Energia

O decreto 66.373/21 e a incidência de ICMS no mercado livre de energia de São Paulo

Após decisão do STF, novas regras sanaram dúvidas sobre a incidência do ICMS sobre energia elétrica. Artigo por Alexei Macorin Vivan e Victor Hugo Macedo do Nascimento

O Decreto Estadual 66.373/21 e a incidência do ICMS sobre energia nas operações no mercado livre de SP. Na imagem: Pôr do sol ao fundo de torres com linhas de transmissão de energia, com alguns postes com luzes acesas (Foto: Inna/Pixabay)
Pelo Decreto 66.373/21, nas operações internas, o tributo seria devido pela vendedora apenas quando a energia fosse destinada a consumidores finais, afastando as dúvidas sobre a incidência do ICMS nas operações entre geradoras e comercializadoras (Foto: Inna/Pixabay)

Após mais de 10 anos de litígios envolvendo a cobrança de ICMS nas operações de venda de energia elétrica no mercado livre, o governo do Estado de São Paulo (SP) e o mercado aparentam ter chegado em um consenso sobre a tributação estadual do setor, com a edição do decreto 66.373/21.

O mercado de energia elétrica é complexo e possui uma série de agentes que atuam nas diversas etapas da cadeia de circulação da energia elétrica, desde a geração até o consumo.

Resumidamente, os agentes mais comuns são as geradoras, transmissoras, distribuidoras, comercializadoras e os consumidores. Há também dois ambientes de contratação de energia elétrica, o regulado e o livre, este também conhecido como mercado livre.

As geradoras podem atuar em ambos os ambientes e são responsáveis pela produção da energia elétrica. As transmissoras transportam a energia em alta tensão até os centros consumidores, sem atuar nos ambientes livre ou regulado, por não comercializarem energia.

As distribuidoras somente atuam no ambiente regulado, rebaixam a tensão da energia e entregam-na aos consumidores. As comercializadoras atuam no ambiente livre (ou mercado livre) e, entre outras atividades de gestão e representação de clientes, intermediam, compram e vendem energia. Por fim, há os consumidores, que são divididos entre cativos e livres.

Os consumidores cativos somente adquirem energia das distribuidoras, por sua rede elétrica a qual estão conectados. Já os consumidores livres podem adquirir energia de geradoras e de comercializadoras, às quais pagam pelo preço da energia, mas continuam a pagar às distribuidoras pelo uso da rede elétrica.

As distribuidoras vendem e entregam fisicamente a energia aos consumidores cativos e apenas entregam fisicamente a energia aos consumidores livres. Sob a perspectiva tributária, no caso dos consumidores cativos, as distribuidoras são as contribuintes de direito, apuram e recolhem o ICMS incidente sobre a comercialização da energia.

Regulamentação do ICMS foi questionada por comercializadores no STF

Porém, com o consumidor livre, a lógica é diversa. Apesar de serem as distribuidoras que entregam fisicamente a energia, os consumidores livres a adquirem diretamente das geradoras ou das comercializadoras, às quais pagam por essa energia.

No mercado livre, a relação comercial de compra e venda da energia se estabelece entre os consumidores livres e as geradoras ou comercializadoras. Com isso, as geradoras ou comercializadoras é que deveriam assumir a condição de contribuintes de direito do ICMS, apurando e recolhendo os respectivos valores aos cofres públicos.

No entanto, o Estado de São Paulo, por meio do decreto 54.177/09, que alterou o Regulamento do ICMS (RICMS), previa que as distribuidoras deveriam atuar como substitutas tributárias, recolhendo o ICMS devido pelas geradoras ou comercializadoras, no caso da venda de energia por estas a consumidores livres.

A regra foi questionada perante o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.281 (Adin), em que a Associação Brasileira dos Agentes Comercializadores de Energia Elétrica (Abraceel) contestou o deslocamento da responsabilidade tributária das geradoras ou comercializadoras para as distribuidoras.

A Adin foi julgada procedente ao final de 2020 e o STF reconheceu que (i) apenas uma lei em sentido estrito poderia deslocar a responsabilidade tributária para terceiros; e (ii) o decreto 54.177/09 possibilitaria que as distribuidoras tivessem conhecimento dos preços praticados pelas geradoras ou comercializadoras, o que seria sensível e poderia violar os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência.

Atualização no decreto 66.373/21

Com a decisão do STF, o governo de São Paulo editou o decreto 65.823/21, para alterar o RICMS e prever que a responsabilidade pela apuração e recolhimento do ICMS passaria a ser (i) da vendedora da energia, quando estas estivessem localizadas no Estado de São Paulo; e (ii) do destinatário da energia, quando a vendedora estivesse localizada em outro estado.

Apesar de a legislação retirar das distribuidoras a figura de substitutas tributárias, no caso de venda de energia no mercado livre, a norma continha diversas fragilidades que poderiam gerar outras contestações. Uma delas, é o fato de o decreto não atender ao princípio da anterioridade, tendo sido publicado em junho de 2021, com início da vigência em setembro do mesmo ano.

Outra, seria a ausência de clareza sobre as regras de tributação das operações internas (dentro do estado) envolvendo a venda de energia entre as próprias geradoras ou comercializadoras. Neste particular, apesar de o decreto estabelecer que o ICMS seria devido apenas na venda da energia aos consumidores finais, a redação dispunha que o tributo seria recolhido pelas vendedoras da energia, independentemente de a venda ser feita a consumidores finais ou a intermediários (geradoras e comercializadoras).

Para sanar as falhas, foi editado o decreto 66.373/21, que dispõe (i) que a vigência da nova regra se inicia em abril de 2022, respeitando a anterioridade anual e nonagesimal; e (ii) que, nas operações internas, o tributo seria devido pela vendedora apenas quando a energia fosse destinada a consumidores finais, afastando as dúvidas sobre a incidência do ICMS nas operações entre geradoras e comercializadoras.

Ainda que não seja lei em sentido estrito, na forma determinada pelo STF na Adin, podendo ter a constitucionalidade questionada, o decreto 66.373/21 é um avanço e sanou as dúvidas relativas à incidência do ICMS sobre energia nas operações internas e ao sujeito responsável por seu recolhimento.

Alexei Macorin Vivan e Victor Hugo Macedo do Nascimento são sócios das áreas de Energia e Tributária do Schmidt Valois Advogados.