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Reequilíbrio econômico-financeiro de concessões e tributação

Análise da interação entre reequilíbrio econômico-financeiro de PPPs e legislação tributária, destacando desafios na aplicação da lei em contratos de concessão, por Diego Miguita e Felipe Sande

Legislação atual fixa em 9,25% a tributação de impostos federais dos CBIOs
Legislação atual fixa em 9,25% a tributação de impostos federais dos CBIOs

O objetivo do presente artigo é lançar luz sobre a relação intrínseca entre mecanismos de reequilíbrio econômico-financeiro de contratos de Concessões ou Parcerias Público-Privadas (PPPs) e a legislação tributária federal em vigor.

Mais especificamente, será explorado o atual cenário de disputas relacionadas à preservação da segurança jurídica que orientam a formulação de cláusulas dessa natureza e os desafios para a correta aplicação da legislação tributária sobre as repercussões patrimoniais da sua implementação pelos concessionários.

Para a adequada contextualização e compreensão do tema, são importantes breves considerações sobre a delegação de serviços públicos à iniciativa privada, que tem se tornado uma crescente no Brasil. Nos últimos anos, os serviços de diversos setores como energia, rodovias, iluminação pública e saneamento passaram a ser oferecidos por meio de contratos de Concessões ou PPPs.

Em essência, a escolha da execução de serviços públicos através de Concessões ou PPPs se apoia nas hipóteses em que (i) os agentes privados são mais eficientes que o Poder Público na prestação desses serviços; e (ii) por meio da delegação desses serviços aos parceiros privados, é possível alocar parcela dessa eficiência à sociedade. Em resumo, os serviços públicos se tornam melhores e mais baratos.

Em última análise, as Concessões e as PPPs devem ser encaradas como instrumentos para qualificação dos gastos estatais: geram valor público e aumentam o bem-estar social. Contudo, para que a eficiência privada se efetive e repercuta à sociedade, materializando-se em valor público, determinadas condições regulatórias são necessárias. É o caso, especialmente, da segurança jurídica assegura ao parceiro privado.

Embora intuitiva, é preciso enfatizar que, sem a preservação da segurança jurídica, seria impossível que a iniciativa privada prestasse serviços públicos melhores e mais baratos.

De fato, não havendo regras claras (legais, regulamentares e contratuais) – e a garantia da sua preservação – quanto às condições em que os serviços serão prestados e a remuneração a que fará jus, não haveria disposição para alocação de recursos econômicos em ambiente de alto risco, exceto com elevado prêmio. Isso faria com que, naturalmente, comprometesse a vantajosidade da delegação em detrimento da prestação direta dos serviços pelo Poder Público.

Segurança jurídica nos contratos de Concessões

Pragmaticamente, no contexto dos contratos de Concessões e PPPs, a segurança jurídica é elemento subjacente aos mecanismos de manutenção do seu equilíbrio econômico-financeiro. Por essa razão, a relação entre teoria e prática tem se estreitado nos últimos anos, emergindo inúmeros casos de disputas em torno do tema.

O assunto é denso e foge ao escopo do presente artigo descer a detalhes dos seus fundamentos teóricos e embates doutrinários travados nas últimas décadas no ambiente acadêmico sobre o conceito de equilíbrio econômico-financeiro. Prefere-se, para fins de simplificação, adotar a explicação do que se qualifica como tal a partir de exemplo didático.

Na celebração do contrato de Concessão ou PPP, são estabelecidas as regras que regulam a sua execução, incluindo os direitos, as obrigações e os riscos assumidos pelo parceiro privado.

Hipoteticamente, seria possível que esse agente cumprisse o contrato sem que riscos alocados ao parceiro público se materializassem. Partindo dessa premissa, seria viável a mensuração precisa da performance econômico-financeira do agente privado, que denominaremos aqui de “performance econômico-financeira privada realizada”.

Contudo, a complexidade das operações e a imprevisibilidade de eventos não controlados pelos agentes, por exemplo, tornam impossível a verificação prática desse cenário ideal. Riscos materializados que são alocados contratualmente ao parceiro público repercutem na performance econômico-financeira do agente privado, afastando-se daquele parâmetro hipotético ideal.

Se o risco materializado tiver sido alocado ao parceiro público, é indiscutível que não devem repercutir sobre os direitos do parceiro privado. Assim, devem ser utilizados mecanismos que neutralizem os efeitos que esse tenha suportado, de modo a preservar a sua performance econômico-financeira, o que ocorre por meio de compensações. Do que foi dito, é possível visualizar a dinâmica e as etapas que compõem a manutenção do equilíbrio da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato:

  1. Reconhecimento da ocorrência evento de desequilíbrio: reconhecimento da materialização de riscos alocados ao parceiro público, os quais produzem efeito sobre a performance do parceiro privado;
  2. Mensuração do dano: mensuração do impacto produzido pelo evento de desequilíbrio a performance econômico-financeira do parceiro; e
  3. Valoração da compensação: valoração da compensação que deve ser dada ao parceiro privado de forma a neutralizar o dano produzido pelo evento em sua performance econômico-financeira.

Além disso, podem ser pontuados os desafios e as limitações para a sua correta aplicação:

  1. Reconhecimento da ocorrência evento de desequilíbrio: contratos são, naturalmente, incompletos, de modo que é impossível disciplinar com perfeição a alocação de riscos entre parceiros públicos e privado. É comum que haja exaustivos debates sobre as origens de eventos de desequilíbrio e a responsabilidade por seus efeitos;
  2. Mensuração do dano: isolar os efeitos decorrentes única e exclusivamente do evento de desequilíbrio é tarefa quase impossível, uma vez que a materialização de riscos alocados ao parceiro público tende a perpetuar efeitos sobre riscos que foram alocados ao parceiro privado. É comum que haja ruído (inexatidão) na mensuração do dano; e
  3. Valoração da compensação: a perfeita neutralização dos impactos decorrentes dos eventos de desequilíbrio depende da pacificação imediata da ocorrência do dano ou do conhecimento da “performance econômico-financeira privada realizada”. Ambas as situações não são possíveis na prática. É comum que haja ruído (inexatidão) na compensação, e que, portanto, o parceiro privado não volte ao estado de performance econômico-financeira anterior a ocorrência do evento.

É dentro desse contexto que emerge o papel dos aspectos tributários na dinâmica de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de Concessão e PPPs. Cabe ver que o tema da tributação pode estar presente nas três etapas da dinâmica de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de Concessão e PPPs, a seguir exemplificados:

  1. Reconhecimento da ocorrência evento de desequilíbrio: alteração da legislação fiscal sobre os tributos que incidem sobre receita do parceiro privado, cujo risco é legalmente atribuído ao parceiro público;
  2. Mensuração do dano: caso em que não há o devido reajustamento tarifário por parte do parceiro público, implicando perda de receita do parceiro privado, com repercussões fiscais; e
  3. Valoração da compensação: caso em que a compensação ao parceiro privado ocorre por meio do aumento de tarifas, que deve considerar os efeitos tributários para que haja efetividade na neutralização do dano ao parceiro privado, ou a prorrogação / extensão do prazo de concessão.

Desafios à correta aplicação da legislação tributária que disciplina os contratos

A simplicidade da exemplificação não significa que a legislação tributária que disciplina os contratos de Concessão e PPPs seja igualmente simples. É exatamente o oposto disso: do curso normal da sua execução às etapas que formam a dinâmica de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, há inúmeros desafios para a sua adequada aplicação.

Nos últimos anos, especialmente a etapa da valoração da compensação tem provocado maiores controvérsias no âmbito da tributação corporativa federal, notadamente da apuração do imposto de renda da pessoa jurídica (IRPJ), da contribuição social sobre o lucro (CSL) e das contribuições para o Programa de Integração Social (PIS) e para o financiamento da Seguridade Social (Cofins). Isso é explicado, em grande medida, pela contabilidade societária aplicável a referidos contratos e a forma pela qual o legislador regulou os seus efeitos na Lei nº 12.973/2014.

Em breve resumo, após a convergência da normatização contábil brasileira aos padrões internacionais (International Financial Reporting Standards – IFRS), iniciada a partir da Lei nº 11.638/2007, a elaboração das demonstrações financeiras (DFs) no Brasil passaram a privilegiar o registro dos eventos econômicos, financeiros e patrimoniais que impactam as entidades conforme a sua essência econômica em detrimento da sua forma jurídica. Essa nova forma de “registro” tende a dar mais liberdade ao elaborador das DFs, adicionando-lhe um certo grau discricionariedade.

Para além da ruptura com o padrão contábil até então vigente, três características principais da sua adoção aumentaram o desafio das empresas:

  • (i) no Brasil, diferentemente do resto dos países, as IFRS, forjadas com visão e aplicação para “balanço consolidado”, são aplicáveis às demonstrações individuais, a partir das quais, por exemplo, os tributos corporativos são apurados e os lucros e dividendos são distribuídos;
  • (ii) as concessionárias de serviços públicos tinham a sua apuração tributária ligada às demonstrações financeiras regulatórias, as quais, ainda hoje, são elaboradas conforme o órgão regulador do setor econômico em que atuam; e
  • (iii) o legislador tributário optou por adotar, tanto para as concessionárias de serviços públicos quanto para as demais pessoas jurídicas, o resultado contábil apurado através das IFRS como ponto de partida de apuração do IRPJ, CSL, PIS e Cofins, eliminando qualquer vinculação com as demonstrações financeiras regulatórias.

Por mais que a complexidade dos contratos de Concessão e PPPs seja evidente, a legislação tributária é bastante enxuta no que diz respeito à sua regulação: basta notar que apenas três dispositivos formam a espinha dorsal da tributação corporativa na Lei nº 12.973/2014. São eles: no caso do IRPJ e da CSL, o artigo 35 (ativo intangível) e o artigo 36 (ativo financeiro) lidam com o resultado formado na etapa de construção da infraestrutura; e, no caso do PIS e Cofins, o artigo 56 lida com o momento da tributação (recebimento) das receitas oriundas da referida etapa.

Para quem não é familiarizado com a temática, tanto contábil quanto tributária, pode parecer simples isolar a etapa de construção, mas não é. O modelo bifurcado de reconhecimento de ativos financeiro (de contrato) ou intangível carrega consigo uma série de elementos extracontábeis para o reconhecimento, mensuração e evidenciação, projetando-se ao longo de todo prazo contratual.

Tanto não é simples que basta ler a regulamentação constante da Instrução Normativa RFB nº 1.700/2017, principalmente do seu Anexo VII, que pretende ilustrar como seria a apuração de uma concessionária de serviço público que reconhece ativo financeiro (de contrato) pelas características do seu contrato, para notar que há completo descasamento com a realidade fática.

Legislação tributária precisa ser clara e dar segurança

Resumidamente, as premissas do exemplo construído pelas autoridades fiscais não correspondem àquelas adotadas pelas empresas na aplicação das IFRS, o que, por si só, causa mais controvérsias do que elucidações.

Qual é a taxa do contrato? Há margem de lucro na etapa de construção? Qual margem? Qual critério para alocação dos recebimentos entre receita de O&M, receita de construção, atualização financeira e amortização do ativo financeiro (de contrato)? Como lidar com variações no recebimento do contrato, para mais ou para menos, em razão de revisões tarifárias ou ajustes regulatórios de performance?

Essas são apenas algumas questões que revelam a complexidade subjacente aos desafios tributários no curso normal da execução contratual, e para as quais a legislação tributária – e a respectiva regulamentação – não oferece resposta clara e segura.

Se não há clareza sobre as circunstâncias inerentes ao curso normal da execução do contrato, já é possível imaginar a zona cinzenta que ingressa o contribuinte ingressa quando da solução de desequilíbrios econômico-financeiros.

Relembre-se que a disciplina tributária indicada recai sobre a etapa de construção, o que torna obscura a sua aplicação a figuras semelhantes reconhecidas pela concessionária – ativo financeiro (de contrato) e/ou ativo intangível – quando, por exemplo, é acordada a prorrogação do prazo da concessão ou concedido direito a adicional tarifário pelo prazo remanescente.

Considerando que a valorização da compensação pode – como normalmente ocorre – não se dar na etapa de construção (ou que preveja obrigação substancial de construir, ampliar ou recuperar), qual deve ser o tratamento tributário?

De imediato, é fora de dúvida a necessária atualização e adaptação da legislação tributária em vigor, de forma a contemplar situações cada vez mais presente no âmbito das Concessões e PPPs. Vale dizer, seria de bom grado que o legislador, ciente das particularidades vivenciadas pelas concessionárias, alterassem a Lei nº 12.973/2014 para contemplar tais situações nos artigos 35, 36 e 56, refletindo-as na regulamentação aplicável.

Juridicamente, a solução possível parece encontrar respaldo no artigo 108, inciso I, do Código Tributário Nacional, segundo o qual, na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará, como primeiro instrumento, a analogia.

Com isso, haveria integração da legislação tributária, apta a cobrir a situação das concessionárias de serviço público que não foi expressamente regulada pela legislação tributária. Nesse cenário, não haveria assimetria ou distanciamento com os critérios de apuração historicamente fixados pela legislação tributária federal com relação a contratos firmados com o Poder Público.

Entretanto, apesar dos avanços recentes no estabelecimento da consensualidade enquanto princípio que deve guiar a relação entre fisco e contribuinte, é induvidoso que há justo receio de que eventual aplicação da legislação pautada na analogia poderá ser objeto de questionamento pelas autoridades fiscais.

Daí porque o caminho mais consistente deveria partir do legislador, esclarecendo a aplicação das previsões legais em vigor para as mais variadas situações enfrentadas pelas concessionárias na valoração de suas compensações.

A título de exemplo, caso haja prorrogação do prazo da concessão como forma de valorar a compensação do parceiro privado, e isso implique reconhecimento de ativo intangível em contrapartida a receita no resultado, certamente deverá ser prestigiado a tributação do resultado conforme a sua amortização.

Conquanto o artigo 35 da Lei nº 12.973/2014 preveja referido critério para tributação no momento da etapa de construção, o racional subjacente é inteiramente compatível com o reconhecimento na etapa de operação e manutenção da infraestrutura.

Não há, em nenhum dos casos, receita jurídica auferida pela concessionária de serviço público, e a tributação na amortização se revela consistente porque, de um lado, a amortização é dedutível, de outro, tributa-se o resultado que formou o valor contábil do ativo intangível, para o qual não há custo fiscal. A evidência de que não constitui receita tributável é a previsão legal que esclarece que tal receita não compõe a base de cálculo do PIS e da Cofins.

Direito a adicional tarifário e indenização

Outro exemplo que também ilustra o que está sendo dito é o acordo entre o Poder Concedente e o parceiro privado que permite ao segundo o direito a adicional tarifário ao longo do prazo remanescente da concessão e, se esse for insuficiente ao reequilíbrio, direito à indenização.

Em outros termos, há certeza quanto ao recebimento, mas que depende tanto da passagem do tempo quanto da prestação do serviço público. Novamente, não há receita juridicamente auferida – ou renda adquirida e disponível – por ocasião do reconhecimento contábil de ativo financeiro (de contrato) em contrapartida ao resultado do exercício.

Recorrendo-se à lógica subjacente ao artigo 36 da Lei nº 12.973/2014 (diferimento da tributação do resultado para o momento do recebimento), a interpretação mais consistente é, de fato, que o tratamento nele previsto se amolda perfeitamente a essa hipótese de valoração da compensação do parceiro privado.

  • Basta um esclarecimento legal no sentido de que não está restrito à etapa de construção: o mais correto seria prever que se trata para a contabilização adotada em conformidade com as IFRS – nomeadamente, a Interpretação nº 01, a Orientação nº 05 e o Pronunciamento Técnico nº 47, todos emitidos pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis.

Enquanto a necessária adaptação legislativa não ocorre, as autoridades fiscais, felizmente, têm preservado o racional subjacente à disciplina tributária dos contratos de concessão de serviços públicos.

Para citar a manifestação mais recente, na Solução de Consulta COSIT nº 203/2023, embora tenha sinalizado pela inaplicabilidade dos artigos 35 e 36 da Lei nº 12.973/2014, reconheceu a aplicação do artigo 10º do Decreto-Lei nº 1.598/1977 em situação cujo reconhecimento do ativo – no caso, financeiro – tenha se dado em momento diverso da etapa de construção.

Por caminho igualmente válido e acertado, fez prevalecer tratamento historicamente dispensado pelo legislador, evitando (mais) disputas administrativas e judiciais entre a concessionária de serviço público e o Poder Público – que, por sinal, pode ser o mesmo Poder Concedente que deu origem a disputa contratual que se encontra na base da controvérsia tributária.

Seja como for, o importante é evitar que uma disputa – de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato de Concessão ou PPP – dê origem a outra disputa, de natureza tributária, tornando ainda mais árido e arriscado o investimento tão necessário em infraestrutura no Brasil. E isso que ainda não falamos da Reforma Tributária que está para ser regulamentada.

Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.

Diego Miguita é sócio de VBSO Advogados. Mestre em Direito Tributário na Faculdade de Direito da Universidade da USP. MBA em gestão tributária pela FIPECAFI. Graduado em Direito pela PUC/SP. Certificado em International Financial Reporting (CertIFRS) pela Association of Chartered Certified Accountants (ACCA) e em IFRS pelo The Institute of Chartered Accountants in England and Wales (ICAEW). Fundador e coordenador do Núcleo de Estudos sobre Práticas em IFRS – NEP/IFRS.

Felipe Sande é especialista na modelagem econômico-financeira e reequilíbrios de concessões e PPPs, sócio do BRL Parcerias, coordenador do curso de modelagem econômico-financeira de PPPs e concessões (Fipe e Radar PPP). Mestre em Finanças pela Universidade de São Paulo (USP), autor de artigos sobre concessões, PPPs e outros.