Combustíveis e Bioenergia

Quando as instituições funcionam: as mudanças no modelo tributário de combustíveis

Evolução transformadora para tributação dos combustíveis saiu do papel e entrou em vigor em menos de 24 horas, escreve Marcelo Araújo

Quando as instituições funcionam – as mudanças no modelo tributário de combustíveis
Preços dos combustíveis no Brasil estão mais caros que média mundial (foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

O dia 10 de março de 2022 merece ser lembrado como um dia em que a democracia brasileira, que tem sua saúde tão frequentemente questionada por nós, brasileiros, mostrou uma vitalidade exemplar.

Em apenas um dia, as duas casas do legislativo foram capazes de aprovar uma evolução absolutamente transformadora do modelo tributário de combustíveis, que foi sancionada no dia seguinte e transformada em lei.

Após um amplo e longuíssimo debate com diversos setores da sociedade, o projeto saiu do papel e entrou em vigor em menos de 24 horas. É sobre o frescor desse consenso — precioso em tempos de polarização — que escrevo este artigo.

O aperfeiçoamento do modelo de tributação de combustíveis, principal fonte de receita dos estados da federação, é estruturante para o presente e o futuro do país. A lei promove uma simplificação histórica.

Dispositivo similar já consta em nossa Constituição Federal desde o longínquo 2001, tendo aguardado todos esses anos na fila.

Durante esse hiato de regulamentação, testemunhamos toda sorte de distorções e conflitos.

Guerras fiscais, sonegação, fraudes, passeio de produtos, ineficiências logísticas, déficit de investimentos pela insegurança tributária, ampliação da volatilidade pelo ônus tributário recair sobre o valor da mercadoria e não sobre seu volume, efeitos inflacionários residuais, e mesmo a perda de referência dos consumidores pelo modelo de ajustes quinzenais.

Enfim, um contexto caótico que nos deixou por tantos anos com o triste recorde do pior modelo tributário de combustíveis do mundo.

Petrobras reafirma sua autonomia

Foi de alto teor simbólico que tal mudança na regulamentação tenha ocorrido no dia em que a Petrobras reafirmou seu compromisso com os princípios de mercado para o preço dos combustíveis.

Sabemos da dificuldade da sociedade em absorver aumentos, e de seus impactos, mas foi importantíssimo a companhia reafirmar publicamente sua autonomia.

Apesar das inevitáveis dores do curto prazo, a decisão sinaliza que será mantido um ambiente atrativo para futuros investimentos, além de afastar riscos de ruptura no abastecimento, com consequências nefastas para toda a sociedade.

O Brasil chega a mais essa crise no preço do petróleo em uma posição nova. Embora precise ainda importar combustível para dar conta da demanda interna, o país é hoje um relevante exportador de petróleo e será beneficiado com uma geração excedente de riqueza, no cenário presente de preços elevados.

ICMS é estruturante para manter preços realistas

Diante disso, os debates no Senado, com a participação ativa da Câmara, dos Ministérios de Minas e Energia, Economia e Casa Civil e de várias entidades da indústria e da sociedade, levaram a uma certeira conclusão: o melhor a se fazer seria combinar os benefícios da economia de mercado ao manter os preços realistas com a solução estruturante da evolução do ICMS.

É sensato — e totalmente em linha com os objetivos gerais da nova lei e dos princípios de mercado para a formação de preços dos combustíveis — que os legisladores tenham adicionado medidas de curto prazo para a mitigação dos impactos na sociedade dos indesejáveis aumento de preços de combustíveis.

Assim, foram excepcionalmente inseridos artigos autorizando a isenção de impostos até o fim do ano, que, com valores limitados, reduzem a incerteza de um potencial desequilíbrio fiscal.

Juntas, uma política de preços de mercado e uma regulação tributária mais saudável, alinhada às melhores práticas globais, resultam em previsibilidade, investimentos, aumento de capacidade e crescimento de competição.

Tem muito mais poder de reduzir estruturalmente os preços para o consumidor do que qualquer atalho heterodoxo que se possa imaginar, sem nenhuma de suas já experimentadas contraindicações.

Resultado após anos de diálogos

Fazendo justiça a um trabalho invisível de muitos anos, o debate que permitiu enfrentar essas questões de maneira organizada já vinha acontecendo há meses na Câmara, no Senado, no Executivo Federal e nos estados.

Observadores que não tiveram a oportunidade de acompanhar o passo a passo do debate entre sociedade e estado podem ter restado com a impressão de que a votação foi açodada. Na verdade, o que tivemos foi tudo, menos açodamento.

Vamos ao histórico recente de um debate já na sua maioridade.

— Em fevereiro de 2021, diante de (mais) um soluço de volatilidade e elevação dos preços do petróleo, o governo federal reabriu uma vez mais o debate iniciado com a mudança constitucional de 2001 e apresentou nova proposta de regulamentação do tema, o PL16/2021.

— O projeto, acolhido pela Câmara numa primeira discussão, foi apensado a um projeto anterior, de 2020, e então aprovado em outubro. Daí subiu para o Senado, que o aperfeiçoou em debates com todos os partidos, com o Governo e com a própria Câmara.

— O resultado do processo bem conduzido foi a aprovação em 10 de março com uma votação consagradora nas duas Casas, sem vencidos. Venceu o país e a sociedade.

Novo ICMS deverá beneficiar os estados

Ainda que os governadores possam estar sentindo neste primeiro momento que a regulamentação possa trazer perda de arrecadação, isso tende a não ocorrer.

A definição da alíquota única está nas mãos dos próprios governadores e de seus secretários de Fazenda, por meio do Confaz.

Eles terão um benefício muito grande com a redução da sonegação e uma maior previsibilidade da receita e da redução dos custos administrativos de fiscalização e arrecadação, que sempre foram desproporcionalmente elevados por conta da complexidade da regulação até aqui vigente.

Uma decisão que estava pendente há mais de 20 anos, justamente por ser complexa e relevante, teve um desfecho de sucesso porque as instituições e os princípios de mercado, que nos são tão caros, funcionaram.

Ainda restam enormes desafios a serem vencidos, é certo, mas o que se alcançou no setor de combustíveis é um exemplo do que a democracia brasileira é capaz de produzir se todos se mobilizarem, como ocorreu ao longo das últimas semanas e meses.

Os resultados que por certo virão deste revigorante exercício democrático equivalem apenas a uma pequena parte do que se pode esperar em uma reforma tributária mais abrangente. Que seja este um sinal da capacidade de nossa sociedade.

Marcelo Araújo é Diretor Executivo Corporativo e de Participações do Grupo Ultra, Presidente do Conselho da Associação Brasileira de Downstream (ABD) e membro do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP)