Biocombustíveis

Elétricos, biocombustíveis, ACV e certificação – diferenciando os “gatos pardos”

Auferir as emissões de GEE da produção de veículos elétricos é tão fundamental quanto as que são realizadas para os biocombustíveis

Elétricos, biocombustíveis, ACV e certificação – diferenciando os “gatos pardos”. Na imagem: Estação carrega bateria de veículos elétricos com energia solar fotovoltaica (Foto: Divulgação Envision Solar)
Estação carrega bateria de veículos elétricos com energia solar fotovoltaica (Foto: Divulgação Envision Solar)

“À noite todos os gatos são pardos”. Esta é uma expressão popular que remete a ideia de que no escuro é difícil de se distinguir a diferença entre objetos semelhantes. É preciso por luz, para que as diferenças apareçam.

Por vezes, mesmo à luz do dia, as diferenças são sutis e merecem uma avaliação ainda mais detalhada para serem percebidas. É o caso da comparação de veículos elétricos com veículos movidos a biocombustíveis no que tange as emissões de carbono.

À primeira vista, a diferença entre um veículo puro elétrico e um veículo de combustão está no fato de o primeiro não ter um cano de escapamento de gases, como ocorre no segundo. Isso leva a crer que o veículo elétrico não tem emissões gasosas, já que não dispõe do tradicional dispositivo de descarga de gases.

De fato, não há emissões diretas. No caso de veículos elétricos, as emissões são indiretas, associadas à produção do veículo, à infraestrutura de recarga e à fonte de geração da energia elétrica.

Dadas as diferenças substanciais existentes entre as tecnologias, de veículos elétricos e de combustão, compará-las em relação as emissões de carbono requer uma análise de ciclo de vida (ACV) completa. Através da ACV, é possível mensurar as emissões indiretas dos veículos elétricos ao longo da sua vida útil.

A importância da ACV

A ACV é uma ferramenta ampla, de grande importância para medir o impacto ambiental, social e econômico de um produto, processo ou serviço durante todo o seu ciclo de vida, desde a extração de matérias-primas até o descarte final. Isso inclui a produção, transporte, uso e disposição do produto, bem como a energia e materiais necessários em cada etapa.

No caso dos veículos elétricos, a ACV pode ser usada para avaliar as emissões associadas à produção de baterias, motores elétricos, dispositivos eletrônicos e outros componentes.

Além disso, a ACV também pode ser usada para avaliar as emissões associadas ao uso de veículos elétricos, incluindo a geração de eletricidade necessária para carregar as baterias. Isso pode incluir emissões de gases de efeito estufa associadas à produção de eletricidade, como a queima de carvão ou gás natural.

Para os biocombustíveis, a ACV permite avaliar as emissões associadas ao cultivo, colheita e processamento das matérias-primas e insumos. Além disso, a ACV também pode ser usada para avaliar as emissões associadas à produção e distribuição dos biocombustíveis, incluindo as emissões de transporte e armazenamento.

ACV e certificação

A ACV apresar de ser uma ferramenta bastante importante não garante que as emissões de GEE de dois veículos ou combustíveis sejam diretamente comparáveis. É necessário padronização e certificação da ACV através de um esquema normalmente auditado por terceira parte.

A certificação de biocombustíveis já é amplamente utilizada no Brasil e no mundo. Existem variados esquemas e “selos” os quais você pode certificar um biocombustível, para avaliar a sua sustentabilidade e quantificar as emissões de GEE ligadas ao seu ciclo de vida: RenovaBio, Bonsucro, 2BSvs, RSB, ISCC, entre outros.

Não existe, porém, uma metodologia padrão de ACV, desdobrada em uma certificação para validar as emissões de GEE da energia elétrica ou da fabricação de veículos, o que dificulta a comparação entre os eletrificados e os movidos a biocombustíveis em relação a pegada de carbono.

Enquanto há uma “lupa” sobre as emissões de carbono no ciclo de vida dos biocombustíveis, rastreadas e verificadas através de programas de certificação, o mesmo não ocorre para os veículos elétricos. Só que sem uma ACV completa do veículo e das fontes de recarga (energia elétrica ou combustível), fica difícil comparar as opções existentes.

Em um breve ensaio realizado, o artigo As emissões invisíveis dos carros elétricos demonstra que as emissões de GEE de um elétrico podem superar a de um veículo movido à biocombustível no Brasil.

Obviamente, isso não é uma regra, o resultado varia de acordo com os veículos considerados e com as fronteiras e premissas adotadas no estudo. De qualquer forma, fica evidente a necessidade de se avaliar as emissões de todo o ciclo de vida, para que se possa comparar as alternativas tecnológicas que se dispõe.

Certificando as emissões dos veículos elétricos

Diante da necessidade de descarbonização dos sistemas produtivos e do melhor direcionamento dos recursos, para uma transição econômica e sustentável, é fundamental considerar a ACV de cada uma das múltiplas opções.

Auferir as emissões de GEE da produção de veículos elétricos é tão fundamental quanto as que são realizadas para os biocombustíveis.

A análise de ciclo de vida, validada por um esquema de certificação, é uma ferramenta importante para comparar as emissões associadas aos veículos elétricos, biocombustíveis e outras opções que estão surgindo no mercado, como o hidrogênio e os combustíveis sintéticos.

Ao se entender melhor o impacto ambiental dessas alternativas, pode-se tomar decisões mais precisas sobre como reduzir as emissões ao longo da cadeia produtiva, no apoio de um processo de transição que dispense o menor consumo de recursos e propicie o maior retorno social possíveis.

Quem sabe em algum momento venha a existir uma certificação, a semelhança das que existem para biocombustíveis, que avalie as emissões de GEE da cadeia de produção de veículos elétricos e de combustão.

Afinal, avaliar a pegada de carbono de produtos e serviços é cada vez mais fundamental para nortear a transição energética. Enquanto isso, sem essa certificação, as discussões e comparações a respeito das emissões de diferentes rotas tecnológicas permanecem às “escuras” e os “gatos seguem todos pardos”. A Europa que o diga.

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.

Referência

GAUTO, M. (2021). As emissões invisíveis dos carros elétricos. Ensaio Energético, 27 de setembro, 2021.