Energia

Precisamos de uma Lei de Responsabilidade Tarifária

Da mesma forma que a LRF representou um marco na promoção da gestão fiscal responsável, uma Lei de Responsabilidade Tarifária pode contribuir em muito para a melhoria da gestão – compartilhada entre os Poderes – do setor elétrico brasileiro, escreve Gustavo Henrique Ferreira

Em 4 de maio de 2000 foi publicada a Lei Complementar nº 101, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, que, conforme sua ementa, “estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal”.

A segunda metade da década de 1990 foi marcada por uma severa crise de endividamento dos estados da federação que ameaçava a própria solvência do Estado brasileiro.

Diante da gravidade da situação, coube à União estruturar um programa de refinanciamento das dívidas estaduais combinado com a necessidade de aprimoramentos institucionais dos entes subnacionais que evitassem a repetição dos ciclos passados e o surgimento de uma nova crise nos anos futuros.

Neste contexto surgiu a Lei de Responsabilidade Fiscal, que trouxe em seu bojo a imposição de limites para gastos com pessoal em cada um dos Poderes das três esferas da federação, fixação de limites para o endividamento público e o estabelecimento de limites e condições para a expansão de despesas continuadas.

O sucesso da referida lei é inegável e pode ser medido pelo baixo número de alterações por ela sofrida. Mesmo em momentos de menor apego à disciplina fiscal, a LRF tem se mantido estável, o que sinaliza a relevância do seu papel de âncora fiscal do Estado brasileiro.

Mas o que a Lei de Responsabilidade Fiscal tem a ver com o setor elétrico brasileiro?

Os governos arrecadam recursos da sociedade prioritariamente por meio de tributos e gastam tais recursos com a prestação de serviços e com a execução de políticas públicas, de modo que o Tesouro Nacional e as fazendas estaduais e municipais funcionam como grandes redirecionadores de recursos.

O setor elétrico não é tão diferente. O preço pago pelos consumidores de energia elétrica é uma grande somatória de diferentes componentes.

Ali estão o preço da energia elétrica gerada e comercializada, os tributos federais e estaduais que incidem sobre a comercialização de energia, o pagamento pela utilização dos serviços de transmissão e distribuição que conectam geradores a consumidores e também o custo de encargos setoriais, que, grosso modo, financiam serviços cujo preço não está incorporado nas demais parcelas ou políticas públicas setoriais.

Assim, considerando que todos esses recursos devem chegar aos seus respectivos titulares, especialmente o caixa das distribuidoras de energia elétrica funciona de maneira similar à Conta Única do Tesouro Nacional, como um redirecionador de recursos.

De maneira similar o visto no final da década de 90, não é exagero afirmar que, assim como as dívidas dos estados ameaçava a solvência do Estado brasileiro àquela época, as componentes tarifárias não diretamente associadas à prestação do serviço de eletricidade ameaça hoje a sustentabilidade do setor elétrico brasileiro.

Tema recorrente em artigos e seminários, a constatação inexorável é que a energia elétrica hoje é um produto demasiado barato de se produzir e excessivamente oneroso de se consumir. Quase um paradoxo.

Em comum está a falta de viabilidade de novos projetos. De um lado, a indústria local fornecedora de equipamentos e os desenvolvedores de novos projetos de geração reclamam a ausência de demanda e pleiteiam novos leilões para fontes específicas.

De outro, a indústria eletrointensiva tradicional não avança e os grandes potenciais novos consumidores – como a indústria do hidrogênio eletrolítico – pleiteiam novos descontos e benefícios para viabilizar os projetos prometidos.

A conhecida Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), criada pela Lei nº 10.438, de 26 de abril de 2002, com a finalidade de promover o desenvolvimento energético dos estados, passou a chamar a atenção nos últimos anos pelo seu impacto crescente sobre o preço da energia elétrica consumida.

Conforme dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o orçamento da CDE passou de aproximadamente 16 bilhões de reais em 2017 para 35 bilhões de reais em 2023.

Considerando que nem todos os subsídios estão integralmente inseridos no orçamento da CDE, o montante de subsídios no setor de energia elétrica superou os 40 bilhões de reais – ou 13% da tarifa média dos consumidores residenciais – em 2023.

Ao se observar as fontes de financiamento das despesas da CDE, entende-se pelo menos parcialmente a razão pela qual o consumo de energia não avança, a despeito dos custos decrescentes da geração.

No ano de 2017, as Quotas CDE Uso – principal fonte de financiamento da CDE, via de regra cobrada de todos os consumidores de energia – totalizaram 9,3 bilhões (teriam sido de 13 bilhões se desconsiderados efeitos extraordinários). Tal rubrica superou 30 bilhões de reais em 2022 e 29 bilhões em 2023.

A despeito da magnitude dos números recentes, as propostas que aumentam os subsídios arcados pelo conjunto de consumidores – em benefício de pequenos grupos específicos – são mais populares na esfera política do que aquelas que trariam racionalidade para o setor.

De um lado, projetos que visam a modernizar o setor elétrico enfrentam severas dificuldades para avançar nas suas esferas. Do outro lado, se avolumam projetos que beneficiam grupos de interesse ao custo de bilhões de reais por ano.

Da mesma forma que a Lei de Responsabilidade Fiscal representou um marco na promoção da gestão fiscal responsável, uma Lei de Responsabilidade Tarifária pode contribuir em muito para a melhoria da gestão – hoje compartilhada entre Poder Executivo, Legislativo e setor privado – do setor elétrico brasileiro.

Os paralelos com a Lei de Responsabilidade Fiscal

As principais iniciativas em curso que afetam a CDE podem ser divididas em dois grupos.

As propostas que aumentam as despesas da CDE, que passaria a financiar novos incentivos ou cobrir descontos de outras componentes tarifárias para grupos específicos. E outras que desoneram certos grupos do pagamento dos encargos que financiam a própria CDE.

Para ambos os tipos, a Lei de Responsabilidade Fiscal possui paralelos.

Partindo o último caso, o artigo 14 da LRF estabelece as condições para a aprovação de uma medida que represente renúncia de receita.

Nos termos da LRF, qualquer renúncia de receita deve estar obrigatoriamente acompanhada da estimativa de seu impacto orçamentário-financeiro para o exercício vigente e para os dois exercícios subsequentes e de medida de compensação mediante aumento equivalente de receita.

Assim, o desconto concedido a um deve ser obrigatoriamente compensado pela elevação do pagamento por outro.

Os artigos 16 e 17 da LRF disciplinam a criação de nova despesa pública, e exigem, no mínimo, a apresentação de estimativa de impacto orçamentário-financeiro para o exercício vigente e para os dois exercícios subsequentes e também a compatibilidade entre a nova despesa e o planejamento plurianual orçamentário.

Caso a nova despesa criada tenha prazo de execução superior a dois anos e não seja passível de gestão pelo administrador – ou seja, confira ao titular um benefício cuja execução é obrigatória, não sendo permitido ao gestor controlar o montante da despesa nem o número de beneficiários – a LRF exige que seu impacto orçamentário seja compensado mediante a redução permanente de outra despesa ou o aumento permanente de receita.

Tais disciplinas possuem dois valores principais. Em primeiro lugar, aprimoram a transparência ao exigir que o impacto financeiro da proposta seja estimado e apresentado. Em segundo, explicitam quem serão os financiadores do novo benefício a ser concedido.

Apesar das suas dificuldades, exemplos aplicáveis ao setor elétrico não faltam na gestão fiscal. Além dos exemplos mencionados acima, a Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece limites para despesas específicas – como as despesas de pessoal – e para o endividamento do setor público.

A Lei Complementar nº 200, de 30 de agosto de 2023, que instituiu o regime fiscal sustentável, estabelece limites e regras para o crescimento das despesas primárias.

As mais recentes Leis de Diretrizes Orçamentárias da União estabelecem que benefícios fiscais não podem ter duração superior a cinco anos e exigem a designação de órgão gestor capaz de avaliar os custos e benefícios das políticas públicas.

Motivada pela “rigidez” da gestão fiscal, talvez parte da irresponsabilidade tenha migrado do orçamento público para as tarifas dos consumidores. Chegou a hora do setor elétrico reagir.

 

Gustavo Henrique Ferreira é diretor de Programa da Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, engenheiro com especialização em planejamento e orçamento, bem como em políticas públicas e gestão governamental nos setores de energia e mineração.

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.