão como a gente vai organizar internamento nossos vários setores para cumprir a NDC.
A “emergência climática” foi a expressão mais utilizadas nessa COP. A gente volta com outra que é “governança climática”. O que a gente vai fazer para que a emergência climática seja contemplada no país e o desmatamento, sem dúvida, junto com outros fatores contra a nossa imagem, tudo isso tem que ser administrado e ter uma diretriz clara. Esse é o nosso dever de casa.
O estudo do CEBDS com a WWF e a CDP voltou a identificar que os executivos brasileiros têm a percepção dos riscos associados às mudanças climáticas…
Marina Grossi: Exatamente. Representamos as empresas e o nosso trabalho é falar “olha, é um bom negócio?”. Os dados que a gente traz, pela segunda vez, mostram isso, que é um bom negócio para as empresas brasileiras e para o país. E estão aqui os dados.
O que me chamou a atenção nesse estudo, em particular, que lançamos na COP, é que as oportunidades são mais percebidas pelas empresas do que os riscos. Mostra que, de fato, é um elemento de competitividade dentro das empresas e tem que estar na performance, computado na gestão das empresas, internalizado.
Vamos continuar fazendo pelo terceiro ano, para mostrar isso em Glasgow, na próxima COP, como as empresas estão se manifestando e o que elas estão fazendo em relação à mitigação e preservação.
Uma questão que foi respondida e que a gente tem trabalhado muito no CEBDS é a Task Force on Climate-related Financial Disclosures, TCFD, uma iniciativa global e no Brasil estamos fazendo junto com a Febraban. Enfim, como o setor privado está se comportando em relação às questões climáticas.
As empresas têm essa percepção, mas ainda precisam convencer o governo dessa urgência?
Marina Grossi: Todas as coisas, como a precificação de carbono, tendo marco regulatório, o governo consegue dar uma clara direção para o setor privado e uma escala maior para isso. É claro que tudo que a faz não é para iniciativas pequenas. Sempre damos sugestões sobre como pode ser replicado, como a escala pode ser melhorada, tanto na proposta de precificação de carbono, de transição energética, as PPAs [compra corporativa de energia].
Estudos recentes da Agência Internacional de Energia (eia) e da Irena trouxeram uma certa urgência, mostrando que ainda não estamos na rota necessária para atingir os objetivos do Acordo de Paris. Como o Brasil deve internalizar essa urgência nas nossas políticas públicas?
Ronaldo Seroa: Na energia ficou até fácil para o Brasil. A questão que está na cabeça de todo mundo que trabalha com planejamento energético é o que fazer com o gás do pré-sal. Tem a possibilidade de abertura, em discussão no setor energético. Então o Brasil está bem posicionado nessa discussão.
Se tivermos o compromisso do Ministério da Economia com uma economia de baixo carbono vai ser muito mais fácil calibrar essa transição, do que foi no passado. É tudo bastante promissor, muito mais promissor do que o controle de desmatamento que são milhões de ações a serem tomadas, integrações mais complicadas… No caso brasileiro, a transição energética é um sucesso e vai continuar sendo.
Marina Grossi: A gente tem tudo para ser um caso de sucesso. O que ainda falta é deixar mais claro, a narrativa tem de ser mais clara. Ainda tem algumas coisas, como a sinalização do BNDES para carvão, por exemplo… Falta alinhar algumas políticas sim e uma delas, talvez, seja o BNDES deixar claro algumas medidas. Tem alguns ajustes que precisam de um alinhamento maior.
Estamos falando do Acordo de Paris até 2030, mas tem a discussão de longo prazo, até 2050, então, dentro dessas diversas fontes de energia, o que estamos organizando no país? Temos várias opções [energéticas], a bioeconomia como solução para Amazônia, então como a gente utiliza isso da melhor forma? Quais tipos de incentivos, para que a Amazônia, por exemplo, o maior capital dela seja fruto da bioeconomia e não de outras riquezas que ela tem?
Precisamos de um direcionamento mais claro, para que as forças econômicas possam se organizar melhor, com estímulos claros para isso.