PL do Gás: em defesa do bom, por Daniela Santos e Marcos Cintra

Europa facilita entrada de hidrogênio e biometano para descarbonizar energia e reduzir dependência do gás natural. Na imagem: Tubulação de gás natural, de diferentes bitolas, na cor branca com registros na cor vermelha (Foto: Divulgação)
Tubulação de gás natural (Foto: Divulgação)

O Projeto de Lei 6407/2013, o chamado Novo Marco Regulatório do Gás, está previsto para ser votado no Plenário da Câmara dos Deputados amanhã¹. Como no caso do Marco do Saneamento, o desafio é evitar que os interesses do Brasil sejam confundidos pelas demandas que pedem a manutenção do status quo e colocam em risco os interesses coletivos do país.

O último argumento dos opositores ao PL 6407/2013 é que o texto seria pouco ambicioso e não levaria em conta o cenário pós covid-19, portanto não responderia às demandas do setor.

Na verdade, a retirada de temas “mais ousados” do PL do Gás – tais como a distribuição e comercialização do gás natural, o mercado livre, entre outros – foi uma estratégia, legítima, para reduzir a resistência e evitar vetos, que poderiam obstruir sua tramitação e condenar o país ao imobilismo.  O que parece importar, de fato, é que o PL do Gás é correto e necessário em qualquer cenário futuro de desenvolvimento do setor.

Outra crítica ao Novo Marco Regulatório do Gás é que estaria sendo votado de forma açodada. Nada mais incorreto. Basta recordar que o PL tramita na Câmara desde 2013.

E, mais importante, o texto atual é uma versão aprimorada, que incorpora os princípios do programa “Gás para Crescer”, criado pelo ministério de Minas e Energia, em 2016. O programa assegurou inúmeras oportunidades de interação e debate e envolveu todos os segmentos, recebendo contribuições de mais de 700 especialistas. Portanto, não há dúvida que o PL do Gás é atual e maduro.

De fato, o relatório do Deputado Laércio Oliveira (PP-SE) agrada a praticamente todo o setor e tem entre seus pontos mais importantes:

Acesso às infraestruturas essenciais

Cria oportunidades para novos supridores e estimula a oferta de gás, pois prevê o acesso a gasodutos de escoamento, unidades de tratamento e processamento e terminais de GNL. O acesso à capacidade ociosa destas infraestruturas vai otimizá-las e gerar ganhos de eficiência.

Independência do transporte

Pilar da desverticalização, pode promover o tratamento não-discriminatório e isonômico entre os usuários desta infraestrutura, evitando que sejam utilizadas como uma barreira à entrada e como estratégia para criar condições predatórias que prejudicam a concorrência.

Alteração do modelo de outorga para o transporte e estocagem, de concessão para autorização

Cria condições mais adequadas ao investimento e o desenvolvimento destas infraestruturas conforme as demandas e o dinamismo do mercado.

Programa de desconcentração do mercado (gas release)

Envolve leilões periódicos de volumes de gás, uma realidade nos países que são referência em mercado de gás. Algo bastante oportuno no Brasil, que possui infraestrutura altamente concentrada. O gás release deve acelerar a introdução da concorrência.

Não há como dizer que tais pontos sejam secundários no processo de expansão do setor de gás no Brasil.

Há temas igualmente importantes não abordados que devem ser enfrentados, mas não necessariamente no PL 6407/2013. A comercialização do gás e a sua interação com a distribuição nos estados (monopólio constitucional), além das questões tributária e do uso nas termelétricas (despacho na base e gasodutos), são algumas dessas questões centrais, ainda sem solução.

Em relação ao primeiro ponto, variados diagnósticos indicam que a regulação da maioria dos estados está desatualizada, ou carece de segurança jurídica. Alguns têm normas pouco transparentes, não uniformes, que favorecem ganhos elevados de curto prazo, premiam a letargia e não estimulam a eficiência operacional e a ampliação da rede.

A potencial transformação econômica proporcionada pelo gás natural requer ambiente institucional e arcabouço regulatório estáveis, transparentes e uniformes, que não adicionem incerteza a um setor cujos projetos são intensivos em capital, têm longo prazo de maturação e carregam risco geológico.

Há várias formas de analisar a matéria, desde o “texto possível” até o “texto incompleto”. O que preocupa não é o “PL possível”, que deverá ser aprovado amanhã.

Mas sim a eterna falta de convergência para equacionar distorções tributárias e problemas relacionados à distribuição e comercialização de gás nos estados, inclusive no atual PL, além de decisões fundamentais que envolvem a interação do gás com energia elétrica.

As questões tributárias e do uso do gás nas termelétricas são capítulos à parte que têm o potencial de dificultar ou assegurar, em grande parte, o sucesso do Novo Mercado de Gás Natural.

É consenso que precisamos ser mais enfáticos, mas não há uma solução única e politicamente mágica para o tema.

As questões tributárias continuam necessitando de ajustes profundos. E as opções de uso do gás em termelétricas, bem como as oportunidades relacionadas à logística da sua movimentação, devem ser debatidas com os reguladores diretamente envolvidos, de modo a garantir um ganha-ganha necessário ao desenvolvimento do país.

O atual PL não precisa contemplar todas as questões do setor para ser eficaz e os temas faltantes (não menos importantes) podem ser equacionados em paralelo. Neste ponto, não podemos esquecer que a posição dominante da Petrobras não foi alterada por lei, mas sim por medidas administrativas (TCC CADE-Petrobras) e empresariais (plano de desinvestimentos da Petrobras), as quais reduziram consideravelmente a concentração do mercado e fizeram avançar um processo – até então improvável – de desverticalização que atraiu importantes agentes econômicos.

Portanto, não há solução única, rápida e fácil para o setor de gás. Uma lei não resolverá tudo. Críticos devem guardar as suas importantes contribuições para os próximos passos. Hoje, com um PL de Gás correto e necessário, estamos mais próximos do que antes. Vamos em frente com o PL 6.407/2013, afinal, como diria Voltaire, “o ótimo é o inimigo do bom”.

Daniela Santos, advogada e sócia da SG Advogados, é mestre em Direito (PUC-RIO). Marcos Cintra, executivo do setor de petróleo e gás, é doutor em Energia (IEE-USP).

¹Nota do editor: o PL 6407/2013 está na pauta da Câmara dos Deputados de quarta-feira, 26 de agosto.