A controvérsia envolvendo o setor de distribuição de combustíveis e a Fazenda Pública estadual e distrital quanto à exigência do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias (ICMS) nas operações com o derivado sólido de petróleo (coque verde; coque de petróleo) não é atual e parece longe de um desfecho.
Isso porque, além de os Estados comumente confundirem o coque de petróleo com óleo combustível, manejando cobranças inexatas e desfalcadas de arcabouço legal, não há previsão legal de submissão do coque verde ao regime da substituição tributária, razão pela qual as autuações pautadas neste cenário são comumente questionadas pelo contribuinte distribuidor de petróleo tanto na esfera administrativa quanto na judicial.
É nesse contexto que examinamos a ausência de previsão legal de coque de petróleo como produto sujeito à substituição tributária e, por consequência, a ilegalidade das autuações lavradas pelas fiscalizações estaduais e distrital com base nestas operações.
As Fazendas Públicas entendem que o coque de petróleo seria um combustível líquido e, portanto, estaria sujeito à substituição tributária do ICMS na forma de suas legislações, as quais preveem que o imposto será retido por substituição tributária nas operações envolvendo combustíveis derivados ou não de petróleo.
Neste contexto, o Fisco defende que tal tributo de competência estadual deveria incidir de forma monofásica, com base no art. 155, §2º, XII, “h”, da Constituição Federal. Todavia, a aplicação da referida regra constitucional está condicionada à edição de Lei Complementar, o que até hoje não se concretizou.
Portanto, ausente a lei autorizadora da cobrança de ICMS-ST sobre as operações com coque de petróleo, tem-se que as autuações fazendárias levadas a efeito neste contexto violam não apenas o princípio da legalidade, insculpido nos art. 5º, II, e 150, I, da CF, mas também o princípio da não-cumulatividade, previsto no art. 155, §2º, I, da CF.
Deve-se destacar, ainda, que a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) já definiu que o coque de petróleo é combustível derivado da aglomeração de carvão, de matéria mineral e carbono, duro e poroso, sendo resíduo sólido e coeso da destilação destrutiva de carvão, petróleo ou de outros resíduos carbonáceos, além de publicar anualmente dados estatísticos do setor (.pdf), classificando o coque verde como derivado de petróleo não energético.
Tanto é assim que, pelas características do produto, as distribuidoras o utilizam no processo fabril de metalurgia, siderurgia, produção de asfalto e cal.
E, ainda que não bastasse a definição conferida ao produto pela ANP, todas as indústrias adquirentes do coque de petróleo o utilizam para fins não energéticos, ou seja, no processo de industrialização, para a formação de produtos finais.
Desta forma, não é dado à administração tributária transmutar a natureza do coque de petróleo para considerá-lo um combustível, já que a atribuição para tal definição é da ANP.
Neste sentido, deve-se recordar de que os conceitos conferidos pelo direito privado, inclusive os emitidos pelas agências reguladoras, devem ser respeitados e aproveitados na seara tributária, não podendo o Fisco inová-los ou alterá-los quando já são reconhecidos pelo ente que detém a autorização constitucional para tanto.
Nessa linha, artigo 110 do Código Tributário Nacional (CTN) prevê que “[A] lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.
Desta forma, verifica-se que em muitos casos a Fazenda Pública autua as distribuidoras de combustíveis sem a indispensável fundamentação legal; no caso presente, sem sequer fazer referência aos dispositivos legais aplicáveis às operações com o coque de petróleo, utiliza-se, erroneamente, da base de legal concernente aos combustíveis líquidos, como o óleo combustível, por exemplo.
A título de esclarecimento, veja-se que a utilização do coque de petróleo é feita de acordo com a combinação de suas características com o processo industrial, talvez se constituindo no produto derivado de petróleo com o maior potencial de utilização industrial.
Os principais segmentos industriais nos quais o coque de petróleo pode ser utilizado são:
- Siderurgia (sinterização, pelotização, alto-forno, fabricação de coque metalúrgico, PCI);
- Abrasivos (carbeto de silício);
- Ferro-gusa, ferro-ligas e fundição;
- Carboníferas;
- Cerâmica;
- Cimenteira;
- Termelétricas a carvão;
- Calcinação;
- Gaseificação;
- Secagem de grãos;
- Indústria química.
Portanto, sendo a ANP o órgão constitucionalmente competente para promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, conferida pela Lei nº 9.478/97, a administração pública não pode conferir interpretação diversa a estas operações — menos ainda para autuar as distribuidoras de petróleo desprovida da base legal especificamente aplicável à operação.
Diante das considerações acima, as autuações fiscais pautadas na exigência de ICMS nas operações envolvendo coque de petróleo pelas distribuidoras de combustíveis são manifestamente indevidas, ante a inexistência de previsão legal da sujeição deste produto ao regime de substituição tributária, e porque, em ilegalidade ainda mais aguda, tais autuações sequer especificam a base legal aplicável à tributação das operações envolvendo a referida mercadoria.
A solução do problema depende da concentração de esforços destinados à adequação das regras aplicáveis às operações havidas com o coque de petróleo, de modo a cessarem as indevidas autuações desta natureza em face das distribuidoras de combustíveis, o que conferirá a esperada segurança jurídica para todo o setor e estará em sintonia com os princípios constitucionais norteadores da prática sob debate.
Janssen Hiroshi Murayama é sócio fundador de Murayama & Affonso Ferreira Advogados. Graduado em Direito e Ciências Contábeis pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pós-graduado em Direito Tributário, pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) e mestre em Direito Tributário pela UERJ. Membro efetivo da Comissão de Direito Financeiro e Tributário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), fundador e conselheiro do Grupo de Debates Tributários do Rio de Janeiro (GDT-Rio), além de autor e coordenador de livros e artigos científico-tributários e professor convidado do FGV Law Program.
Camila Cristina Magrille Molle é advogada graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-graduada em direito tributário pela Universidade Cândido Mendes. Extensão em contabilidade geral e tributária pela Fundação Getúlio Vargas.
Mariana de Oliveira Ferreira é advogada em Murayama & Affonso Ferreira Advogados. Graduada em Direito pelo IBMEC, com LL.M. em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas e Extensão em Tributário pela EMERJ.
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