Opinião

ANP tem oportunidade de dar freio de arrumação em sua agenda regulatória para o gás natural

Sobreposição de consultas e audiências públicas sobre o elo do transporte de gás confunde mercado e pode resultar em graves prejuízos para usuários, escreve Zevi Kann

Urna para depósito de propostas durante a segunda rodada de licitações da Cessão Onerosa (Foto Marcus Almeida/ANP)
Segunda rodada de licitações da Cessão Onerosa (Foto Marcus Almeida/ANP)

A posse de Artur Watt Neto para a Diretoria-Geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e de Pietro Mendes, para a Diretoria 4, certamente traz um alento para a autarquia, que tem múltiplas atribuições com impacto direto sobre a economia e a competitividade do país.

Desde já, um dos grandes desafios dessa nova composição da diretoria, agora com quadro completo e reforçado — após a aprovação dos dois nomes no Senado Federal e da nomeação formal no Palácio do Planalto —, é repensar os processos regulatórios no midstream do setor de gás natural.

É indiscutível que há muitas lacunas nas regulações nesse elo da cadeia e que a dificuldade de compartilhamento das instalações e as tarifas elevadas no escoamento, processamento e transporte têm comprometido a expansão do gás canalizado no Brasil.

O problema se arrasta desde a primeira Lei do Gás, a Lei nº 11.909/2009, cuja regulação demorou dez anos para acontecer sem que tenha sido plenamente concluída, e se prolongou com a Nova Lei do Gás (nº 14.134/2021), que, passados mais de quatro anos de vigência, ainda tem pouca coisa definida em termos de regulação do midstream.

Depois de tanto tempo de imobilismo, a ANP extraordinariamente procurou dar velocidade à agenda regulatória do elo de transporte de gás. Só que pisou fundo demais no acelerador. De forma atabalhoada, decidiu despachar vários assuntos relevantes de forma praticamente simultânea, em uma janela de seis meses. 

Tal encaminhamento vem atropelando tudo o que se espera de boas práticas de uma agência reguladora com a responsabilidade da ANP: eficiência, transparência e consistência técnica.

Ao longo dos últimos anos o que mais chamava a atenção do mercado é que os processos regulatórios têm surgido sempre atrasados ou ao final dos prazos legais, com notas técnicas de discutível qualidade.

Ocasionalmente, são acompanhados de documentos de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR), mas não cumprem com sua função porque são incompletos e não avaliam os impactos a que se propõem. 

Diante desse procedimento, agentes interessados não têm como acompanhar os processos e/ou se estruturar adequadamente para participar deles, pois grande parte dos documentos permanece confidenciais ou é liberada parcialmente, e tudo isso sem qualquer motivação. 

Proteger documentos com sigilo, por exemplo, tem aplicação prevista em regulação, mas o recurso deveria ser uma exceção, devidamente justificada, e não a regra geral, que só tem servido para atender solicitações sem critérios. 

Não são poucos os casos em que são liberados para consulta apenas os documentos com as respostas aos ofícios, mantendo, vejam só, a confidencialidade sobre estes. Não há lógica.

No caso dos denominados “contratos legados” da Petrobras com as empresas de transporte de gás, a ANP finalmente liberou o acesso a esses documentos em agosto de 2025, após insistentes solicitações.

Talvez tenha percebido que seria impossível realizar uma revisão tarifária no setor sem facultar esse conteúdo ao mercado. Até então, só era possível visualizar fragmentos da documentação, com tarjas negras sobre diversos trechos, tornando-os, muitas vezes, ininteligíveis. Os interessados só poderiam imaginar o que seria o conteúdo dos tais “contratos legados”.

Outra crítica é que a ANP não impõe um padrão na forma de disponibilizar as informações pelos agentes regulados, o que dificulta o trabalho e a compreensão dos interessados em contribuir com o processo. 

Além disso, as falhas processuais são notórias. Na Consulta Pública 15/2023, que tratava sobre o processo de reajuste no transporte, os questionamentos dos agentes interessados no processo foram respondidos diretamente pela parte interessada, ou seja, os transportadores, sendo que a ANP se limitou a endereçar as respostas, sem emitir juízo de valor. 

Assimetria de informação é intolerável

Em todo processo regulatório, as boas práticas regulatórias recomendam os seguintes princípios:

  • Documentos com informações completas: amplo acesso à documentação e às propostas da própria agência, que deve atuar como um filtro nas matérias sob consulta, divulgando as metodologias a serem utilizadas e permitindo a todos conhecer a sua visão no processo;
  • Processos com dados padronizados e prazos claros: acesso padronizado à informação e cronogramas factíveis, atendendo a uma sequência racional para que a regulação tenha os efeitos esperados, em prazos que permitam uma participação qualificada dos interessados; 
  • Qualidade técnica: notas técnicas devem ser bem elaboradas, contemplando todas as possibilidades da regulação proposta, justificando as escolhas com argumentação bem fundamentada; no caso de Relatório de Avaliação de Impacto Ambiental, é exigência legal que a proposta avalie as consequências econômicas, sociais e outras, junto a todos agentes.

Portanto, o regulador tem o dever de produzir notas técnicas isentas e tecnicamente qualificadas, que consolidem todas as informações de que dispõe. 

Essas notas devem incorporar a proposta de regulação e enumerar, item por item, os critérios que justificam cada encaminhamento, de modo a permitir uma adequada avaliação dos interessados. 

Isso, no entanto, não vem acontecendo na ANP. 

Temos visto processos confusos e amontoados em um cronograma com diversas sobreposições.

Um exemplo é a Consulta Pública 05/2025, que se propõe a promover uma revisão da resolução RANP-15 de 2014, que trata dos critérios para cálculo das tarifas de transporte.

O período das contribuições na consulta pública tem prazo até 22 de setembro de 2025, e, uma vez realizada a correspondente audiência pública, é usual esperar que a ANP delibere sobre essa regulamentação em um período de 60 a 90 dias, ou seja no início de 2026. 

No entanto, menos de 30 dias depois do início da Consulta Pública 05/2025, a ANP instalou, simultaneamente, um processo de revisão tarifária para diversas transportadoras.

Agendou a Consulta Pública 08/2025, com contribuições até 8 de outubro de 2025, e uma chamada para a audiência pública exatamente no mesmo período da revisão da RANP-15. De acordo com o anúncio, a diretoria da ANP pretende concluir esse processo de revisão tarifária até 31 de dezembro de 2025. 

Em resumo: conforme cronograma divulgado, antes mesmo do término da revisão da RANP-15, instrumento que define os critérios, a ANP pretende concluir a revisão tarifária do transporte de gás. Não faz sentido!

Estamos falando de um processo que definirá as tarifas de transporte para os próximos cinco anos, com impacto de algumas dezenas de bilhões de reais e repercussões diretas para todos os usuários de gás canalizado no Brasil.

É um processo que exige ampla análise crítica, pois as propostas das empresas de transporte extrapolam o conteúdo da regulação atual ao incluir investimentos que não foram devidamente aprovados pela ANP, e as considerações que fazem sobre as suas bases de ativos aplicáveis diferem na RANP-15 e na resolução proposta.

Todos estão em dúvida: qual deverá ser a RANP que os interessados devem considerar em suas contribuições? A vigente, a nova proposta ou aquela que a ANP decidirá às vésperas de finalizar da revisão?

Não é preciso entender das complexidades do setor para saber que, nesse caso, o mercado fará contribuições completamente às cegas para a revisão tarifária.

Isto é, as partes interessadas não têm a mínima ideia se a ANP irá aprovar antes as modificações na RANP e depois fazer a revisão tarifária ou se a nova RANP, cujo conteúdo ainda será definido pela ANP, só irá valer para as revisões tarifárias subsequentes.

Em um paralelo futebolístico, seria como jogar um jogo com a regra antiga e uma nova simultaneamente, sendo que a escolha da uma outra regra, que vai prevalecer, somente será conhecida depois do apito final.

Sob qualquer parâmetro, é uma situação inadmissível. 

Outras sobreposições inaceitáveis

Some-se a essas confusas consultas públicas supervenientes a desnecessária proposta de classificação dos gasodutos de transporte em andamento, feita com base em critérios de pressão, diâmetro e expansão, conforme Consulta Pública 01/2025

Nesse caso, a ANP revelou uma absoluta falta de articulação com as agências reguladoras estaduais.

Ignorou dispositivo previsto na Nova Lei do Gás, que prevê a harmonização com os Estados, e fez de conta que não viu os trabalhos desenvolvidos pelo próprio Ministério de Minas e Energia (MME) para promover essa harmonização.

Tamanha falta de diálogo ficou evidente com as manifestações perplexas de parlamentares e participantes na Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados, em agosto, pouco antes da primeira data convocada para ouvir os inscritos na audiência pública da ANP.

É bom relembrar que, em março de 2023, a ANP chegou a lançar ao mercado um workshop com uma série de questões sobre como regulamentar o assunto, mas somente com a Consulta Pública 01/2025 publicou as respostas dos participantes, sem apresentar qualquer análise ou aproveitamento das sugestões.

O que veio a seguir, com a minuta de resolução em debate na Consulta Pública 01/2025, é tecnicamente indefensável.

Parece que a ANP não fez a lição de casa, porque sua proposta traz intervenções sobre um setor fora de sua jurisdição, o de distribuição de gás canalizado, que está sob a competência dos estados, conforme explícito na Constituição Federal de 1988.

O Relatório de Avaliação de Impacto Ambiental (Rair) disponibilizado pela ANP simplesmente se omitiu de realizar a avaliação junto às distribuidoras, Estados e usuários e declarou na própria Rair entender que não tinha tempo disponível e esses estudos seriam dispendiosos.

Outro processo confuso é o da Consulta Pública 08/2025, que visa analisar o Plano Coordenado das Transportadoras de Gás, também repassado para o debate do mercado de gás sem qualquer avaliação prévia da ANP. 

É bom recordar que o plano que naturalmente deveria prevalecer é o da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), que tem competência para tal, e que, segundo o órgão de planejamento do MME, tem finalização prevista para dezembro de 2025.

Em uma situação de normalidade, o plano da EPE deveria preceder a proposta de investimentos das transportadoras. 

Ou seja, trata-se de mais um caso de sobreposição. O mercado merece saber qual a regra a prevalecer, a do planejador oficial ou o plano apresentado pelas transportadoras. 

Nova ANP pode trazer calendário mais racional

A ANP foi criada em 1998. No começo de suas atividades, a agência ficou conhecida por produzir notas técnicas absolutamente impecáveis, recorrendo, quando necessário, a trabalhos de consultores. 

Atualmente, a própria ANP, dentre tantas outras agências reguladoras, tem sido muito vocal para expor dificuldades por falta de recursos. Talvez seja uma das razões para explicar a qualidade técnica dos documentos disponibilizados pela área de transporte da ANP em recentes processos, que tem deixado a desejar.

Afinal, não é boa prática regulatória a agência simplesmente repassar as propostas elaboradas pelos próprios regulados, sem emitir opinião própria. Esse filtro é necessário para que os agentes interessados possam elaborar contribuições mais assertivas.

A esperança é que, com o reforço dos dois novos diretores titulares, Artur Watt Neto e Pietro Mendes, a ANP possa promover um necessário ajuste no calendário da agenda regulatória.

O que grande parte do mercado espera é um freio de arrumação.

O primeiro passo é examinar se a Superintendência de Infraestrutura e Movimentação (SIM), responsável pela regulação do midstream, tem sido afetada por número insuficiente de servidores alocados ou até mesmo pela falta de uma adequada capacitação técnica em determinados assuntos — e isso não é nenhuma crítica ao valoroso corpo técnico da ANP, mas é público que as agências vêm sofrendo desfalques em seus quadros, muitas vezes sem reposição.

A direção da ANP tem totais condições para ajustar seu cronograma e dar plenas condições para a SIM executá-la diretamente, realocando recursos humanos ou buscando o apoio de consultorias especializadas contratadas. 

Reflexões finais

Revisões tarifárias têm efeitos perenes nas tarifas dos transportadores. Não devem ser realizadas de afogadilho ou sob pressão de partes interessadas.

É fundamental que transcorram em um processo muito bem fundamentado, uma vez que seus resultados têm impactos tarifários, diretos e indiretos, sobre as indústrias e todos os usuários. Enfim, não se imagina um adequado processo de revisão tarifária com prazos ao público inferiores a 12 meses.

É preferível um atraso no cronograma, com a eventual aplicação retroativa de seus efeitos, do que insistir com uma sobreposição que só traz insegurança sobre as regras que serão aplicáveis. 

Do ponto de vista técnico-regulatório, quando chegar a etapa de revisão tarifária, é desejável que a ANP publique uma nota técnica robusta, que descreva e proponha, com as devidas justificativas, a metodologia que pretende aplicar no processo, à semelhança do que é realizado por agências reguladoras estaduais.

Se as revisões ocorrem a cada cinco anos, não é justificável que o processo público se inicie faltando apenas quatro meses da data prevista para a publicação final pela ANP.

A expectativa é que essa nova ANP, fortalecida com os dois novos diretores, e com recursos humanos qualificados e corretamente alocados, possa resgatar os princípios básicos da boa regulação.

Com esse freio de arrumação, aí sim será possível retomar a celeridade dos cronogramas da regulação, resgatando a credibilidade que a ANP historicamente sempre teve junto ao mercado.


 Zevi Kann é sócio-diretor da Zenergas Consultoria desde 2012 e consultor regulatório da Associação Brasileira de Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás).

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