O Brasil possui 212 sistemas elétricos isolados em 7 estados, representando uma população de 3 milhões de consumidores, segundo dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) [1].
Sistemas Isolados são localidades elétricas que não estão conectadas ao restante do país, seja por razões técnicas ou econômicas. À exceção de Fernando de Noronha (PE), todos os Sistemas Isolados estão na Região Norte, de forma dispersa, conforme Mapa 1.
Embora esses sistemas representem 0,6% da carga nacional, a população isolada equivale, por exemplo, à de Alagoas. Para se ter uma ideia, há 7 Unidades Federativas com uma população inferior a 3 milhões. Além do fato de todo o estado de Roraima ser isolado até o momento.
Para 2023, o orçamento previsto para a Conta de Consumo de Combustível – CCC, fundo nacional de subsídios à geração de energia em sistemas isolados, é de cerca de R$ 12 bilhões, segundo projeção da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) [2]. Esse valor supera, por exemplo, todo o PIB anual de uma capital brasileira como Boa Vista, Macapá, Palmas ou Rio Branco [3].
A evolução dos subsídios para sistemas isolados demonstra a dificuldade enfrentada. O Gráfico 1 apresenta a evolução da CCC nos últimos 10 anos, em que os custos de subsídios passaram de R$ 4 bilhões para R$ 12 bilhões (+200%), de 2013 a 2022, conforme dados da Aneel [2], muito superior à inflação do mesmo período (78%).
Essa evolução também acompanhou a forte elevação na totalidade dos subsídios do setor elétrico da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), de que a CCC é parte (de R$ 14 bilhões para R$ 33 bilhões, +135%). Ainda assim, a CCC aumentou sua participação relativa na CDE ao longo dos anos, de 30% para 35%. O aumento de subsídios contribuiu para o aumento na tarifa de energia elétrica aos consumidores.
O planejamento setorial deve buscar conciliar eficiência econômica, energética e ambiental no atendimento a Sistemas Isolados. O Decreto nº 7.246/2010 estabelece que os Sistemas Isolados “deverão buscar a eficiência econômica e energética, a mitigação de impactos ao meio ambiente e a utilização de recursos energéticos locais, visando atingir a sustentabilidade econômica da geração de energia elétrica”.
Ocorre que a maioria dos Sistemas Isolados ainda utiliza diesel para fornecer energia à população. De fato, Sistemas Isolados requerem uma energia firme e disponível para gerar a qualquer momento, independentemente da natureza, considerando seu isolamento.
No entanto, há espaço para a substituição de diesel por gás natural, outra fonte energética firme e segura, em diversas localidades isoladas do Norte, utilizando gás amazônico, sobretudo, naquelas áreas de maior consumo elétrico (ganho de escala).
Isso porque, além de um combustível mais custoso e poluente numa região ambientalmente sensível, o diesel está mais sujeito às flutuações de preços do mercado internacional em comparação ao gás nacional, já o Brasil não é autossuficiente em diesel e depende de importações para abastecer seu mercado interno.
Por outro lado, o Amazonas, que concentra 45% de todos os Sistemas Isolados (97 deles) e quase 1,8 milhão de consumidores isolados (40% da população estadual), ostenta a 2ª maior reserva total de gás do país (45 bilhões de m³), superado somente pelo Rio de Janeiro, conforme dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) [4]. Há externalidade positiva com a soberania nacional.
Recentemente, foram dados passos importantes para pavimentar a reversão desse cenário preocupante:
- (i) o Leilão de Roraima, gerando resultados a partir de 2022;
- (ii) a Portaria Normativa nº 59, publicada em 2022 pelo Ministério de Minas e Energia após Consulta Pública que reformulou a contratação de Sistemas Isolados;
- e (iii) o Decreto nº 11.059, que regulamentou o Programa de Redução Estrutural de Custos de Geração de Energia na Amazônia Legal e de Navegabilidade do Rio Madeira e do Rio Tocantins — Pró-Amazônia Legal.
Leilão de Roraima
O Leilão de Roraima, realizado em 2019, permitiu a introdução do gás natural no estado, bem como a contratação de projetos renováveis naquela região, em substituição ao diesel. A Aneel também teve um papel decisivo no sucesso desse leilão, a partir da aprovação do edital.
O gás natural que é utilizado hoje para abastecer boa parte de Roraima é extraído do Amazonas, no Campo de Azulão. Foi o início da produção de gás na bacia sedimentar do Amazonas, região com extensão de área superior a Minas Gerais (620 mil km²) e que, até então, não produzia. O Campo de Azulão, resultado bem-sucedido de um desinvestimento da Petrobras em 2018, permitiu geração de emprego, renda e royalties à União, estados e municípios num curto intervalo de tempo, após investimentos de quase R$ 2 bilhões, graças ao Leilão de Roraima.
Nos próximos anos, a partir da entrada dos demais projetos de geração ainda em construção em Roraima, espera-se que haja repercussão ainda mais positiva em redução da CCC, sem prejuízo da construção do linhão que interligará Boa Vista ao SIN em algum momento.
Enquanto o custo variável do gás em Roraima está na casa dos R$ 200/MWh, valores competitivos até mesmo para o SIN, o diesel ultrapassa R$ 1000/MWh [5].
Segundo projeções da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica [6], o custo da CCC em Roraima para 2023 já deve cair 17% (quase R$ 190 milhões) na comparação com 2022, considerando a substituição parcial do diesel pelos novos contratos do Leilão no estado.
Há também um efeito ambiental favorável, com redução das emissões, no contexto de discussão de mudanças climáticas. A EPE estima que, em 2024, o gás natural e a biomassa/biodiesel já contratados representem 40% de toda geração prevista em Sistemas Isolados [1]. Antes do Leilão de Roraima, o diesel totalizava quase 100%. Mas há espaço para mais.
LPI: Novo marco para a modicidade tarifária
Em 2022, o Ministério de Minas e Energia (MME) lançou Consulta Pública para discutir mudanças na forma de contratação de Sistemas Isolados. Após receber diversas contribuições da sociedade civil e agentes econômicos, foi publicada a Portaria Normativa nº 59, que traz aprimoramentos importantes.
Além de uma base de dados detalhada sobre os custos e situações em Sistemas Isolados, batizada de Portal de Acompanhamento dos Sistemas Isolados (Pasi), foi criado um mecanismo de licitação semelhante à Oferta Permanente da ANP, denominado Livre Proposta de Interesse (LPI).
Na LPI, os empreendedores poderão indicar, a qualquer momento, soluções alternativas de suprimento para expansão, complemento ou substituição da oferta existente em localidades isoladas, desde que representem redução de subsídios ao país.
Essas propostas serão avaliadas tecnicamente pela EPE para recomendação de inclusão em leilão futuro ao MME. No caso, vencerá quem ofertar a maior redução de subsídios da CCC. Isto é, ganha a competição e o consumidor, com redução de custos.
A LPI é um instrumento inovador porque permite que o mercado sinalize, de forma antecipada ao governo, quais são as localidades de interesse para a redução potencial da CCC, ainda que tais localidades não estejam com previsão de déficit no horizonte de planejamento.
Até então, a inclusão de novas localidades em leilão possuía relação com a previsão de déficits, com base nos dados fornecidos pelas distribuidoras de energia. No relatório do horizonte 2023-27, a EPE identificou déficit de potência e/ou energia em 37 Sistemas Isolados, por exemplo.
A iniciativa da LPI deve representar um novo marco para a modicidade tarifária, já que permite um mecanismo perene de contratação e manifestação do interesse do mercado em avaliar a fundo a realidade de custos dos Sistemas Isolados, a fim de propor soluções atrativas ao planejamento. A alteração traz um empreendedor ativo e participativo.
Outros aprimoramentos foram o aumento do prazo de planejamento setorial de Sistemas Isolados de 5 para 10 anos e a estipulação do fim da Geração Própria até 2029.
A Geração Própria ocorre quando a própria distribuidora gera a energia para a localidade isolada, sem um contrato de fornecimento com um gerador. Dessa forma, acumula as funções de geradora e distribuidora.
A Portaria Normativa nº 59 passa a exigir a contratação, via licitação, de soluções de suprimento para tais localidades. Hoje, os custos com Geração Própria somam cerca de R$ 500 milhões/ano, segundo a CCEE [6], o que demonstra espaço amplo de oportunidades para investimentos na Região Norte.
Pró-Amazônia Legal
O Decreto nº 11.059 busca a implementação de projetos que reduzam estruturalmente os custos da CCC, integrando as localidades isoladas ao SIN, substituindo Geração Própria por licitações de soluções de suprimento, desenvolvendo novas soluções de suprimento, aprimorando a eficiência energética e desenvolvendo soluções para reduzir o nível de perdas.
Segundo a EPE, o índice de perdas em Sistemas Isolados é bastante elevado, superando 30% em alguns casos. O Amapá, por exemplo, tem apresentado perdas superiores a 45% [1].
Serão aportados pela Eletrobras, por efeito da Lei nº 14.182, pelo período de 10 anos, R$ 206,5 milhões/ano para a redução dos custos da CCC e R$ 88,5 milhões/ano, para o desenvolvimento de projetos de navegabilidade do Rio Madeira e do Rio Tocantins.
Esses recursos servirão para reduzir os montantes de subsídios da CCC a partir de novos projetos que tragam modicidade tarifária, a partir de licitação. Há interseções entre o Decreto nº 11.059 e a Portaria Normativa nº 59.
Na Região Norte, considerando a restrição do desenvolvimento da malha rodoviária no contexto da floresta amazônica densa, a logística hidroviária e, consequentemente, a navegabilidade dos rios, possui relevância específica para as comunidades.
Não à toa, as localidades isoladas que se instalaram no Amazonas seguiram basicamente o curso dos rios. O Rio Madeira constitui hidrovia de interligação do Amazonas a Rondônia, com pujança econômica para escoamento de produção agropecuária e transporte.
Já o Rio Tocantins nasce em Goiás e banha os estados de Tocantins, Maranhão e Pará, onde possui a foz em Marajó, com boa parte do potencial hidrelétrico já desenvolvido, superior a 10 GW.
Subsídios, tarifa cara e risco à competitividade
Os Sistemas Isolados no Brasil enfrentaram um cenário preocupante de elevação de subsídios ao longo dos anos, o que encareceu a tarifa de energia elétrica aos consumidores e pode até mesmo ter comprometido parte da competitividade da indústria nacional.
Neste sentido, o Planejamento possui um papel significativo na correção de distorções e estímulo à competição por meio de licitação, a fim de se atingir o objetivo de eficiência econômica, energética, ambiental e valorização dos recursos locais, manifestos no Decreto nº 7.246/2010, quando editado durante o Governo Lula 2.
O Leilão de Roraima, a Portaria Normativa nº 59 (novas formas de contratação) e o Decreto nº 11.059 (Pró-Amazônia Legal) plantaram sementes recentes para a redução estrutural de subsídios na CCC nos próximos anos, criando uma quebra estrutural na tendência de alta da última década.
Para isso, a continuidade dos Leilões de Sistemas Isolados, com Soluções de Suprimento, mostra-se instrumento necessário, sem prejuízo de novas iniciativas que possam surgir no MME e debatidas com a sociedade.
A experiência demonstra que a construção conjunta do Planejamento setorial, por meio de Consultas Públicas, com ampla participação social e dos agentes para a melhor tomada de decisão técnica dos órgãos setoriais, permite resultados mais bem-sucedidos.
Lucas Ribeiro, economista pela UFRJ, é Gerente de Regulação da Eneva.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado
Referências
[1] Empresa de Pesquisa Energética, 2022. Relatório de Planejamento do Atendimento aos Sistemas Isolados Horizonte 2023-2027 Ciclo 2022. Disponível em <epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-713/EPE-NT-Planejamento%20SI-Ciclo_2022_r0.pdf>.
[2] Agência Nacional de Energia Elétrica, 2022. Nota Técnica nº 215/2022-SGT-SRG-SFF-SRD/ANEEL. Consulta Pública nº 063/2022. Disponível em <antigo.aneel.gov.br/web/guest/consultas-publicas?p_p_id=participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet&p_p_lifecycle=2&p_p_state=normal&p_p_mode=view&p_p_cacheability=cacheLevelPage&p_p_col_id=column-2&p_p_col_pos=1&p_p_col_count=2&_participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet_ideDocumento=48030&_participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet_tipoFaseReuniao=fase&_participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet_jspPage=%2Fhtml%2Fpp%2Fvisualizar.jsp>.
[3] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2022. Produto Interno Bruto dos Municípios. Disponível em <ibge.gov.br/estatisticas/economicas/contas-nacionais/9088-produto-interno-bruto-dos-municipios.html?t=pib-por-municipio&c=1400100>.
[4] Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, 2022. Anuário Estatístico 2022. Disponível em <gov.br/anp/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/anuario-estatistico/anuario-estatistico-2022>.
[5] Operador Nacional do Sistema Elétrico, 2022. Plano Anual da Operação Elétrica dos Sistemas Isolados – PEL SISOL 2023. RT-ONS DPL 0531/2022. Tabela 3-1.
[6] Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, 2022. Premissas Orçamentárias – Contas Setoriais 2023. Disponível em <antigo.aneel.gov.br/web/guest/consultas-publicas?p_p_id=participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet&p_p_lifecycle=2&p_p_state=normal&p_p_mode=view&p_p_cacheability=cacheLevelPage&p_p_col_id=column-2&p_p_col_pos=1&p_p_col_count=2&_participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet_ideDocumento=48033&_participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet_tipoFaseReuniao=fase&_participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet_jspPage=%2Fhtml%2Fpp%2Fvisualizar.jsp>.