Após o longo e tortuoso caminho percorrido para que se pudesse alcançar a criação de instrumento jurídico que fosse capaz de ratificar a intenção do Brasil em, de fato, aderir ao novo mercado de gás natural, de forma a tomá-lo mais dinâmico e competitivo, foi promulgada, em abril deste ano, a Lei nº 14.134, mais conhecida como “nova lei do gás”.
Em verdade, desde a iniciativa Gás para Crescer formulada pelo Governo Federal, em que foi publicizada pela primeira vez a intenção de se destravar a indústria do gás, já se podia extrair o anseio pela concreta materialização do potencial de gás natural existente no país, de forma a apropriar para a sociedade brasileira todos os potenciais benefícios decorrentes da efetiva ampliação da oferta deste recurso estratégico para a matriz energética.
Não obstante, desde o início das referidas tratativas, já se tinha noção dos complexos desafios que teriam que ser ultrapassados para proporcionar, a toda a cadeia do gás natural, regras claras, estabilidade regulatória e segurança jurídica, aptas a garantir os elevados patamares de investimento necessários para os projetos de longo prazo, exigidos para a integração e desenvolvimento de toda a cadeia do gás.
Dentre os desafios referidos acima, a “remoção das barreiras tributárias” foi qualificada como um dos pilares do programa Novo Mercado de Gás, criado pelo Governo Federal em 2019, como nova tentativa da formação de um efetivo mercado de gás no país.
No entanto, considerando a subjetividade e amplitude do referido termo, revela-se indispensável que se defina quais são as principais barreiras e os potenciais entraves a serem superados, para que possam ser individual e detalhadamente analisados e combatidos.
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Primeiramente, cabe destacar os conflitos de competência entre estados, e entre estados e municípios envolvidos na tributação das novas relações jurídicas que serão inauguradas com o novo mercado, principalmente em relação às operações de processamento, transporte, estocagem, distribuição e regaseificação do gás natural a ser comercializado.
A nosso ver, a mitigação prévia dos referidos conflitos dependeria da edição de Lei Complementar que definisse parâmetros claros para a distinção dos limites de competência de cada estado, bem como entre estados e municípios (como no caso das operações de industrialização por encomenda, por exemplo), além de homogeneizar o tratamento das diferentes operações na cadeia do gás, sobretudo padronizando alíquotas, equalizando incentivos fiscais e afastando hipóteses de acúmulo de crédito.
Adequação do ICMS
Um aspecto importante, ainda nesse contexto, é a dificuldade de se adequar o regime de incidência do ICMS à nova cadeia desverticalizada do gás natural, em razão, por exemplo:
- (i) da incompatibilidade da sistemática de tributação na origem com o regime de incidência do ICMS aplicável à energia elétrica;
- (ii) da impossibilidade de se exigir a circulação física do bem neste caso (considerando que a fungibilidade do gás natural no modelo de entrada/saída já foi reconhecida pelo Decreto nº 10.712/2021);
- e (iii) da dificuldade de se prever, já nas etapas iniciais da cadeia, a destinação que será atribuída ao gás, com possíveis impactos quanto à apropriação, estorno e utilização dos créditos.
Por fim, o protagonismo assumido pelo serviço de transporte no novo marco regulatório também não pode deixar de ser objeto de atenção sob a perspectiva tributária.
Isso porque o Modelo de Entradas (injeção do gás) e Saídas (retirada do gás) que, por essência, se atrela à circulação jurídica do bem comercializado, por consistir na contratação de capacidade de transporte, contando, para tanto, com a presença de múltiplos carregadores, acaba por não se adequar exatamente ao conceito típico de transporte utilizado para fins de incidência do ICMS, que está associado à determinação de um trajeto fisicamente delineado como elemento essencial para a determinação das competências estaduais para a cobrança do imposto.
Diante de todo o exposto, podemos concluir que, neste momento, todos os nossos esforços devem estar voltados a pleitear, formular, conduzir e contribuir para a adaptação prévia e eficiente da legislação tributária, principalmente, mas não se limitando aos pontos identificados acima.
Com isso, a legislação aplicável poderá passar a conter regras claras que sejam direcionadas especificamente à multiplicidade de operações possíveis no âmbito do novo mercado de gás, a fim de evitar que os gargalos tributários reduzam o apetite para novos investimentos, tendo em vista a projeção de custos decorrentes das ineficiências fiscais, bem como a perspectiva de infindáveis disputas administrativas e judiciais decorrentes de conflitos interpretativos quanto às normas aplicáveis.
Tiago Severini e Paloma Amorim são, respectivamente, sócio e advogada sênior da área tributária e aduaneira do Vieira Rezende Advogados. O escritório Vieira Rezende Advogados representa empresas do setor de petróleo e gás.
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