Opinião

30 anos da primeira privatização do sistema elétrico

Desde a venda da Escelsa em 1995, privatizações e concessões transformaram o setor, mas questões como tarifas altas e infraestrutura desafiante exigem novos paradigmas, escrevem Roberta Aronne, Luan Soares e Marceli Kobayashi

Central de redes de energia da Copel no Paraná (Foto Divulgação)
Central da Copel no Paraná, cujas tentativas de privatização durante os governos de Temer e Bolsonaro não avançaram por resistências políticas e sociais (Foto Divulgação)

Em julho de 1995, o mercado de energia elétrica sofreu uma quebra de paradigma. A Espírito Santo Centrais Elétricas SA, a Escelsa, foi a primeira companhia do setor elétrico brasileiro a passar por uma privatização, e muitas se seguiram. Às vésperas de completar 30 anos, como devemos olhar para o longo processo de amadurecimento que nos trouxe até aqui? Como avaliar o saldo histórico de um esforço que envolve, a essa altura, duas gerações de brasileiros?

As desestatizações da década de 90 resultam de um conjunto de fatores históricos, políticos e mercadológicos. O Brasil estava em busca de estabilidade e modernização da economia nacional, após uma longa crise, e, num contexto de difusão de políticas neoliberais, a adesão a medidas de abertura econômica pareceu a resposta.

O Programa Nacional de Desestatização, sob condução do então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ofereceu estatais à iniciativa privada com o objetivo de angariar recursos, desonerar o Estado dos custos de gestão dessas empresas e tornar seus serviços mais eficientes e desburocratizados. Essa base racional sustentou o boom das privatizações de meados dos anos 90 até o início da década seguinte. 

O que houve desde então?

Segundo dados do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), entre 1995 e 2002 foram arrecadados cerca de US$ 16,4 bilhões pela privatização de distribuidoras de energia elétrica, enquanto a privatização das geradoras resultou em US$ 1,86 bilhão. A receita gerada pelas privatizações do Brasil nesse período, nas mais diversas áreas, foi estimada em US$ 105,3 bilhões, com o setor elétrico respondendo por 31% desse montante. 

A desestatização da Escelsa foi seguida pela venda da Light e da Cerj (RJ) em 1996, além de nove concessionárias estaduais em 1997, incluindo a Coelba (BA). Apenas com os leilões dessas companhias, o controle da iniciativa privada sobre os agentes do setor elétrico subiu de 2%, em janeiro de 1995, para 20%, em agosto de 1997.

Esse processo continuou em 1998 com a privatização de mais cinco distribuidoras e da Gerasul. Até a virada do milênio, as distribuidoras da Paraíba, Maranhão e Pernambuco também seriam leiloadas, marcando o fim das privatizações do governo FHC.

Antes, o setor elétrico era controlado por estatais que podiam atuar em todas as atividades da cadeia — geração, transmissão e distribuição. Nas desestatizações dos anos 90, os ativos de distribuição e alguns de geração foram vendidos de forma separada. Isso ocasionou a cisão dos segmentos de geração, transmissão, distribuição e comercialização, ocasionando a desverticalização do setor elétrico.

Esse cenário foi reforçado por uma reforma legislativa e regulatória, com as Leis nº 9.074/95 e 9.427/96, que apartaram as atividades de “monopólio natural” (transmissão e distribuição) das atividades competitivas (geração e comercialização), para estimular a concorrência no setor.  Isso possibilitou a entrada de novos agentes privados, reduzindo o domínio das estatais.

O surgimento da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) também foi um evento paradigmático no setor. Em 1997, a Aneel assumiu as atividades de regulamentação, fiscalização, implementação de políticas públicas, definição de tarifas e concessão de outorgas, entre outras funções. Sua criação ofereceu condições favoráveis para o desenvolvimento e equilíbrio do ramo energético — uma inovação crucial para o desenrolar do mercado nos anos subsequentes.

Em seguida, nos governos de Lula (PT) e Dilma (PT), foram adotadas políticas de concessões, ao invés das privatizações. Essas duas medidas possuem algumas distinções-chave: nas concessões, o Estado transfere a execução de determinados serviços públicos (como a geração, transmissão ou distribuição de energia elétrica), mantendo a titularidade sobre a atividade.

A Administração Pública firma contratos temporários com empresas privadas, as quais passam a explorar economicamente os serviços por um período de cerca de 30 anos, mediante obrigações contratuais e fiscalização estatal. Nesses casos, são reguladas pelo governo as condições de operação e as tarifas a serem cobradas pela empresa.

Por sua vez, a privatização implica na venda de um bem público, mediante a transferência de companhias públicas à iniciativa privada. Assim, o Estado deixa de ser responsável pela operação da empresa, que passa a ser gerida pelo particular.

No governo de Michel Temer (MDB), o Programa de Parcerias e Investimentos (Lei nº 13.334/2016) deu novo fôlego às desestatizações. Foram apresentados 193 projetos para privatizações ou concessão, dos quais 124 foram concluídos até o fim do mandato — o maior pacote de abertura de estatais desde a década de 90. As concessões resultaram em uma receita de R$ 46,4 bilhões, e as privatizações, cerca de R$ 97,9 bilhões.

No governo Jair Bolsonaro (PL), a política de privatizações persistiu. Algumas companhias energéticas estaduais foram vendidas, mas a desestatização da Eletrobras, sem dúvida, foi a operação mais expressiva do período. Desde a operação da Eletrobras, não ocorreram outras transferências relevantes de estatais do setor elétrico.

Conclusão 

Nas últimas três décadas, a gestão do setor elétrico no Brasil passou por transformações significativas conforme o viés político dos diferentes governos.

As privatizações e concessões alteraram profundamente a estrutura do setor, com empresas privadas assumindo papéis essenciais na geração, transmissão e distribuição de energia.

Os desdobramentos desse processo, no entanto, apresentam nuances. Questões como o aumento das tarifas, subsídios ao setor privado por influência política, concentração de mercado e falta de investimentos em modernização da infraestrutura — muitas vezes em detrimento da garantia de distribuição de lucros ao acionista — indicam que a mudança de controle, por si só, não assegura a prestação de serviços de maior eficiência e com mais qualidade.     

Nessa conjuntura, a proximidade do prazo de expiração das concessões do início do século é bastante pertinente. Isso oferece uma oportunidade de renovação ou mudança de paradigma nas concessões — considerando, inclusive, o impacto das alterações climáticas no desempenho do abastecimento energético.

O fator climático pouco pesava sobre as políticas energéticas no que tocava à infraestrutura; atualmente, com frequentes apagões e dificuldades técnicas, o preparo das concessionárias em face de contingências ambientais tem se mostrado cada vez mais essencial. 

Olhando adiante, o histórico das privatizações no setor e o presente cenário energético evidenciam que a discussão não deve se limitar a uma dicotomia entre estado e iniciativa privada. O verdadeiro desafio está em equilibrar a busca por eficiência, serviço de qualidade e atração de capital privado ao país, sem perder de vista a natureza estratégica e a relevância do setor elétrico para a soberania e segurança nacionais.

Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.


Roberta Aronne é sócia nas áreas de Energia, Construção e Gestão de Contratos do Simões Pires

Luan Soares é advogado nas áreas de Energia e Construção do Simões Pires.

Marceli Kobayashi é estagiária da área de Energia e Construção do Simões Pires.



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