Biocombustíveis

Carbono antigo e carbono moderno juntos: o coprocessamento de cargas sustentáveis

O coprocessamento é uma solução que pode contribuir na produção de combustíveis de aviação de menor emissão, escreve Marcelo Gauto

Carbono antigo e carbono moderno juntos: o coprocessamento de cargas sustentáveis de biomassa. Na imagem: Biocombustível de aviação abastece aeronave da United no Aeroporto Internacional de São Francisco, nos EUA (Foto: Divulgação)
Biocombustível de aviação abastece aeronave da United no Aeroporto Internacional de San Francisco, nos EUA (Foto: Divulgação)

Há muito tempo, materiais orgânicos provenientes de restos de plantas e organismos marinhos, especialmente plâncton, que viveram em épocas remotas, acumularam-se em áreas sedimentares, como pântanos e leitos marinhos.

Ao longo de milhões de anos, a pressão e o calor causados pela sobreposição de grandes camadas sedimentares transformaram esses restos orgânicos em conglomerados de carbono, dando origem aos combustíveis minerais, como carvão, petróleo e gás natural. Assim, pode-se dizer que petróleo nada mais é do que o acúmulo muito antigo de biomassa.

Essa biomassa bastante antiga, denominada petróleo, dá origem a muitos produtos, especialmente a combustíveis. Gás de cozinha, gasolina, óleo diesel, entre outros, são derivados de petróleo amplamente conhecidos, formados basicamente por cadeias de carbono e hidrogênio.

O carbono presente nestes combustíveis já fez parte de algum ser vivo há milhões de anos. Pode soar estranho e inesperado, mas gasolina e diesel são combustíveis derivados de biomassa, portanto, “biocombustíveis”, gerados há longa data.

Haverá quem contra-argumente que combustíveis fósseis não são renováveis, ao pronto que se pode responder que são. Os processos biogeoquímicos seguem produzindo petróleo, só que leva muito tempo para esta renovação. Sem esquecer que a questão chave aqui é o tempo muito longo, de milhões de anos, envolvido na complexa transformação da matéria orgânica em petróleo.

Encurtando o tempo

Existem processos que transformam biomassa em biocombustíveis de forma muito mais rápida. O aquecimento da madeira em certas condições controladas, gera bio-óleo, biogás e carvão vegetal.

Supondo uma cultura vegetal que leve de 6 a 8 anos para crescer e atingir a idade adulta, como o eucalipto, mais alguns dias entre corte e processamento desta madeira, temos biocombustíveis produzidos industrialmente em menos de uma década, a partir de biomassa vegetal. Rápido demais se comparado ao tempo que a natureza leva para produzir petróleo.

Há como ser ainda mais rápido. Os diversos óleos vegetais e gorduras animais podem ser produzidos em uma janela de tempo que varia de meses a alguns poucos anos. Óleos e gorduras são biomassas formadas por grandes conglomerados orgânicos, compostos fundamentalmente por carbono, oxigênio e hidrogênio.

E, a partir deles, é possível sintetizar biocombustíveis, com o ciclo de carbono encurtado. Os biocombustíveis atuais são fruto do acúmulo de carbono em um curto espaço de tempo. Ainda que os átomos de carbono capturados da atmosfera pelos vegetais possam não ser tão jovens assim, o carbono presente nos biocombustíveis produzidos hoje é considerado “novo”, praticamente um “recém-nascido” na escala geológica.

O encontro dos carbonos no coprocessamento

Os biocombustíveis podem ser produzidos por diferentes rotas tecnológicas.

A reação de óleos e gorduras com metanol (H3C-OH), por exemplo, gera um éster de ácido graxo usualmente conhecido como biodiesel, embora o termo biodiesel seja amplo o suficiente para que qualquer combustível derivado de biomassa utilizado em motores de combustão interna possa ser chamado de biodiesel. A própria lei de introdução do biodiesel na matriz energética brasileira (11.097/05) enfatiza isso:

  • “XXV – Biodiesel: biocombustível derivado de biomassa renovável para uso em motores a combustão interna com ignição por compressão ou, conforme regulamento, para geração de outro tipo de energia, que possa substituir parcial ou totalmente combustíveis de origem fóssil.” (BRASIL, 2005, Art. 4)

Outra forma de se produzir “biodiesel” (usando o conceito expresso na Lei 11.097/05) se dá pela reação de hidrogenação de óleos e gorduras em unidades de hidrotratamento (conhecidas pela sigla HDT).

Essa rota produz o chamado HVO (Hydrotreated Vegetable Oil, ou óleo vegetal hidrotratado) também conhecido como “diesel verde”. Pode-se dizer que todo HVO é um diesel verde, mas nem todo diesel verde é um HVO, porque ele pode ser produzido por outras rotas tecnológicas.

O diesel verde (HVO) pode ainda ser produzido em unidades dedicadas de HDT ou em unidades de coprocessamento, HDTs de diesel de petróleo que coprocessam óleos ou gorduras junto. A figura 1 demonstra a diferença fundamental entre uma planta dedicada de HDT e uma de coprocessamento.

As duas rotas produzem diesel verde, sendo que no coprocessamento o diesel verde sairá do HDT já misturado ao diesel de petróleo. Observa-se que o encontro do carbono velho do diesel de petróleo com o jovem carbono do diesel verde pode ocorrer antes ou depois do HDT.

Figura 1 – Diferenças entre unidade dedicada e de coprocessamento para produção de HVO (Fonte: elaboração própria)
Figura 1 – Diferenças entre unidade dedicada e de coprocessamento para produção de HVO (Fonte: elaboração própria)

O teor de HVO gerado por coprocessamento depende da carga de óleo ou gordura utilizados, sendo usual valores entre 5 % e 10 % m/m, que não requerem grandes ajustes da unidade de processo previamente existente.

A hidrogenação de óleos e gorduras gera um diesel verde contendo hidrocarbonetos semelhantes aos produzidos pelo refino de petróleo, de modo que a principal diferença do diesel de petróleo para o diesel verde é a idade dos átomos de carbono. Isso é simplesmente incrível. É o encontro de “velhos” e “jovens” átomos de carbono compondo um combustível plenamente compatível com a logística e os motores existentes (drop-in).

A produção de HVO por coprocessamento, unindo carbonos de diferentes idades em uma mesma unidade de HDT, é uma forma mais econômica de introduzir as refinarias já existentes na transição energética, quando comparada aos custos de se erguer unidades dedicadas de biorrefino.

A capacidade instalada de produção de HVO no mundo em 2023 foi da ordem de 20 milhões de toneladas por ano, sendo cerca de 10 % m/m por coprocessamento (figura 2).

Figura 2 – Capacidade instalada de produção de HVO no mundo em 2023 (Fonte: elaboração própria a partir de dados da Argus Media, 2023)
Figura 2 – Capacidade instalada de produção de HVO no mundo em 2023 (Fonte: elaboração própria a partir de dados da Argus Media, 2023)

No Brasil, o diesel verde de coprocessamento é produzido na Refinaria Presidente Getúlio Vargas (Repar), em Araucária (PR), e na Refinaria Presidente Bernardes (RPBC), em Cubatão (SP). O coprocessamento e produção de diesel verde está apto a ser realizado nas refinarias de Paulínia (Replan) e Duque de Caxias (Reduc) também.

Ampliando o coprocessamento

O coprocessamento é uma solução que pode contribuir na produção de combustíveis de aviação de menor emissão. Existem duas rotas aprovadas pela ASTM e ICAO para o coprocessamento em unidades de HDT, a partir de óleos vegetais e gorduras animais ou de petróleos sintéticos produzidos por gaseificação.

Além disso, esses organismos avaliam a inclusão do coprocessamento de matérias primas residuais como plásticos e óleo de pirolise de pneus em unidades de conversão, como o FCC e o coqueamento retardado.

O coprocessamento de bio-óleos residuais em unidades de craqueamento pode produzir produtos de baixo carbono, ampliando a união de carbonos de gerações muito distintas.

À medida que biomassas e soluções tecnológicas associadas se tornam mais amplamente disponíveis, aumentar gradualmente a capacidade de coprocessamento em uma refinaria versus ter que construir novas unidades de produção torna-se cada vez mais interessante.

Além da escala e dos benefícios econômicos, o uso das instalações existentes mitiga ainda mais o impacto ambiental e as emissões de gases de efeito estufa associadas relacionadas à construção de novas instalações dedicadas ao processamento de biomassas.

A promoção do encontro dos carbonos antigos e modernos, via coprocessamento de cargas renováveis, é passo importante na caminhada da transição energética. É tempo de unir fósseis e renováveis na grande ciranda do ciclo do carbono, encurtando tempos, maximizando resultados.

Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.

Referências

ARGUS MEDIA. HVO Refinery Database. Dados reproduzidos mediante autorização. Acessado em novembro de 2023.

BRASIL. Lei Nº 11.097, de 13 de janeiro de 2005. Dispõe sobre a introdução do biodiesel na matriz energética brasileira; altera as Leis nºs 9.478, de 6 de agosto de 1997, 9.847, de 26 de outubro de 1999 e 10.636, de 30 de dezembro de 2002; e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2005.