Por Venilton Tadini e Marcos Cintra
Em 1995 a Emenda Constitucional n°09 introduziu no Brasil a concorrência na exploração e produção de petróleo e gás natural, materializada pelos leilões de blocos exploratórios promovidos pela ANP. A mudança dinamizou as atividades do setor, atraiu empresas do mundo inteiro – muitas delas atuando em consórcios com a Petrobras – e promoveu inúmeras descobertas.
Para se ter uma dimensão do resultado, o novo modelo elevou a produção de petróleo de 970 mil barris/dia em 1997 para 3,1 milhões de barris/dia em 2020 e, no caso do gás natural, de 30 milhões de m³/dia para 139 milhões de m³ por dia. Dado o aumento da produção, seria natural a entrada dos novos agentes nos segmentos de transporte, refino e distribuição, o que traria maior diversidade e concorrência na oferta e, consequentemente, preços mais competitivos ao consumidor.
Entretanto, 25 anos depois a abertura do mercado e a realização de 16 rodadas de licitação de blocos pela ANP, a Petrobras continuava tendo o monopólio de fato em praticamente toda a cadeia produtiva do setor. O caso do gás natural é um bom exemplo: a estatal dominava 90% da produção, controlava integralmente o suprimento, os três terminais de regaseificação, a malha de transporte e possuía participação acionária com poder de veto em 21 das 27 distribuidoras estaduais de gás natural.
Os produtores, em sua maioria parceiros da estatal, sem dispor de infraestrutura para escoar sua produção e desamparados pela ausência de regulação que lhes assegurasse livre acesso aos gasodutos, vendiam seu gás natural à Petrobras a preços módicos. A estatal, por sua vez, o revendia às distribuidoras por valores acima dos preços internacionais de referência. Em um ambiente sem concorrência, o consumidor e a indústria brasileira pagavam a conta: enquanto nos EUA as fábricas recebiam gás a US$ 3,5 por milhão de BTU, na Argentina, a US$ 4 e, na Europa, a US$ 7, nossa indústria desembolsava US$ 16 pelo energético, o que comprometia nossa competitividade.
Eis que repentinamente, em uma espécie de efeito serendípede, o que governos, leis e instituições do setor não foram capazes de fazer ocorre por meio de uma crise sem precedentes, que empurrou a estatal para uma série de decisões acertadas que têm beneficiado o país e à própria empresa. Entre elas, se destaca um plano de desinvestimento que, possivelmente, representa uma transformação da indústria brasileira de petróleo e gás comparável à flexibilização do monopólio estatal ocorrida em 1997. O desinvestimento da Petrobras tem alterado de forma considerável a estrutura de mercado do setor, promovendo a competição e a geração de novos investimentos em vários de seus segmentos.
No gás natural, por exemplo, onde assinou termo de cessação de conduta com o Cade, a estatal promoveu uma grande desconcentração. As vendas da Nova Transportadora do Sudeste (NTS) para a Brookfield por R$ 18 bilhões e da Transportadora Associada de Gás (TAG) para a Engie por R$ 33 bilhões, além de auxiliar a Petrobras a abater suas dívidas, dinamizou novos investimentos. A NTS e a TAG, além de oferecerem a plena capacidade de transporte de seus gasodutos a preços de mercado sem discriminar agentes, já mapeiam rotas e pretendem construir novos ramais estratégicos, estimados pela EPE em R$ 630 milhões. Investimentos em rotas de escoamento offshore e em terra projetam investimentos potenciais de R$ 17 bilhões. Adicionalmente, com o novo marco regulatório do gás natural, aprovado na Câmara e já em análise pelo Senado, a estimativa é de inversões da ordem de R$ 60 bilhões e geração de 4 milhões de empregos em cinco anos, com considerável redução de preço desse energético.
De outra parte, a revitalização de campos maduros em terra e em mar, por empresas especializadas em aumentar a produção de campos pouco atrativos às majors, trarão investimentos capazes de transformar a economia regional. São 163 ativos, sendo 121 campos em produção e 42 blocos exploratórios. No mar, para ficar apenas no exemplo da Bacia de Campos, onde a produção vinha despencando por falta de investimentos, doze ativos recentemente vendidos pela Petrobras receberão, no mínimo, R$ 11 bilhões dos novos operadores, podendo alcançar o dobro desse valor se o resultado de suas atividades for promissor.
Em terra, companhias especializadas na operação de campos maduros estão investindo pesado nos ativos vendidos pela Petrobras. Um exemplo positivo da entrada de novos atores no setor foi a venda à Eneva, ano passado, do campo de Azulão, na Bacia do Amazonas, por R$ 300 milhões. Antes inativo e sem produção, o campo, no momento, desenvolve atividades para produzir o gás que alimentará uma térmica para geração de energia elétrica em Roraima, com investimentos totais de R$ 1,9 bilhão. O projeto atenderá 70% do consumo do estado, o que vai diminuir consideravelmente a geração a diesel, reduzir emissões e abrandar a conta de luz, sem falar do impacto na economia local.
Esse dinamismo, entretanto, tem demorado a chegar ao segmento do refino. Embora tenha aberto o mercado há 18 anos, o Brasil tem poucos importadores ou exportadores de petróleo e derivados e apenas quatro microrrefinarias privadas, cuja capacidade nominal de refino somada é de parcos 33 mil barris/dia – ou 1,3% do parque de refino brasileiro. Pior, a expansão do refino, atrelada à capacidade de investimento da Petrobras, acabou por tornar o abastecimento do país caro e dependente de importações. Hoje, cerca de 25% das necessidades nacionais de gasolina e diesel são atendidas via importação. Ao mesmo tempo, o país exporta 1 milhão de barris de petróleo cru ao dia em um passeio logístico sem qualquer sentido econômico.
Num país onde tantos governos já utilizaram a Petrobras como instrumento de controle da inflação, impedindo-a de corrigir os preços da gasolina e do diesel, a manutenção da presença da empresa como agente dominante cria permanente incerteza, desestimula investimentos e preserva a concentração. Se nada for feito e a economia voltar a crescer, as importações crescerão, comprometendo ainda mais nossa balança de pagamentos e ameaçando o próprio abastecimento de derivados do país.
Em tal cenário, a Petrobras colocou à venda oito de suas 13 refinarias. Se concretizadas, essas operações mudarão o cenário atual. O Tribunal de Contas da União (TCU) emitiu parecer favorável à continuidade da alienação das refinarias, mas as mesas da Câmara e do Senado questionaram o processo no Supremo Tribunal Federal (STF). Nessas circunstâncias, o país acompanha com atenção o julgamento que pode frear ou estimular a criação de um mercado aberto, livre, dinâmico e competitivo, capaz de assegurar o abastecimento interno de derivados. É hora de assegurar que o desinvestimento continue sendo um caminho para o desenvolvimento.
Venilton Tadini, presidente-executivo da Abdib, é economista e mestre em Economia pela FEA-USP. Foi diretor do BNDES.
Marcos Cintra, é doutor em Energia pelo IEE-USP é executivo do setor de petróleo e gás natural.