Em viagem à Índia, o economista Samuel Bowles se surpreendeu com a vila de Palanpur, comunidade agrícola mais pobre que a média indiana.
Pesquisando, descobriu que a pobreza decorria de os agricultores semearem suas lavouras semanas após a melhor época de plantio, o que reduzia consideravelmente sua produtividade.
Conversando com um deles, Bowles sugeriu que se semeassem mais cedo, melhorariam sua condição econômica.
Para sua surpresa, a informação era de conhecimento geral. Ninguém tomava a iniciativa porque o precursor teria suas sementes devoradas pelos pássaros.
Se todos, contudo, semeassem ao mesmo tempo, no período adequado, produziriam mais e as perdas seriam distribuídas e pouco significativas para cada um.
Bowles então perguntou se um grande grupo de agricultores já havia combinado de plantar simultaneamente, ao que o agricultor respondeu: se soubéssemos como fazer isso, não seríamos pobres.
Palanpur e o setor elétrico brasileiro (SEB) têm uma carência comum: um mecanismo de coordenação eficaz.
Marcado por uma governança fraca, fragmentada e descoordenada – MME, ANEEL, EPE, ONS, CCEE, CMSE, Congresso Nacional, TCU, órgãos ambientais, Judiciário –, o SEB clama por liderança capaz de conduzir uma reforma institucional que traga segurança, confiabilidade e modicidade a um sistema que passa por mudanças profundas na composição de fontes de geração, na forma de operar e no modo de transacionar a energia.
O tema é urgente, pois, de um lado, a regulação vigente não foi concebida para o contexto atual.
De outro, o aumento da complexidade de um sistema integrado – nas dimensões física, econômica e política – põe em evidência as fragilidades de um aparato institucional compartimentado e, portanto, pouco adequado para manejar a verdadeira entropia que tem se tornado o setor elétrico.
Nessas circunstâncias, é premente fortalecer operacionalmente o MME, que não tem uma carreira própria e há 30 anos não faz um concurso público.
É igualmente importante reforçar o enforcement da ANEEL, hoje questionado pelo protagonismo do Congresso Nacional, que corriqueiramente propõe mudanças importantes na política para o setor sem necessariamente levar em conta as instituições técnicas e de planejamento energético.
Círculo vicioso de intervenções
No caso mais emblemático, inseriu-se na MP 1031/21, da privatização da Eletrobras, um planejamento energético determinativo para a expansão do setor, com a obrigatoriedade de contratação de 8 GW de potência de termelétricas a gás natural com fator de capacidade de 70%, por um período de 15 anos, cujos custos, calculados em R$ 84 bilhões, serão pagos por todos os consumidores.
A medida também renovou, sem licitação, contratos já amortizados do Proinfa – o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas –, a preços maiores que os praticados hoje, e criou reserva de mercado de 2GW para pequenas centrais hidroelétricas.
A porta aberta pela MP da Eletrobras tem estimulado novas intervenções, num círculo vicioso que gera instabilidade jurídica e regulatória e agrega risco político a um setor já marcado pela complexidade técnica.
Um exemplo recente foi a MP 1.118/22. A medida tratava da incidência de ICMS sobre combustíveis, mas recebeu emenda dando prazo adicional de 24 meses para a entrada em operação de projetos renováveis beneficiados com descontos nas tarifas de transmissão e distribuição, além de determinar o uso do sinal locacional para a tarifa de transmissão, congelando a TUST durante o período de outorga.
A iniciativa abalroava a Aneel, que dispõe de competência legal para regular o setor – atribuída pelo próprio Congresso Nacional – e estava naquele momento com um processo de consulta pública aberto sobre o tema.
Papel das agências reguladoras
A MP acabou caducando e a decisão sobre o tema foi tomada recentemente pela agência. O episódio, contudo, evidenciou certa tensão entre o regulador e o Parlamento, materializada na proposta recente de submeter as decisões técnicas da Aneel a uma espécie de conselho político.
A atuação em Brasília de mais de duas dezenas de associações setoriais defendendo interesses específicos e frequentemente incoerentes gera um tumulto febril que agita um ambiente institucional já estruturalmente fragmentado.
A ausência de diálogo e coordenação entre os segmentos dificulta a integração de pautas e impede a formação de consensos mínimos.
Sem dispor de uma visão sistêmica que oriente a todos, entidades representativas e agentes econômicos têm incentivos para operar de forma individual em busca de benefícios exclusivos.
Nesse cenário, todos participam das tomadas de contribuição, consultas e audiências públicas da Aneel – meio disponível para o aperfeiçoamento das regras –, mas se não conseguem fazer prevalecer seus pontos de vista, apelam à política ou à justiça.
Ao recorrer correntemente contra decisões regulatórias, entidades e agentes colaboram para fragilizar o papel da Aneel, uma instituição central para a manutenção de um ambiente de negócios relativamente previsível.
Sob essas circunstâncias, o órgão regulador sequer consegue cassar pacificamente a outorga de projetos que não cumprem prazos legais previamente pactuados, estabelecidos para assegurar o planejamento do setor, elemento fundamental para a sua confiabilidade.
Esse ecossistema complexo, cuja burocracia se estende por todos os elos da cadeia de valor e por todas as etapas do ciclo de vida dos ativos, é particularmente vulnerável às práticas de rent seeking – os subsídios cruzados do setor já somam mais de R$ 27 bilhões ao ano.
Adicionalmente, incentiva a judicialização e a transferência de recursos da sociedade para atividades improdutivas, encarece a conta do consumidor, onera os custos das empresas e faz o país perder competitividade e se desindustrializar precocemente.
O processo de licenciamento ambiental, que abarrota órgãos ambientais e gera um mercado paralelo de projetos, é um exemplo das disfuncionalidades dessa engrenagem (A licença ambiental como moeda, em Opinião, Valor Econômico).
O quadro evidencia que perdemos de vista a ideia do setor elétrico como um sistema integrado, onde os agentes são interdependentes física, política e economicamente.
A relação simbiótica entre geradores, transmissores, distribuidores e consumidores vem se deteriorando em decorrência de comportamentos oportunistas facilitados pela ausência de mecanismos de coordenação institucional adequados.
A crise de representação, que passa pelas entidades, também encontra expressão no setor público, a ponto do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), órgão de assessoramento do Presidente da República para formulação de políticas e diretrizes de energia, ter passado a tratar de temas do cotidiano da administração, aprovando resoluções e criando grupos de trabalho como se fosse uma autarquia comum.
Nesse cenário, parece urgente uma reforma que assegure capacidade institucional de coordenação para lidar com o processo de transformação do setor, cujo suprimento tem sido marcado pelo crescimento das fontes dispersas, de pequena escala e produção intermitente. Esse movimento tem mudado as características de consumo rapidamente e impõe elevado grau de complexidade à operação do sistema.
Complexidade exige coordenação, que por sua vez requer cooperação. A amplitude e a grandiosidade da nova escala das questões do setor e a experiência de crises passadas aconselham os agentes econômicos a renunciarem à tentação de agir individualmente.
É hora de todos assumirem suas responsabilidades e atuarem conscientes de que fazem parte de um sistema complexo, onde as unidades interagem necessariamente entre si e colhem benefícios ou prejuízos coletivamente.
Se soubermos cooperar para fazer a semeadura da reforma no tempo certo, ou seja, agora, evitaremos uma nova crise e preservaremos o interesse comum: desenvolvimento econômico, segurança energética e modicidade tarifária.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.