Em artigo publicado neste espaço, semana passada (20/5), analisamos o cenário mundial de abastecimento de diesel, destacando que o contexto de guerra, somado ao desmantelamento causado pela pandemia de covid-19, tornou o combustível caro e escasso.
Estoques baixos e a temporada de furacões podem afetar nossa principal fonte de importações, o US Golf, durante a safra do agronegócio brasileiro, fase de nossa maior demanda de diesel.
Num ano eleitoral, o presidente dos EUA, Joe Biden, pode proibir as exportações de derivados, o que acrescentaria complexidade a um momento já de aperto.
A escalada de preço chega no momento que o país vive a maior inflação dos últimos 28 anos.
Portanto, dois problemas se sobressaem: alta inflacionária e ameaça não só ao abastecimento do país, mas também à segurança alimentar da sociedade, cuja logística do suprimento depende, em larga medida, do modal rodoviário.
Resposta a crises energéticas
Diante do quadro, e dado o caráter estratégico do fornecimento regular de derivados, justifica-se instituir estrutura interministerial com poderes para criar regras extraordinárias, nos moldes da Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (Creg), vigente no ano passado, no contexto de escassez hídrica que afetava o setor elétrico.
Para garantir a continuidade e a segurança do abastecimento de combustíveis, alimentos e demais produtos aos consumidores, a Câmara teria a faculdade de editar medidas emergenciais, excepcionais e temporárias.
Não se pretende perder de vista a política de alinhamento com os preços internacionais — ou seja, da venda dos derivados de petróleo no mercado doméstico pelo preço equivalente ao importado, fundamental para se garantir investimentos privados em refino e em logística de importação e distribuição desses produtos.
Abrir mão dessa política poderia comprometer o abastecimento futuro do país, o que não afasta a possibilidade de debatê-la e aperfeiçoá-la em momento oportuno, como fizeram outros países.
A China, por exemplo, introduziu em 2009 metodologia que permitia ajuste nos preços de derivados sempre que a média de uma cesta de preços internacionais de petróleo bruto — Brent, Dubai e Cinta – subia (ou descia) mais de 4% durante um período de 22 dias.
A sistemática chinesa foi aplicada de forma flexível e requereu reformas. Em 2013, o país reduziu o ciclo de ajuste de preços para dez dias e aumentou sua transparência.
Em 2016 incorporou ao mecanismo um piso e um teto e agora o país faz ajustes nos preços domésticos quando os preços internacionais do barril traduzirem uma mudança de mais de 50 yuan por tonelada para a gasolina e diesel, mas não vai fazê-lo se o barril estiver abaixo de US$ 40 ou acima de US$ 130.
Os ajustes também devem ter em conta os custos de processamento, margens de lucro e oferta e demanda.
É forçoso reconhecer, por outro lado, que o cenário demanda medida que impeça o repasse imediato ao consumidor brasileiro da elevada flutuação observada atualmente no mercado internacional.
Uma das iniciativas cabíveis para frear o impacto ao consumidor seria uma mudança na política de preços da Petrobras, que passaria a implementar reajustes de forma menos frequente, com intervalos mais longos, compensando perdas e ganhos ao longo do tempo.
Esse caminho tem um inconveniente: se os preços internacionais sobem, e a Petrobras mantém o valor doméstico do diesel em patamar abaixo dessa referência, os importadores não poderão atuar, o que aumenta a possibilidade de desabastecimento num cenário de risco, já que 25% da nossa demanda desse combustível é suprida via importações.
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Proposta de subvenção ao preço do diesel
Em tais circunstâncias, há espaço — e mesmo a necessidade — para medidas alternativas que, ao mesmo tempo:
- permitam que o diesel seja temporariamente vendido ao consumidor brasileiro por um preço abaixo daquele praticado no mercado internacional;
- não desincentivem as importações do produto neste momento de escassez global, o que adicionaria risco ao suprimento;
- e evitem a utilização de recursos públicos, dado o cenário de grave fragilidade fiscal e a limitação imposta pelo teto de gastos.
Uma possibilidade seria instituir, por meio de uma determinação do poder regulador, outorgada à referida Câmara, subvenção por litro vendido pelas refinarias, formuladores e importadores, da forma praticada em 2018.
Essa medida, excepcional e temporária, válida por 90 dias, poderia ser renovada por igual período, caso o cenário se mantenha.
A diferença entre os preços doméstico e internacional poderia ser ressarcida por uma operação de mercado, sem recursos do Tesouro Nacional, estruturada sob a forma de empréstimo sindicalizado de bancos, coordenada pelo BNDES e outros bancos públicos, lastreada, por exemplo, nos direitos de produção futura de petróleo e gás da União gerenciados pela Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA).
O empréstimo seria quitado ao longo dos 60 meses, mediante pagamento, pelo consumidor, de encargo — válido por tempo determinado, para fazer frente a um cenário inusitado — a ser inserido no preço do diesel e da gasolina.
A inclusão do consumidor de gasolina tem por justificativa:
- contribuir no ressarcimento da amortização não apenas do custo do diesel, mas dos reflexos desse custo nos demais itens da cadeia produtiva, que lhe trazem ganho direto;
- criar desincentivo ao uso de um combustível fóssil majoritariamente consumido para transporte individual. Medidas compensatórias para categorias particularmente impactadas, como motoristas de táxi e de aplicativos, podem ser criadas.
Benefícios
Os benefícios para a sociedade são inúmeros. A manutenção do alinhamento com os preços internacionais — do ponto de vista dos agentes vendedores– reduz o risco de desabastecimento, já que permite aos importadores continuar operando normalmente.
Refinarias, importadores e formuladores não seriam prejudicados pela falta de paridade, pois receberiam os recursos financeiros necessários para compensar a perda de receita temporária em decorrência da situação excepcional.
Para o consumidor, a medida representa a postergação e o parcelamento de impactos financeiros que, caso contrário, teriam efeito imediato, além de amortecer o impacto inflacionário decorrente do aumento do preço dos combustíveis.
A União poderia aproveitar eventuais cenários futuros de preço baixo do barril — e consequentemente do diesel — para antecipar a amortização do empréstimo, em benefício do consumidor.
A instituição de empréstimo para pagamento às empresas vendedoras, com previsão de ressarcimento futuro pelo consumidor, é medida já vivenciada no setor elétrico em três oportunidades: as chamadas Conta ACR, Conta Covid e Conta Escassez Hídrica.
A Conta ACR conseguiu, inclusive, ser quitada antes dos 60 meses previstos. As Contas Covid e Escassez Hídrica mantêm-se vigentes. Todas gerenciadas pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), com auditoria externa de empresas independentes (KPMG e PwC).
As Contas em questão foram viabilizadas por Decreto presidencial (8.221/2014, 10.350/2020 e 10.939/2022) e regulamentadas por Resoluções Normativas da Aneel (REN nº 612/2014, 885/20 e 1.008/2022).
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Escassez global
O fato é que o contexto de escassez e o cenário de incerteza têm feito as nações adotarem diversas medidas para mitigar o risco de desabastecimento e o impacto do aumento dos preços para as suas populações.
Noruega, Coréia do Sul, Holanda, Nigéria e Índia, por exemplo, reduziram tributos sobre os derivados de combustíveis, ao passo que Alemanha, Reino Unido, Grécia, Japão e Dinamarca implantaram políticas de subsídios a esses produtos.
Há ainda países como França, Itália e Espanha, que adotaram ambas as políticas simultaneamente.
Aqueles que detém reservas estratégicas, como os EUA, Japão, Coréia do Sul e mais 22 países da UE, chegaram até a medidas mais extremas de redução do consumo, como racionamento de energia e fechamento temporário de fábricas, no caso da China.
É chegada a hora de o Brasil dar sua resposta.
Marcos Cintra é executivo do setor de petróleo, gás e energia, mestre em Políticas Públicas (IE-UFRJ) e doutor em Energia (IEE-USP).
Aurélio Amaral é advogado e consultor de empresas. Foi Diretor da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e Superintendente de Abastecimento.
Juliana Melcop é advogada com atuação no setor de energia, é mestra (UFPE) e doutoranda em Direito (USP).