Opinião

O moinho e o rio: por que o setor elétrico precisa de uma reforma estrutural

MP 1.300 avança em modernização, mas falta coordenação estratégica para garantir confiabilidade do sistema frente à expansão de fontes intermitentes, avalia Marcos Cintra

Lula assina MP da reforma do setor elétrico ao lado de ministros, presidentes do Senado, da Câmara e líderes partidários (Foto Ricardo Stuckert/PR)
Lula assina MP da reforma do setor elétrico ao lado de ministros, presidentes do Senado, da Câmara e líderes partidários (Foto Ricardo Stuckert/PR)

Conta-se que, em tempos antigos, uma aldeia próspera vivia à beira de um grande rio. Suas casas eram alimentadas por um moinho coletivo, construído com cuidado por gerações anteriores. A água fluía, os grãos eram moídos, e todos prosperavam.

Com o tempo, no entanto, surgiram novas tecnologias: pequenas turbinas, rodas d’água individuais, mecanismos independentes. Cada morador passou a instalar seu próprio equipamento, confiando mais na engenhosidade própria do que na estrutura comum.

O problema é que o rio era um só. E sem coordenação, suas margens começaram a se erodir, o nível da água tornou-se instável, os desvios desordenados criaram escassez a jusante.

As turbinas batiam em falso. O moinho central, antes símbolo de harmonia, transformou-se em ruína. Alguns culpavam o clima. Outros, o excesso de inovação. Poucos percebiam que o verdadeiro problema não estava na força do rio — mas na ausência de ordem em seu uso.

Hoje, o setor elétrico brasileiro vive um drama semelhante. Temos uma matriz que cresceu em complexidade, que incorporou fontes intermitentes e tecnologias descentralizadas, mas que carece de uma nova lógica de coordenação e de um pacto reformista à altura dos riscos que se acumulam. O moinho está rangendo. E o rio, se não for governado com sabedoria, pode deixar de mover a roda.

A Medida Provisória nº 1.300/2025, editada recentemente pelo governo federal, representa um avanço relevante. Ela toca em pontos sensíveis como a ampliação do mercado livre, a criação do Supridor de Última Instância (SUI), a reorganização das regras de autoprodução e o redesenho de encargos tarifários.

São temas importantes — e há méritos inegáveis no esforço de modernização que o texto expressa. Mas, apesar disso, os fundamentos estruturais que ameaçam a confiabilidade do sistema seguem presentes — e ainda carecem de resposta.

A expansão acelerada de fontes renováveis intermitentes, como solar e eólica, trouxe ganhos relevantes. Mas não foi acompanhada por uma política coerente de expansão de geração firme. O resultado é um sistema menos previsível, menos controlável e mais vulnerável a oscilações de demanda, clima e mercado.

O Operador Nacional do Sistema (ONS) já alertou para margens de segurança abaixo do ideal. O modelo de despacho centralizado, que um dia trouxe estabilidade, vê-se esvaziado pela fragmentação das decisões de investimento.

E o planejamento energético, que deveria ter caráter vinculante, ainda opera como uma referência indiciária — quando o sistema exige, mais do que nunca, um centro de gravidade.

O que o setor precisa — e o que o país exige — é de uma reforma que:

  1. Reforce institucionalmente o planejamento energético integrado, com governança coordenada entre geração, transmissão, distribuição e o gás natural como vetor estratégico;
  2. Garanta previsibilidade à expansão de fontes firmes, como hidrelétricas com reservatório, térmicas modernas e nucleares, assegurando confiabilidade operacional;
  3. Enfrente os gargalos do licenciamento ambiental, com regimes específicos para empreendimentos críticos à estabilidade do SIN;
  4. Redefina o papel do ONS, assegurando-lhe autoridade operacional proporcional à complexidade do sistema.

Esses quatro pilares sustentam a reconstrução de um setor elétrico mais resiliente. Eles não negam os avanços do mercado livre e das medidas propostas, mas apontam que a liberdade só floresce onde há estrutura. E que, em tempos de transição, o espontaneísmo vira risco.

É nesse ponto que o papel do Congresso se torna decisivo. Cabe ao Parlamento não apenas ratificar o que lhe foi entregue, mas completar o que falta, corrigir o que é tímido e mobilizar o país para um novo pacto energético. O Legislativo brasileiro já demonstrou, em outros momentos históricos, capacidade de erguer consensos institucionais robustos. Esse é mais um desses momentos.

A confiança no sistema é o ativo invisível que sustenta todo o setor. Quando ela se esvai, o investimento recua, o planejamento falha, e até os agentes mais poderosos se tornam vulneráveis. É preciso evitar que o moinho que nos alimenta desabe em silêncio, sob a ilusão de que o rio sempre correrá sozinho.

Na parábola antiga, a aldeia só reencontrou sua prosperidade quando compreendeu que o rio precisava ser governado como um bem comum — e que a inteligência coletiva era o único mecanismo capaz de reequilibrar sua força. Hoje, o Brasil precisa da mesma sabedoria.

A energia é movimento. Mas sem direção, ela se dissipa. E sem coordenação, ela destrói o próprio leito por onde deveria fluir.

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.


Marcos da Costa Cintra é head de Relações Institucionais da Eneva. É doutor em Energia (IEE-USP), executivo do setor de petróleo, gás e energia, e presidente do Instituto Pensar Energia (www.institutopensarenergia.org.br).

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