Biocombustíveis e alimentos

Biocombustíveis, segurança energética e alimentar

Produção de biocombustíveis pode aumentar oferta de alimentos e gerar renda no campo, desde que integrada a práticas agrícolas sustentáveis e políticas públicas eficientes, escreve Marcelo Gauto

Máquina agrícola do tipo colheitadeira, na cor verde, em vasta área de plantio de soja (Foto Jaelson Lucas/AEN)
Vasta área de plantio de soja (Foto Jaelson Lucas/AEN)

A discussão sobre a produção de biocombustíveis e seus impactos na segurança alimentar global tem sido marcada pela dicotomia food versus fuel (alimentos versus combustíveis). Essa narrativa sugere que a expansão dos biocombustíveis compromete a produção de alimentos, agravando a fome mundial e aumentando os preços dos produtos agrícolas.

No entanto, uma análise mais aprofundada revela que essa visão é reducionista e não considera os múltiplos aspectos envolvidos na relação entre biocombustíveis e agricultura. Na realidade, a produção de biocombustíveis pode, ao contrário, aumentar a oferta de alimentos e contribuir para o desenvolvimento sustentável, desde que implementada de forma estratégica e responsável.

A complementaridade entre biocombustíveis, agricultura e pecuária

A ideia de que a produção de biocombustíveis compete diretamente com a produção de alimentos parte da premissa de que os recursos agrícolas são limitados e estáticos. Na verdade, a agricultura é um sistema dinâmico, capaz de se adaptar e expandir para atender a diferentes demandas. A produção de biocombustíveis não precisa ocorrer à custa da produção de alimentos; pelo contrário, ela pode ser integrada ao sistema agrícola de forma complementar.

Um exemplo disso é o uso de subprodutos agrícolas e resíduos para a produção de biocombustíveis. A cana-de-açúcar, por exemplo, é utilizada tanto para a produção de açúcar quanto para a produção de etanol. O bagaço, um resíduo da moagem da cana, pode ser aproveitado para gerar energia elétrica ou para a produção de biocombustíveis de segunda geração, como o etanol celulósico.

Dessa forma, a mesma plantação atende a múltiplas finalidades, sem comprometer a produção de alimentos. Ainda que se possa discutir se açúcar é alimento ou não (muitos médicos e nutricionistas discordam de que seja).

Adicionalmente, no Brasil, observa-se que quanto mais soja e milho são esmagados para produção de biodiesel e etanol, maior é a oferta de proteína de soja e farelo de milho, respectivamente, importantes fontes que alimentam frango, porco, gado, entre outros. Assim, quanto mais óleo de soja se necessita, mais farelo se produz. E farelo é alimento, que alimenta alimento.

Temos um incremento na oferta de farelo quando os mandatos de biocombustível aumentam, criando o fuel for food (combustível para alimento). Obviamente, há que se tratar disso com cuidado, prezando-se pelo equilíbrio entre oferta e demanda dos bioprodutos, através das políticas públicas.

A geração de renda e o desenvolvimento rural

Outro aspecto frequentemente ignorado pela narrativa food versus fuel é o impacto positivo que a produção de biocombustíveis pode ter na geração de renda e no desenvolvimento rural. Em muitas regiões do mundo, especialmente em países em desenvolvimento, a agricultura é a principal fonte de subsistência para milhões de pessoas.

A produção de biomassa para biocombustíveis pode oferecer uma fonte adicional de renda para os agricultores, diversificando suas atividades e reduzindo a dependência de uma única cultura.

A produção de biocombustível gera empregos diretos e indiretos, estimula a infraestrutura local e contribui para a redução da pobreza. Estudos em curso no Brasil envolvendo a implantação de macaúba e agave em terras de baixa produtividade e em regiões de baixo desenvolvimento econômico, são oportunidades para a criação de uma cadeia inteira voltada para bioenergia em regiões com grande carência de emprego e renda. 

Além disso, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento agrícola movimentam as regiões produtoras, que buscam aumentar a eficiência na produção de biomassa, com impulsão na adoção de tecnologias avançadas, como a agricultura de precisão, o melhoramento genético de culturas e a utilização de fertilizantes mais eficientes.

Esses avanços beneficiam não apenas a produção de biocombustíveis, mas também a produção de alimentos, aumentando a produtividade das lavouras, reduzindo o desperdício, com tecnologia desenvolvidas por centros de pesquisas locais.

A sustentabilidade dos biocombustíveis e a segurança alimentar

É verdade que nem todo biocombustível é sustentável. Ao longo de muitos anos, observou-se a derrubada de extensas áreas de floresta na Indonésia para produção de palma, cujo óleo abastece a cadeia de biodiesel local, além de ser exportado. No Brasil, algumas regiões foram desmatadas para o plantio de soja, que muitas vezes recebe severas críticas por conta disso.

A sustentabilidade é um dos pilares centrais na produção de biocombustíveis. Para que sejam verdadeiramente sustentáveis, é essencial que sua produção não comprometa a vegetação nativa, a biodiversidade, tampouco a segurança alimentar.

Isso pode ser alcançado por meio de práticas agrícolas responsáveis, pela adoção de políticas públicas que promovam o equilíbrio entre a produção de biocombustíveis e a produção de alimentos e por programas de certificação que avaliem critérios de sustentabilidade. 

O cultivo de matérias-primas para biocombustíveis em áreas degradadas ou subutilizadas é bastante promissor neste sentido. Em vez de competir com terras agrícolas destinadas à produção de alimentos, os biocombustíveis podem ser produzidos em áreas que não são adequadas para a agricultura convencional. Isso não apenas evita a concorrência por terras, mas também contribui para a recuperação de solos degradados e a preservação de ecossistemas.

Além disso, a produção de biocombustíveis pode ser integrada a sistemas agroflorestais, nos quais culturas alimentares e matérias-primas para biocombustíveis são cultivadas em conjunto. Integração lavoura-pecuária é uma alternativa.

Essas abordagens promovem a diversificação agrícola, aumenta a resiliência dos sistemas produtivos e contribui para a segurança alimentar. O cultivo de palmeiras para a produção de biodiesel pode ser combinado com o cultivo de alimentos como mandioca ou feijão, maximizando o uso da terra e beneficiando os agricultores.

Segurança energética e alimentar juntas

O food versus fuel é uma preocupação genuína, que tem sido explorada, porém, como política protecionista, especialmente da Europa, contra os biocombustíveis. A produção de biomassa de modo geral não precisa competir com a produção de alimentos; diversamente, ela tem sido e pode continuar como aliada no aumento da oferta de alimentos, na geração de empregos e no desenvolvimento rural.

Para que isso se mantenha, no entanto, é essencial a adoção de práticas agrícolas sustentáveis, rastreabilidade das matérias-primas (certificação), investimento em pesquisa e desenvolvimento e implementação de políticas públicas eficientes. 

A produção de biocombustíveis, quando realizada de forma responsável e integrada, associativa, contribui para um futuro mais sustentável e seguro, tanto em termos energéticos quanto alimentares. Mais biocombustíveis, mais alimentos. Há muito por fazer. Vamos adiante.

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.

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