A Constituição Federal estabelece que é monopólio dos estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás natural canalizado. Por sua vez, cabe à União o monopólio sobre o transporte de gás por meio de gasodutos.
Essa divisão de atribuições do monopólio da União e da prestação dos serviços pelos estados evidenciou a necessidade de coordenação nacional, visando evitar a fragmentação regulatória.
Foi nesse sentido que a Lei n.º 14.134/2021 (a Nova Lei do Gás) estabeleceu o dever do Ministério de Minas e Energia (MME) e da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) de tratar com os estados e o Distrito Federal a coordenação racional de normas atinentes à indústria de gás natural.
Para tanto, o MME abriu em 24 de maio de 2025 uma Tomada Pública de Contribuições no intuito de coletar subsídios da sociedade, a fim de se identificar possíveis medidas regulatórias para o setor de gás natural que pudessem promover a convergência entre a regulamentação federal com as estaduais para que, desse modo, fossem reduzidos conflitos regulatórios.
A citada Tomada Pública abre espaço para reflexões mais profundas sobre a harmonização regulatória. Tal profundidade é conferida pela própria Política Energética Nacional (Lei n. 9.478/1997), que estabelece a obrigação de “incrementar, em bases econômicas, a utilização do gás natural”.
Nesse contexto se destaca que os esforços para a harmonização regulatória devem ter como foco prioritário o aumento do consumo de gás natural, sobretudo nos mercados industrial, automotivo, residencial e comercial [1].
Com esse pano de fundo, verifica-se que há temas debatidos na Tomada Pública que fomentariam a expansão do mercado de gás natural, tais como:
- (i) a expansão do serviço local de gás canalizado;
- (ii) a interoperabilidade entre as redes de transporte de gás natural e de serviço local de gás canalizado;
- (iii) a integração de infraestruturas;
- (iv) o aproveitamento do biometano no mercado estadual e
- (v) o desenvolvimento de projetos estruturantes de gás natural [2].
Ora, o crescimento do mercado de gás nacional depende, em grande medida, da expansão dos sistemas de distribuição de gás locais, da conexão de tais sistemas com as infraestruturas de gás [3], bem como com os produtores de biometano.
Ou seja, é importante que a regulação estadual estabeleça critérios para a definição dos investimentos necessários para a expansão adequada da malha de distribuição, incluindo a expansão para atendimento a ramais dedicados.
Em ambos os casos, a regulação deverá prever que tais investimentos deverão ser remunerados de forma justa, mantendo-se o equilíbrio das tarifas dos usuários do sistema de distribuição.
É a sintonia entre a definição e gestão dos investimentos de expansão da malha, a sua remuneração e o impacto tarifário que favorecerá em maior ou menor escala a ampliação do sistema de distribuição e, por conseguinte, o incremento do mercado de gás nos estados.
Os projetos de expansão da malha de distribuição são mais robustos, quando se considera o seu desenvolvimento em conjunto com a sua conexão com os gasodutos de transporte, terminais de gás natural liquefeito (GNL), sistemas de estocagem ou com projetos estruturantes.
Muito embora a harmonização regulatória devesse contemplar este cenário, no momento, nem a União, nem quaisquer dos estados possui arcabouço regulatório que abranja todos estes aspectos.
Alguns poucos estados têm regulação que contêm disposições que estabelecem que a distribuidora de gás poderá apresentar projetos para expansão da malha e o tratamento tarifário associado.
Por outro lado, a grande maioria dos estados tem sua regulação em estágio inicial, que ainda não contemplam os temas tratados nesta análise. Além disso, ainda há alguns outros estados que não dispõem de nenhuma regulação para o setor de gás.
Tal cenário demonstra que há oportunidade para os entes federados explorarem o gás natural e o biometano de modo que o potencial de cada localidade seja mais bem aproveitado. Nesse caso, a regulação e, por sua vez, a harmonização aqui tratada, são essenciais para promover este desenvolvimento.
Portanto, o aprofundamento do escopo das regulamentações federal e estaduais oferecerá arcabouço regulatório apropriado e consequentemente a segurança jurídica para o desenvolvimento de empreendimentos ou, até mesmo estímulo para investimentos.
Nada obstante as diversas possibilidades regulatórias citadas, também poderia fomentar o incremento do uso de gás natural, em bases econômicas, a criação de políticas federal e estadual para:
- utilização de gás natural ou biometano em veículos pesados e leves [4];
- a utilização de gás natural para aplicação industrial em substituição ao carvão e óleo combustível;
- a utilização de gás natural para uso residencial em substituição ao carvão;
- e, quando aplicável, em substituição ao gás liquefeito de petróleo — GLP [5] e incentivos fiscais.
A Nova Lei do Gás, o seu decreto regulamentador (Decreto n.º 10.712 de 2021 e suas alterações), ao tratar da harmonização regulatória, fazem destaque sobre a inclusão da regulação atender ao consumidor livre.
No entanto, é importante ressaltar que somente através da expansão da malha de distribuição (e sua conexão com as infraestruturas) é que haverá incremento do mercado de gás natural nacional, haja vista o potencial crescimento da oferta de gás e biometano.
Certamente, com a regulação equilibrada e integrada em sedes federal e estaduais, será possível o crescimento do mercado de gás em bases econômicas.
Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.
Paulo Campos Fernandes e João Pedro Riff Goulart são advogados do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados.
Referências
[1] Não se incluiu a produção de gás porque a sua regulação é atribuição da União. Da mesma forma, não se inclui o mercado termelétrico porque é encargo da União a elaboração de uma política energética para o uso de usinas termelétricas, visando atender ao setor elétrico nacional.
[2] Projeto estruturante é definido pela ANP como aquele de interesse da concessionária estadual de gás canalizado, sujeito à autorização da ANP, destinado ao acondicionamento do gás natural comprimido (GNC) ou GNL para sua movimentação, por modal alternativo ao dutoviário, entre a fonte supridora e instalação de propriedade da concessionária estadual de gás canalizado.
[3] Gasodutos de transporte, sistemas de estocagem e terminais de GNL.
[4] A utilização de gás natural veicular (GNV) em veículos leves é realidade em alguns estados. É incipiente a utilização de GNV em veículos pesados em todos os estados.
[5] A substituição do gás liquefeito de petróleo (GLP) pelo gás natural deve ser feita localmente, considerando-se, além da relação custo-benefício, a disponibilidade local dos referidos energéticos, lembrando que até o momento, a produção nacional de GLP não é capaz de atender toda a demanda doméstica.