A Medida Provisória 1.304/2025 representa um passo importante, e necessário, no processo de correção de rumos no setor elétrico brasileiro.
Assim como na história, em que as grandes potências precisaram rever decisões estratégicas equivocadas para evitar colapsos — como os ajustes feitos pelos Estados Unidos após a crise do petróleo nos anos 1970 — o Brasil, com essa MP, busca corrigir distorções provocadas por escolhas legislativas desconectadas da lógica técnica e econômica.
Em especial, trata-se de um esforço para reverter os efeitos da imposição de 8 GW de usinas térmicas a gás natural em regiões sem infraestrutura, incluída na Lei de Desestatização da Eletrobras (Lei 14.182/2021).
Ao eliminar esse “jabuti”, que comprometeu o planejamento racional do setor, a MP 1.304 retoma o princípio de que a política energética deve ser construída com base em critérios técnicos e não em interesses pontuais ou políticos.
A imposição dessas térmicas, completamente dissociada da real necessidade do sistema elétrico e desconsiderando critérios básicos como infraestrutura local e custo-benefício, resultariam em prejuízos superiores a R$ 50 bilhões aos consumidores (conforme PDE 2031) caso fossem viabilizadas pelos leilões, comprometendo o equilíbrio do planejamento energético nacional.
Agravando ainda mais esse cenário, a posterior derrubada de vetos na tramitação da Lei da Energia Offshore (Lei 15.097/2025) eliminou mecanismos essenciais de proteção ao consumidor, como o limitador de preço-teto para evitar contratações a qualquer valor — o que multiplicou o potencial de impactos tarifários negativos.
É nesse contexto que a MP 1.304 se destaca: elimina os 8 GW de térmicas originalmente previstos na Lei da Eletrobras, sem impor nova obrigatoriedade para essa fonte, e condiciona qualquer eventual contratação remanescente à análise de necessidade e interesse do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE).
Além disso, reorganiza a contratação dos 4,9 GW de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) vinculados à Lei da Offshore, limitando-a a 3 GW escalonados entre 2032 e 2034 com possibilidade de modulação diária (o que parece indicar intenção de alocar sua geração para o período de ponta do sistema), e submetendo os 1,9 GW restantes também ao crivo do CNPE.
Embora ainda não seja o ótimo (idealmente não deveria haver qualquer imposição de PCHs), é sem dúvida um cenário menos danoso aos consumidores do que a versão do jabuti anteriormente vigente.
Essa racionalização é bem-vinda, mas a MP não se limita aos ajustes na matriz de geração. Ela também propõe mecanismos para conter o avanço dos subsídios repassados à Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), ao estabelecer um teto de custo baseado no orçamento de 2026.
A depender das rubricas responsáveis por eventuais aumentos de custo futuros, a medida autoriza a criação de um novo encargo extraordinário para recompor a arrecadação, incidindo sobre determinados beneficiários da CDE.
E é justamente aqui que surgem pontos de alerta. A tentativa de equilíbrio financeiro da CDE pela criação de um novo encargo sobre agentes do setor — como geradores — introduz riscos que não estavam originalmente previstos na precificação de seus modelos de negócios.
A lembrança da resolução CNPE 03/2013, que buscava imputar aos geradores e comercializadores o custo do Encargo de Serviço do Sistema (ESS), é inevitável. Na época, tal determinação foi barrada judicialmente e posteriormente derrotada no mérito.
Criar encargos extemporâneos sem debate amplo nem a devida previsibilidade regulatória compromete a segurança jurídica, afeta a atratividade do setor e desorganiza os sinais econômicos para novos investimentos.
Portanto, embora a MP 1.304 corrija as distorções introduzidas pela Lei 14.182/21, potencializadas pela derrubada dos vetos da Lei 15.097/25, e represente avanço importante na construção de uma matriz energética mais eficiente, o desenho do trecho que trata do encargo de complemento de recursos precisa ser aperfeiçoado.
O lado dos geradores renováveis, por exemplo, possui um incentivo de custo proporcionalmente menor e de crescimento mais lento (conectam-se majoritariamente na Rede Básica, onde a tarifa de uso é menor e, por derivação, o custeio dos outros 50% pela CDE) e já contam com um phase-out de subsídios bem estabelecido.
Os subsídios de energia incentivada do lado consumidor (uma das rubricas que mais tem impactado o aumento da CDE) podem ser tratados por outros mecanismos estruturais, como limitadores diretos do desconto de fio auferido.
No formato atual da MP 1.304 e a depender do desdobramento a ser interpretado pela regulamentação, corre-se o risco de criar situações como a transferência de custeios da CDE para agentes que não são responsáveis por eles, como geradores centralizados arcando com crescimento dos subsídios da geração distribuída.
Nesse sentido, o Congresso Nacional tem diante de si a oportunidade de promover uma revisão qualitativa do texto, assegurando maior equilíbrio entre os diversos elos da cadeia elétrica.
Combinada à tramitação da MP 1300, essa análise pode ser o início de uma transição estrutural que caminhe em direção à tão almejada modicidade tarifária — um objetivo que deve ser prioridade permanente de qualquer política energética responsável.
Bernardo Bezerra é diretor de Regulação e Inovação da Serena.