Hidrogênio em foco

A disputa entre hidrogênio e biocombustíveis na descarbonização

Por trás da discussão climática, está uma disputa geopolítica e econômica sobre quem vai se beneficiar das rotas tecnológicas da transição energética

Estação de reabastecimento de hidrogênio da Shell, em Cobham, na Inglaterra (Foto Divulgação)
Estação de reabastecimento de hidrogênio da Shell, em Cobham, na Inglaterra (Foto Divulgação)

A disputa entre hidrogênio, eletrificação e biocombustíveis voltou ao debate sobre clima e energia durante a COP30, em Belém. 

O embate não é novo e já esteve presente nas discussões sobre o futuro do transporte aéreo, segue nas negociações da Organização Marítima Internacional (IMO, em inglês) sobre o transporte marítimo e, agora, ganha novo fôlego com a polêmica em torno do recente acordo de eletrificação do transporte rodoviário pesado

Por trás da discussão climática, está uma disputa geopolítica e econômica sobre quem vai definir — e se beneficiar — das rotas tecnológicas da transição energética.

Uma agenda europeia  

A agenda global de descarbonização industrial e de transportes nasceu, em grande parte, na União Europeia. Pioneira em políticas climáticas e ambientais, a UE construiu sua estratégia a partir de uma vocação industrial e tecnológica voltada à eletrificação e à produção de hidrogênio verde por eletrólise. 

Essa orientação foi consolidada em diretivas e pacotes regulatórios que, na prática, criaram barreiras de entrada para soluções baseadas em biocombustíveis de primeira geração, e consolidaram o hidrogênio e a eletricidade como os vetores “oficiais” do net zero europeu até 2050.

O modelo influenciou fortemente as negociações multilaterais e o comportamento de instituições financeiras internacionais, que passaram a privilegiar projetos de eletrificação direta, hidrogênio verde e combustíveis sintéticos

Brasil em defesa da neutralidade tecnológica 

O Brasil entrou mais tarde na agenda climática global, mas trouxe consigo um histórico peculiar. Foi pioneiro na adoção em larga escala do etanol nos anos 1970, impulsionado por uma crise de oferta de petróleo — e não por preocupações ambientais. 

Sua matriz elétrica é a mais limpa entre os países do G20, graças à abundância de recursos hídricos — novamente, por vocação natural e não por questões climáticas.

Agora, com a transição energética em marcha, o país tenta reposicionar esses ativos históricos como vantagem competitiva. 

Em fóruns internacionais, o Brasil vem travando batalhas para que os biocombustíveis — etanol, biodiesel, biometano  — sejam reconhecidos como parte legítima das soluções de descarbonização.

E não apenas no transporte, mas também na produção de hidrogênio de baixo carbono, a partir de etanol, biogás, e biomassa.

Durante a COP30, a presidência brasileira tem entre suas prioridades inserir os biocombustíveis ao lado dos combustíveis sintéticos e eletrônicos — hidrogênio, amônia verde, e-metanol — como opções complementares e não concorrentes.

O argumento é que cada país deve trilhar o caminho mais compatível com sua vocação produtiva, sem trancamentos tecnológicos.

Concorrência inevitável, complementaridade possível

Mesmo com essa defesa de uma transição “plural”, há um reconhecimento de que a competição é inevitável. Hidrogênio e seus derivados vão disputar espaço com os biocombustíveis, e ambos enfrentarão a crescente eletrificação direta em alguns segmentos.

O que está em jogo não é apenas o futuro energético, mas também cadeias de valor, empregos e hegemonias industriais.

No transporte rodoviário pesado, a tensão se materializou nesta semana com a assinatura e o rápido recuo do Brasil do memorando Drive to Zero.

O documento, assinado sem coordenação com o Itamaraty, previa que até 2040 todos os caminhões e ônibus vendidos fossem livres de emissões, com meta intermediária de 30% em 2030. 

Mas o critério de “emissão zero” se restringia ao escapamento, excluindo biocombustíveis — o que contraria programas como o Combustível do Futuro e o Mover, bandeiras do governo Lula. 

A narrativa do Brasil tenta ampliar as rotas aceitas para descarbonização, e incluir combustíveis que, embora emitam CO2 na queima, emitem menos que os fósseis, e têm sua produção impacto muito menor do que hoje é considerado por padrões europeus.

No mar o debate segue 

No transporte marítimo, a discussão é igualmente complexa. O Brasil tenta emplacar os biocombustíveis como solução.

Há quem veja como um combustível de transição, até que alternativas como amônia e e-metanol estejam disponíveis em escala, outros como permanente para o uso de em embarcações menores e regionais.

Mas o avanço dessa estratégia enfrenta obstáculos práticos. Um deles são os “corredores verdes” — rotas marítimas com abastecimento com combsutíveis de baixo carbono nos portos de origem e destino. 

Se a Europa tiver dificuldade de produzir biocombustíveis suficientes e de baixo carbono, a padronização tenderá a favorecer os combustíveis sintéticos eletrônicos, restringindo o espaço para os biocombustíveis brasileiros.

E mesmo outras potências em biocombustíveis, como a Índia, vêm apostando forte na produção de hidrogênio de baixo carbono e derivados.

Um país de vocações

Mesmo assim, há oportunidades. O Brasil tem potencial para produzir não só biocombustíveis, mas também eletrocombustíveis — hidrogênio, amônia e e-metanol — a custos competitivos, graças à abundância de energia renovável. 

Estudo recente da RMI indicou que a amônia verde produzida no Porto do Açu, Rio de Janeiro, seria mais barata que a produzida no Egito, no projeto vencedor do leilão global de hidrogênio verde, o H2Global.

É o que explica o interesse de empresas como Fortescue e Itaipu, que aproveitaram a COP30 para exibir embarcações e projetos baseados em hidrogênio, demonstrando que o país também pode ser protagonista nessa nova fronteira.

A agenda brasileira acerta ao defender que não existe um único caminho tecnológico para a descarbonização. Países com vocações distintas devem ter liberdade para desenhar suas próprias rotas. 

Mas há um risco, que é o de concentrar esforços apenas na defesa dos biocombustíveis e negligenciar o potencial de liderar também na produção de hidrogênio verde e derivados.

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