O governo do presidente Luiz Inácio Lula (PT) tem buscado, por decisão estratégica, retomar o viés social do Ministério de Minas e Energia (MME) e colocá-lo no centro de pautas que fugiam ao alinhamento ideológico da gestão Jair Bolsonaro (PL).
Inclui os direitos da população afetada por deslizamentos de barragens e o combate à atuação de organizações criminosas em garimpos.
Em meio à crise humanitária do povo indígena Yanomani, começa a ganhar corpo um plano para remodelar a imagem do ministério em relação às posturas adotadas pelo governo anterior.
Sob Bolsonaro, o MME do ex-ministro Bento Albuquerque defendeu políticas voltadas à mineração garimpeira, sob críticas na área ambiental.
Hoje, o governo Bolsonaro é investigado por estimular o garimpo ilegal nas reservas Yanomani, enquanto no MME se desenvolveram medidas para a “mineração artesanal”.
Após cumprir um papel de destaque na eleição de Lula, nos palanques mineiros, o atual titular da pasta, Alexandre Silveira (PSD), está há mais de 30 dias sem definir seu secretariado no MME e se aproximou de nomes ligados a Bento Albuquerque.
Barragens e crise humanitária na Amazônia
Na primeira reunião de governo, em 6 de janeiro, Lula disse aos seus 37 ministros que, não obstante as especificidades de cada pasta, existem dois pontos fundamentais para alcançar o que o Planalto tem chamado de “transversalidade”: a causa ambiental e as políticas sociais.
Todos os órgãos devem buscar adequação a tais valores, na visão da chefia do Executivo.
Dentro desse contexto, o MME foi pautado a atuar para além da abrangência técnica e regulatória. A missão foi reforçada em encontros recentes do presidente Lula com o ministro Alexandre Silveira (PSD), no Palácio do Planalto e no Palácio do Itamaraty.
O reposicionamento já tem sido observado nos discursos e agendas de Silveira. Na semana passada, durante visita a Minas para participar de atos em homenagem aos 4 anos da tragédia de Brumadinho, ele destacou que o trabalho do MME é pautado pelo “viés da justiça socioambiental”.
“Iniciamos nosso trabalho pautando nossas ações pelo viés da justiça socioambiental, com redução das desigualdades, diminuição dos impactos para as pessoas afetadas e inclusão das comunidades nos resultados positivos dos empreendimentos. Não haverá possibilidade no nosso país de qualquer política mineral tolerante com a insegurança.”
O primeiro movimento concreto do MME para se aproximar de causas sociais foi a interlocução com lideranças do MAB (Movimento de Atingidos por Barragens), em 23 de janeiro, em uma reunião na sede do Ministério de Minas e Energia, em Brasília.
O encontro se deu em meio às críticas pela demora na definição de cargos do segundo escalão e a possibilidade de nomeação de profissionais vistos como “bolsonaristas”.
Nesse encontro, sob reserva, Silveira revelou que pretendia viajar pessoalmente a Brumadinho e afirmou que o governo criaria uma comissão paritária para acompanhar o tema.
Dias depois, cumpriu a promessa e viajou à terra natal, Minas Gerais, a fim de prestigiar os atos em alusão aos 4 anos da tragédia que deixou 272 mortos.
O gesto foi bem recebido por lideranças do MAB (Movimentos dos Atingidos por Barragens), que lutam na Justiça por reparação a comunidades afetadas e denunciam violações de direitos na região de Brumadinho.
Durante a agenda, em 25 de janeiro, o ministro confirmou publicamente que o MME vai tirar do papel o CNPM (Conselho Nacional de Política Mineral), instituído em junho de 2022.
“Vamos investir recursos e esforços na fiscalização ferrenha de segurança de barragens para impedir que eventos lamentáveis voltem a acontecer”, comentou.
Repactuação do acordo por Mariana
Junto a outros ministérios, sob coordenação da Casa Civil, o MME também foi chamado a atuar no processo de repactuação do acordo de reparação de Mariana — em 2015, o rompimento de uma barragem da Samarco na cidade mineira provocou a morte de 19 pessoas e deixou centenas de desaparecidos.
Na última sexta-feira (27/1), o assunto foi levado a Lula pelo governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), em reunião no Planalto.
O presidente acionou então o chefe da pasta de Minas e Energia para que, a partir de um trabalho interministerial, o governo busque soluções em benefício da população impactada pelo desastre de 2015.
Após o encontro, Silveira declarou que pretende trabalhar por um acordo para que “a reparação seja feita o mais rápido possível”. Há expectativa de que um cronograma de ações seja desenhado nas próximas semanas.
A agenda para “mineração artesanal”
Na última segunda-feira (30/1), portaria assinada pelo ministro da Justiça, Flávio Dino (PSB), criou um GT (grupo de trabalho) com a finalidade de propor medidas contra a atuação de organizações criminosas, inclusive com a exploração do garimpo, em terras indígenas. O prazo de funcionamento é de 60 dias. Caberá ao Ministério de Minas e Energia, assim como os demais componentes, designar um representante para se somar aos esforços.
A decisão de instituir o grupo se dá como resposta do governo Lula à crise humanitária envolvendo o povo indígena Yanomami.
O governo reagiu ainda com outras medidas, como o fechamento do espaço aéreo na região (situada em Roraima, perto da fronteira entre Brasil e Venezuela) para aeronaves não autorizadas pela Aeronáutica, por exemplo.
O avanço da exploração clandestina nas terras dos Yanomami tem sido apontado como elemento propulsor de um colapso sanitário, ante ao descaso do poder público na gestão Bolsonaro.
De acordo com os registros oficiais, mais de 500 crianças morreram por contaminação por mercúrio, desnutrição e fome, em razão do “impacto das atividades de garimpo ilegal na região”.
Em quatro anos de mandato (2019-2022), Bolsonaro montou uma extensa agenda em incentivo à exploração mineral, flexibilizando a fiscalização por meio de decretos e portarias e levando ao Congresso o PL 191/2020, que propõe a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em reservas indígenas (a proposição ainda será discutida em uma comissão temporária).
Com o PL do Garimpo travado no Congresso, uma das medidas mais criticadas foi o Decreto 10.966/2022, editado em fevereiro do ano passado, que instituiu políticas públicas de incentivo à “mineração artesanal”.
Foram criados o Pró-Mape (Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala) e a Comape (Comissão Interministerial para o Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala).
Segundo o governo Bolsonaro, o decreto se justificava ao reconhecer que “a atividade garimpeira vai além de questões minerárias, sendo necessário tratar o garimpo e o garimpeiro de forma integrada e duradoura, promovendo boas práticas e fiscalizando o cumprimento dos compromissos da atividade econômica com o bem-estar ambiental e social”.
Do outro lado, ambientalistas alertavam que o decreto serviria, na prática, para que garimpeiros tentassem mascarar a prática ilegal sob argumento de que se dedicavam a uma tarefa rudimentar e “artesanal”, feita em pequena escala.
A exploração mineral clandestina, na verdade, é uma atividade que movimenta quantias financeiras exorbitantes e exige infraestrutura, principalmente na região amazônica.
Em nota, o então comando do MME respondeu à época que, “em nenhum momento, o decreto refere-se ou reforça ações ou atividades ilegais no país ou de cunho inconstitucional”.
A iniciativa de criação do Pró-Mape e da Comape se deu após sugestão do MME, sob comando do então ministro Bento Albuquerque, com o intuito de revisar o regime de outorga de lavra garimpeira.
O almirante era um entusiasta da mineração e, na condição de chefe da pasta, defendia a exploração de terras indígenas.
Em agosto de 2020, em entrevista à revista Interesse Nacional, Bento afirmou que o MME havia sido procurado por 50 comunidades indígenas supostamente interessadas em algum tipo de atividade exploratória.
“Temos mais de 600 comunidades indígenas no nosso país. Lá no ministério, nós já recebemos quase 50 comunidades indígenas que têm interesse que em suas áreas tenha atividade legal, controlada e fiscalizada não só pelas comunidades, mas também pelo Estado, a quem compete fazer isso”, declarou ele à época.
Na visão dele, a permissão e a regulamentação de atividades econômicas em terras indígenas, conforme sugerido pelo governo no PL do Garimpo, seria fundamental para que o poder público tivesse controle e pudesse fiscalizar a exploração.
“Isso nós estamos conscientes de que é fundamental para que o Estado tenha maior controle e que a sociedade, inclusive as comunidades indígenas, tenham retorno dessa atividade, que deve ser sustentável.”