RIO — Com o retorno das encomendas da Transpetro previsto para ocorrer no início de 2024, os estaleiros nacionais devem ganhar um novo impulso para se recuperar da crise que enfrentam há quase uma década. O novo programa de revitalização da frota foi revelado com exclusividade pela agência epbr.
Os grupos atingidos pela redução das contratações da Petrobras, pela crise da Sete Brasil e pelas dificuldades em competir com os estaleiros asiáticos nos últimos anos vão ter pela frente o desafio de entregar as encomendas rapidamente e com novas especificações.
Estão incluídas entre as novas exigências do mercado soluções para redução de emissões de carbono, o que passa pela maior eficiência energética e mudanças mais profundas, para uso de combustíveis e fontes alternativas (como baterias).
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Desafios para a retomada da construção de navios no Brasil
Diversos estaleiros nacionais estão em situação financeira complicada ou em recuperação judicial. Alguns ainda estão, inclusive, impedidos de participar de licitações da Petrobras e da Transpetro devido aos desdobramentos da operação Lava Jato.
Desde que assumiu o cargo, o presidente da Transpetro, Sérgio Bacci, mantém conversas com o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria Geral da União (CGU) para avaliar a possibilidade de que essas empresas sejam liberadas. Segundo o executivo, os principais grupos já estão aptos a participar das licitações.
Um dos motivos para a atenção dada pelo governo federal à indústria naval é a forte geração de empregos.
Segundo o Sinaval, esse setor chegou a empregar 82.472 pessoas em 2014, número que caiu para 21.447 em maio de 2022. Será preciso, então, voltar a capacitar mão de obra para o setor.
“Os estaleiros que antes estavam sendo usados para a construção dessas embarcações hoje são usados principalmente para reparos e manutenções”, alerta Tatiana Gruenbaum, sócia da KPMG para o segmento de infraestrutura.
Diversas fontes batem em um ponto em comum: o melhor cenário é colocar a indústria em um caminho sustentável, resiliente a flutuações do mercado e da política.
Navios, embarcações e plataformas: qual será a demanda?
Em entrevista à epbr, Sérgio Bacci, disse que as novas encomendas serão de navios gaseiros e embarcações para transporte de produtos claros e escuros. A quantidade de unidades ainda não foi fechada.
Na primeira leva, são esperados navios para movimentação de óleo e combustíveis. Veja os planos.
Interlocutores na indústria têm defendido que o governo deve estar atento ao propor as medidas, para que não afetem a sustentabilidade econômica da companhia, como ocorreu no passado.
Por isso, as encomendas devem ser restritas ao que é, de fato, necessário dentro do portfólio da Transpetro.
No mercado, há consenso de que a retomada do setor vai ser centrada na subsidiária da Petrobras.
Mas existe também a possibilidade de mais encomendas de empresas privadas nos próximos anos, por causa da crescente demanda por embarcações de apoio à exploração e produção e da baixa disponibilidade no mercado internacional.
No entanto, especialistas afirmam que, mais importante do que o tamanho da demanda, é assegurar a continuidade das encomendas, para manter os ganhos de eficiência e a curva de aprendizado do setor.
“A iniciativa não deve ter a magnitude de outros programas do passado, mas existe sim uma clara necessidade de renovação da frota”, diz o gerente geral de Desenvolvimento de Negócios em Descarbonização da Wärtsilä Marine, Lucas Correa.
“Com as novas plataformas que vão entrar em operação no país, é necessário ter mais unidades de apoio no mercado nacional”, diz.
É possível voltar a construir FPSOs no Brasil?
A princípio, o consenso no mercado é que não é possível neste momento entregar uma plataforma inteira dentro do prazo pedido pelas operadoras de forma competitiva.
Nem sequer há demanda. O atual plano de negócios da Petrobras prevê a instalação de 13 plataformas de 2024 a 2027, mas nove unidades já estão contratadas.
Outras três já tiveram os editais lançados, sem mudanças nos índices de conteúdo local, como é o caso das plataformas de águas profundas de Sergipe.
A próxima geração de FPSOs terá ao menos duas plataformas de grande porte em campos sob operação da Equinor. Para o projeto de Bacalhau (BM-S-8), na Bacia de Santos, a unidade contratada com a Modec terá o casco construído na China e integração em Singapura.
Em maio, a Modec levou também a FPSO do BM-C-33, campo de gás natural e de condensado na Bacia de Campos.
A esperança são os contratos de engenharia e integração de módulos. Ao todo, estaleiros nacionais já participaram da construção de 19 plataformas de produção, total ou parcialmente, segundo dados do Sinaval.
De forma simplificada, essas plataformas são divididas em três grandes pacotes:
- construção do casco;
- construção dos módulos da planta e processamento de óleo e gás;
- integração, etapa da obra em que os módulos são instalados.
“Nossa previsão é que, inicialmente, a Petrobras demande uma quantidade maior de módulos do que a que foi encomendada aos estaleiros nacionais nos últimos anos”, diz o presidente do Sinaval, Ariovaldo Rocha.
A entidade que representa os estaleiros – da qual Sérgio Bacci fez parte antes de assumir a Transpetro – volta a enxergar oportunidades nesse segmento.
“Isso permitirá que a indústria ganhe impulso e se prepare para assumir construções mais relevantes, como um volume maior de fornecimentos nas próximas plataformas”, defende.
Especialistas apontam que é importante que os incentivos adotados ajudem a garantir a perenidade das atividades, o que pode ajudar a indústria nacional a ganhar competitividade e, no futuro, absorver projetos maiores.
Uma nova janela de oportunidade para a construção de plataformas no país pode se abrir caso, por exemplo, a produção de óleo e gás na Margem Equatorial se torne viável na próxima década.
Qual a agenda dos estaleiros para a nova revitalização?
O Sinaval apresentou em abril um conjunto de propostas para a recuperação da indústria, que incluem a proteção aos navios de bandeira nacional, além de maior previsibilidade nas demandas da Petrobras e da Marinha e da criação de um programa de financiamento para exportação.
Uma das sugestões da entidade é que novas plataformas sejam contratadas de forma dividida, sendo um contrato para a aquisição do casco e outro para o topside, integração e comissionamento.
Dentre as propostas, estão o estabelecimento de um índice de conteúdo local para navios petroleiros e gaseiros.
No caso de plataformas, o grupo pede um percentual mínimo de 40% de contratação nacional para as atividades de detalhamento da engenharia, construção e montagem da planta de processo e integração. E o aumento da multa por descumprimento dos índices, de 40% para 200%.
Essas exigências são reguladas pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Bicombustíveis (ANP). Com o relaxamento das regras no governo Temer, os contratos foram atualizados.
São mudanças que, se saírem do papel, podem ter efeito apenas em campos que nem sequer foram descobertos ainda.
Criação da frente no Congresso Nacional
Há expectativa de que eventuais incentivos à indústria naval voltem ao debate legislativo, com o lançamento da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Indústria Naval Brasileira, marcado para terça (4/7).
Iniciativa do deputado federal e ex-prefeito de Rio Grande (RS), Alexandre Lindenmeyer (PT/RS).
“Vai ser importante debater esses temas, para que possamos corrigir alguns rumos e que esse setor não tenha uma política sazonal, de governo, mas sim de Estado”, defende.
Entre os temas prioritários para discussão, estão mudanças nas regras da BR do Mar, programa criado no governo Bolsonaro que alterou regras de contratação de navios. A intenção é voltar a priorizar embarcações brasileiras na cabotagem.
Além de possíveis alterações no Repetro, regime aduaneiro especial de exportação e de importação de bens para o setor de petróleo e gás.
Outro ponto defendido por alguns setores da indústria é a adoção de incentivos fiscais. A desoneração de itens usados na construção, por exemplo, pode ajudar, diz o presidente da Posidonia Shipping, Abrahão Salomão.
“É preciso desonerar a indústria naval. Tivemos estaleiros com produtividade similar aos coreanos, mas o custo não era compatível, devido aos ônus fiscais”, afirma.
Em tese, está na agenda da reforma tributária: criar um regime de cobrança por valor agregado (IVA), capaz de sanar o problema de acúmulos de créditos em cadeias complexas e desonerar investimentos.
Mudança cultural: bônus vs punição
No mercado, há também quem defenda a adoção de uma nova política de conteúdo local, focada em bonificar aqueles projetos em que houvesse maiores índices de contratação nacional, em vez de estabelecer percentuais mínimos altos e punir aqueles que não atingissem as exigências.
No passado, o governo tentou desenvolver um programa chamado Pedefor, de desenvolvimento industrial. Uma das ideias era justamente premiar fornecedores que conseguissem ganhar competitividade no mercado brasileiro.
Vai faltar trabalhador?
Ariovaldo Rocha aponta que a crise interrompeu a curva de aprendizagem e que vai ser necessário requalificar a mão de obra. Existem receios de que uma retomada esbarre na falta de profissionais qualificados.
“Há dificuldades de encontrar profissionais de nível técnico, por exemplo, como soldadores”, diz Tatiana Gruenbaum, da KPMG.
No passado, a construção naval ajudou a impulsionar a atração de profissionais estrangeiros para o país, o que pode voltar a acontecer no início do novo ciclo de investimentos, devido, sobretudo, à necessidade de atualização tecnológica do parque industrial.
“Profissionais estrangeiros podem também participar da qualificação da mão de obra local, eles ajudam a treinar e a transmitir conhecimentos para que em algum momento sejam substituídos pelos profissionais brasileiros”, diz Diogo Kloper, diretor de migração da Fragomen.
Reindustrialização e um plano de longo prazo
Além disso, é necessário um olhar atento a outros setores da economia que estão ligados à indústria naval, como fundição e metalurgia, forja e extrusão e os setores elétrico e eletrônico.
“É preciso entender que para engajar um processo harmônico e virtuoso de crescimento neste setor será necessário desenvolver outros que são fundamentais ao processo industrial”, afirma o coordenador do Grupo Economia do Mar (GEM), Thauan Santos.
Especialistas ressaltam ainda que a construção naval é um negócio global e que, portanto, os estaleiros brasileiros precisam ser competitivos a nível mundial para conseguir garantir atividades no longo prazo.
Evitar que a indústria dependa de políticas que são adotadas em um mandato presidencial e alteradas ou descontinuadas no período seguinte é um desses caminhos, diz o Sinaval.
Para o especialista em Petróleo, Gás e Naval da Firjan, Sávio Souza, os estaleiros brasileiros têm um diferencial competitivo em meio às crescentes preocupações ambientais no mundo e à busca por menores emissões de carbono nos processos produtivos.
“É importante aumentar o debate sobre o diferencial competitivo do fornecedor nacional a partir de uma matriz energética mais limpa, como a do Brasil, que por consequência, entrega produtos mais limpos”, diz.
Souza lembra ainda que é necessária uma maior coordenação de diferentes ferramentas de política industrial existentes, como o conteúdo local, o Repetro e a cláusula de P,D&I da ANP.
Analistas apontam também que garantir que a operação e manutenção das embarcações e instalações seja feita no país também contribui para o ganho de competitividade.
“Quanto mais expertise tivermos localmente para atender a primeira etapa, melhor poderemos nos inserir nas etapas subsequentes”, acrescenta Souza.
Como viemos parar aqui?
A indústria naval brasileira já foi uma das mais competitivas do mundo, na década de 1970, mas entrou em declínio.
Viveu um novo ciclo de crescimento nos dois primeiros governos Lula, com a reformulação dos mecanismos de financiamento por meio do Fundo da Marinha Mercante (FMM) e a inclusão do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
O impulso coincidiu com a descoberta do pré-sal e o lançamento, pela Transpetro, do Programa de Modernização e Expansão da Frota (Promef), que previa contratar 49 embarcações, sendo 43 navios petroleiros para transporte de óleo e derivados e seis navios bunkers.
Entre 2005 e 2012, o FMM concedeu prioridade para 38 projetos de construção, ampliação e modernização de estaleiros, num investimento de US$ 6,2 bilhões.
A partir de 2014, no entanto, houve uma redução das atividades da Petrobras, impactada pela Lava Jato e pela queda internacional do preço do barril de petróleo.
Na exploração e produção, a política de conteúdo local foi revista no governo de Michel Temer, após o impeachment de Dilma Rousseff. Foram reduzidas as exigências para plataformas de produção e sondas, por exemplo.
Marca da quebradeira em série, pós-Lava Jato, a Sete Brasil não conseguiu financiamento para a construção do portfólio de sondas e paralisou obras e encomendas.
Com isso, os estaleiros começaram a entrar em recuperação judicial, caso do Estaleiro Atlântico Sul (EAS) em Pernambuco, do Enseada na Bahia e do Estaleiro Rio Grande, no Rio Grande do Sul.