É claro que há uma euforia em torno das possibilidades que o hidrogênio – de qualquer origem – como vetor energético possibilita à matriz mundial hoje. No entanto, muito do que tem sido apregoado cai em narrativas mal construídas pelo senso comum. E, em especial sobre o hidrogênio verde, é preciso entender todo o seu potencial e o contexto energo-ambiental-social onde ele se insere.
Começando pelo método científico e o desenvolvimento tecnológico, vale ressaltar que toda tecnologia precisa de tempo de desenvolvimento e uma curva de aprendizado e de afundamento de custos a partir do ganho de escala. Foi assim com a energia eólica, com a energia solar, foi assim com inúmeros equipamentos do setor elétrico, foi assim a exploração do pré-sal e com o hidrogênio verde não será diferente.
Mas para além da análise de viabilidade técnica, é importante destacar que ponderar a viabilidade de um vetor energético essencial para o processo de descarbonização da economia, ou de qualquer outro projeto, apenas pelo seu custo econômico baseado em premissas de custos no tempo presente, não reflete todo o potencial e papel crucial do hidrogênio em um momento em que o pior dos custos é a crescente degradação do habitat em que vivemos e do qual dependemos.
No final do dia, pensar só em custos tem um viés reducionista e subjuga a inteligência do leitor. Foi assim com a energia eólica, com a energia solar, com a ida do homem à lua.
Ainda não é possível saber quais serão as preferências do consumidor no mercado futuro que trarão o equilíbrio entre oferta e demanda que refletirá no preço, mas já é possível afirmar que os produtos que comporão esse mercado deverão ser neutros em emissões de carbono. Deverão também atender às diretrizes de maior eficiência energética combinando eficiência produtiva e eficiência alocativa.
Vide o CBAM – Carbon Border Adjustment Mechanism, restrições de entrada de produtos importados no mercado europeu em um futuro muito próximo onde o hidrogênio verde pode descarbonizar o processo produtivo dos segmentos hard to abate como a siderurgia, para mencionar apenas uma de nossas commodities.
O CBAM já preocupa também o agronegócio, vide o programa “Soja de Baixo Carbono” capitaneado pela Embrapa, objetivando certificar áreas de produção com baixa emissão de gases de efeito estufa.
Não se trata de “exportarmos hidrogênio verde e exportarmos subsídios”, trata-se da manutenção de 27% dos empregos nacionais que são suportados pela agricultura brasileira, 12% do PIB nacional referente a indústria de transformação onde se insere a siderurgia e mineração, entre outras externalidades.
E para além da preferência do consumidor, trata-se de uma determinação moral e econômica, onde em um futuro breve, descarbonizar será uma imposição regulatória e decisiva entre acessar ou não um determinado mercado. Não há como escapar.
E é nessa toada que o hidrogênio verde tem sua adequação técnica e econômica garantida cumprindo os requisitos de ser produzido usando energias limpas e processos eficientes, atendendo aos interesses da sociedade na direção da descarbonização.
E, ainda, desenvolvendo toda uma nova indústria integrando os mercados energéticos, equipamentos com alto desenvolvimento tecnológico, agregações logísticas necessárias, infraestrutura, gerando empregos, rendas governamentais e garantindo a segurança energética e a posição dos produtos nacionais na nova ordem mundial verde.
Ou seja, olhar qualquer indústria sem olhar seu impacto econômico como um todo é, no mínimo, míope.
Nesta cobertura:
- Onde estarão os incentivos para o hidrogênio?
- Vale e Petrobras podem ancorar demanda por hidrogênio verde no Brasil
- Subsídios para hidrogênio podem vir da União, defende associação do setor
- União Europeia investirá R$ 10 bilhões em hidrogênio verde do Brasil
Making the long history short
É uma visão de desenvolvimento de estado e de país, que ao criar mercado para o hidrogênio verde, fortalece toda uma cadeia de suprimentos, como a da própria geração de energias renováveis, eletrolisadores, química, agronegócios, e ainda a possibilidade de exportação de um produto de valor agregado (Irena, 2023), posicionando o país no mercado global que já existe e que certamente poderá alavancar o processo de transformação do mercado doméstico.
Afinal, não é todo dia que se tem a oportunidade de usar o mercado internacional como alavanca para a indústria nacional fazer seu processo de transformação verde.
Por óbvio, já foram quantificados os investimentos e seus impactos e uma ponderação sobre o efeito multiplicador do Capex – que cada R$ 1,0 investidos, geram impacto de R$ 1,8 à 2,0,5 no PIB.
Uma indústria forte de H2V poderá gerar trilhões de Reais em investimentos até 2050, arrecadando em torno de oitocentos bilhões de Reais em todos os níveis do governo em contrapartida por incentivos equivalentes a R$ 100 bilhões (LCA, 2023). No curto prazo (2024-2030), calcula-se um superávit fiscal em torno de 70 bilhões de Reais (LCA, 2023).
São possibilidades autênticas para diversos setores da indústria nacional de desenvolverem novos negócios e descarbonizarem pari passu. A abundância de recursos minerais e a possibilidade de energia renovável a um baixo custo leva o Brasil a uma posição relevante nesse mercado, inclusive com a expectativa de custos de US$ 1,50/ kg em 2030, em o mercado se desenvolvendo com políticas públicas e arranjos fiscais apropriados (McKinsey, 2023) à guisa do que ocorre em outros países.
Planejamento e coordenação energética
Trata-se de projetos de infraestrutura de longo prazo, que trabalharão a segurança energética, a preservação ambiental, a descarbonização de setores importantes para a economia brasileira, o atingimento dos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU que o Brasil é signatário, a diversificação da matriz energética e a consolidação do país como uma referência em energéticos renováveis.
Estudos públicos nacionais apontam que em 2022 o Brasil destinou R$ 118,2 bilhões com subsídios aos combustíveis fósseis, sendo o destinado ao carvão, proveniente da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) R$ 749 milhões. Para fins de comparação, o valor destinado às fontes renováveis dentro da própria CDE é cerca de três vezes menor.
A exemplo de novas fontes energéticas que foram incentivadas por políticas públicas no país, o hidrogênio também requer um posicionamento estratégico de política pública no sentido de estabelecer um regramento que proporcione o desenvolvimento da tecnologia em coordenação com uma política capaz de assegurar a competitividade dos produtos domésticos no mercado internacional em coordenação com o fomento do desenvolvimento interno.
Mas ao contrário dos vetores energéticos tradicionais que guardam longevos subsídios públicos respaldados pelo consumidor de energia, a indústria do hidrogênio verde aponta em up-front com aproximadamente um bilhão de Reais nos próximos anos (BNEF, 2023) de investimentos em infraestrutura e Capex que reforçarão o orçamento doméstico e aquecerão a economia nacional. Os incentivos retroalimentam a economia na forma de empregos, de geração de renda.
Transformações tem sempre gatilhos e resistências, e usualmente não unicamente econômicas, a propósito, como ressalta Daniel Yergin sobre o desenvolvimento do GNL: “The technology had been developed during world war I. But, it was only after World War II that experiments began to liquify gas in order to transport it. The real spur was the killer fog that enveloped London in 1952 burning cleaner gas instead of coal to generate electricity would help alleviate pollution, and LNG could be the source of that gas“ [1] levou um tempo, mas aconteceu!
De forma análoga pode-se refletir sobre a trajetória tecnológica e a viabilidade econômica das energias eólica e solar, para além do etanol e do biodiesel que são verdadeiras fronteiras internacionais brasileiras.
Foi preciso um esforço conjunto de governos, iniciativa privada com os investimentos, academia e sociedade como um todo para viabilizar indústrias, incentivos e soluções.
Hoje a chamada energia nova é a que mais cresce e já é a de menor custo, sem contabilizar ainda os upsides e eventos climáticos – atenuados graças a uma matriz elétrica 90% renovável e com 25% de biocombustíveis do total de todo combustível líquido (e com tendência altista) distribuído no país.
- Da mesma autora: Os extremos climáticos e o papel do hidrogênio verde
Aproveitar o potencial verde nacional, as possibilidades reais da indústria da transição energética e da descarbonização e reindustrializar segmentos importantes da economia brasileira, podem dar ao Brasil o real espaço como referência global. Portanto, a transição energética é uma oportunidade histórica para o país e o Hidrogênio Verde pode ser um grande vetor desse salto econômico, social e ambiental brasileiro e global.
Fernanda Delgado é Diretora Executiva da ABIHV (Associação Brasileira da Indústria do Hidrogênio Verde), professora na FGV e co-criadora dos projetos “Sim, Elas Existem!” e “EmpodereC”.
Tradução:
[1] “A tecnologia foi desenvolvida durante a Primeira Guerra Mundial. Mas foi somente depois da Segunda Guerra Mundial que começaram os experimentos para liquefazer o gás para transportá-lo. O verdadeiro estímulo foi o nevoeiro assassino que envolveu Londres em 1952. A queima de gás mais limpo em vez de carvão para gerar eletricidade ajudaria a aliviar a poluição, e o GNL poderia ser a fonte desse gás.“