RIO — Chegar a uma precificação adequada para o óleo da União que permita concluir que a privatização da partilha do pré-sal vale a pena tanto para o Tesouro Nacional quanto para a iniciativa privada será um dos grandes desafios do plano, segundo especialistas.
Pelo menos até o momento, na visão de consultores, os cálculos apresentados pelo governo não seguem a cartilha de boas práticas contábeis da indústria petrolífera.
A conta do governo Jair Bolsonaro (PL), que subsidia o projeto de lei da privatização da partilha estima que o potencial de arrecadação com a comercialização do óleo da União soma R$ 1,57 trilhão, em valores nominais, ao longo de 30 anos.
E que esse patrimônio, traduzido para o seu valor à vista, de R$ 398 bilhões em 2022, é suficiente para que a venda antecipada dos recursos da União valha a pena.
Especialistas alertam, no entanto, que o governo adotou parâmetros pouco usuais na indústria, ao justificar o plano de privatização da partilha.
Entenda: para chegar ao potencial de R$ 398 bilhões, com a venda antecipada do óleo da União, o governo trouxe as projeções de arrecadação de longo prazo para o Valor Presente Líquido (VPL) — um instrumento usado para tomadas de decisão sobre investimento. que consiste em trazer para o presente os fluxos de caixa futuros.
Como o dinheiro perde seu poder de compra ao longo do tempo, o valor nominal atual dos fluxos futuros é calculado com a aplicação descontos (deduzindo-se uma taxa de custo de capital).
No caso dos cálculos sobre a privatização da partilha, o governo assumiu que as receitas futuras deveriam ser descontados pela taxa Selic (de 12,75% ao ano). Desde a edição do PL, em maio, porém, a taxa básica já subiu para 13,75%.
Metodologia estranha ao setor de óleo
“Usar a Selic para calcular VPL na indústria de petróleo é coisa de burocrata de governo, sem experiência no setor”, afirmou um alto executivo de uma petroleira, sob a condição de anonimato.
Um dos índices utilizados na indústria é o WAAC (sigla em inglês para custo médio ponderado do capital). A métrica considera todos os custos que uma companhia teve para obter os recursos — não somente o capital próprio ou de fontes internas (como ações emitidas), mas também fontes externas como empréstimos de bancos.
Por que faz diferença?
O governo Bolsonaro quer vender à vista o óleo da União já contratado para os próximos 30 anos ou mais. Para isso, em tese, precisa comprovar que o saldo da operação – o valor mínimo que o óleo será ofertado – é vantajoso para o contribuinte brasileiro.
Para isso serve também a concorrência, em leilão. O objetivo é maximizar o retorno para os cofres públicos.
Quem está disposto a comprar, por sua vez, também vai calcular o desconto necessário para compensar o risco de antecipar bilhões de dólares para a União e assumir o risco futuro, em troca da garantia de volumes de óleo.
Esse equilíbrio faz com que até mesmo dentro do próprio governo se avalie que os compradores naturais do óleo futuro da partilha são os próprios membros dos consórcios, que já investem na área e, portanto, compartilham o risco. O maior deles, hoje, é a Petrobras, controlada pela União.
Quem é quem na partilha
Atualmente, existem oito empresas diferentes com participações em campos contratados sob o regime de partilha e que estão, hoje, em fase de produção: Petrobras, Shell, TotalEnergies, CNOOC, CNPC (e sua subsidiária CNODC), Repsol Sinopec, Qatar Petroleum (QPI) e Petronas.
Além disso, existem mais 13 contratos de partilha, que envolvem áreas que ainda não produzem e 13 companhias: bp, Chevron, CNODC, CNOOC, Ecopetrol, Equinor, ExxonMobil, Petrobras, Petrogal, Petronas, QPI, Shell e TotalEnergies.
Riscos para todos os lados
Para o diretor de pesquisa em exploração e produção da Wood Mackenzie, Marcelo de Assis, descontar o VPL de projetos com base na Selic é um critério simplista por parte do governo.
“São muitos riscos e isso tudo é descontado pelas empresas, no preço que elas estão dispostas a pagar. Não tem jeito. São incertezas de todos os lados: do preço do petróleo e da produção no futuro. O risco de aumento dos custos dos projetos, que mexem diretamente com os percentuais de óleo lucro para a União. Fora dos riscos político-econômicos que fazem a modelagem dessa operação ser bem complexa”, comenta Marcelo de Assis.
Ele explica que cada empresa tem sua própria metodologia de cálculo de VPL, a depender de sua origem e realidade financeira, por exemplo, mas que, em geral, o usual na indústria petrolífera, por lidar com uma commodity global, é descontar os valores com base numa taxa de custo de capital, geralmente em dólares (e não real) que considera a inflação (muitas vezes a americana).
Além disso, o exercício de tentar antecipar receitas de muito longo prazo lida com incertezas inerentes de uma indústria de commodities, como o valor e volumes futuros do petróleo. Isso dá a dimensão do tamanho do desafio que é concluir se vale a pena para o contribuinte antecipar a receita do pré-sal.
Para aprofundar:
- Privatização da partilha, à vista, desconta R$ 1 trilhão em receitas da União
- Metade do óleo da privatização da partilha sequer foi descoberto
- PPSA será privatizada? Perguntas e (algumas) respostas sobre o plano para liquidar o óleo da partilha
Metade do lucro em óleo não está garantida
Quase metade da produção futura de óleo da União na partilha, que o governo federal calcula valer R$ 398 bilhões em valor presente, nem sequer foi descoberta.
E a previsão de preço do barril considerada na simulação está desatualizada. É de 2021 e considera um Brent de US$ 61 em 2022, por exemplo — uma realidade bem distante da média de US$ 104 no ano. A cotação usada não ultrapassa US$ 85 até 2052.
Mesmo no curto prazo, a PPSA informou ao governo que nem sequer é possível antecipar com precisão o valor do óleo de Atapu e Sépia (uma nova corrente de óleo), a ser comercializado entre o fim deste ano e o início de 2023.
Sócia da Petres Energia e ex-secretária de Petróleo e Gás do Ministério de Minas e Energia, Renata Isfer, reforça que a tarefa de estimar receitas provenientes de contratos de 30 anos guarda em si dificuldades inerentes.
Ela lembra dos desafios enfrentados pelo governo, em 2019, nas negociações entre a Petrobras e União sobre o valor dos excedentes da cessão onerosa que foram a leilão.
“Não se tem certeza dos volumes [de petróleo] nem valores [dos preços]. É uma série de incertezas no meio de uma negociação para conseguir um bem maior, que era conseguir vender o excedente. Foi uma negociação muito difícil. Não existe um critério objetivo para chegar a um cálculo dizendo que óleo em 2045 vai estar custando tanto”, afirmou, durante participação na offshore week — evento promovido pela epbr.
Veja na íntegra o painel O que esperar do pré-sal na oferta permanente?, da epbr Offshore Week 2022
O líder de exploração e produção da S&P Global Commodity Insights para América Latina e Fronteira da América do Norte, Ricardo Bedegral, acredita ser “muito complicado chegar a uma equação” sobre os valores envolvidos na operação.
“Mesmo fora do período eleitoral, é muito complicado traduzir em algo salutar para ambas as partes: o governo querendo maximizar o seu lucro e empresas querendo maximizar o retorno”, disse, também na offshore week.
Procurado, o Ministério da Economia respondeu que, por meio da Portaria nº 8.472/2022, de 27 de julho, instituiu o Comitê interministerial para supervisionar estudos feitos/contratados pela Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA) para analisar todos os cenários de desestatização da empresa.
Já o Ministério da Economia esclareceu que caberá ao Comitê supervisionar estudos feitos/contratados pela PPSA para analisar todos os cenários de desestatização da empresa.