RIO — A decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) de validar a lei do Mato Grosso que restringe incentivos fiscais a empresas que aderem à Moratória da Soja gera uma incerteza no momento em que o Brasil tenta projetar globalmente seus biocombustíveis, sobretudo o biodiesel e o combustível sustentável de aviação (SAF, em inglês).
Para o ex-coordenador de Biocombustíveis do Ministério de Minas e Energia e um dos responsáveis pela elaboração do Renovabio, Paulo Costa, o país corre o risco de minar justamente o ativo ambiental que sustenta essa estratégia internacional.
“A perda da moratória, que já está há mais de duas décadas em vigor, é um contrassenso e gera um aumento de risco do país sobre a principal pauta de exportação”, afirma Costa, hoje CEO da House of Carbon.
Em entrevista à agência eixos, ele ressalta que a soja é um dos pilares do agronegócio e de geração de emprego e renda no campo.
Além de ser uma das principais matérias-primas para os biocombustíveis brasileiros, cuja demanda segue em expansão e precisa atender a critérios de sustentabilidade, em especial depois do Renovabio e programa Combustível do Futuro.
Na avaliação de Costa, qualquer sinalização de enfraquecimento de medidas de combate ao desmatamento na cadeia da soja no Brasil pode gerar perda de credibilidade e, consequentemente, maior custo ao país.
“Estamos falando de um aumento de sensibilidade de risco. Quando falamos de risco, falamos de custo. Um custo maior de compliance, sobre barreiras não tarifárias, e perda de rentabilidade do país”, completa.
Um acordo voluntário que está sob disputa
Criada em 2006, a Moratória da Soja é um acordo voluntário entre tradings, processadoras e organizações da sociedade civil para não comprar soja produzida em áreas desmatadas na Amazônia após julho de 2008.
É reconhecida internacionalmente como um caso sucesso ao conciliar expansão agrícola e queda do desmatamento.
A produção de soja na região amazônica, teve um aumento de 344% entre 2009 e 2022. Ao mesmo tempo, houve uma redução de 69% do desmatamento do bioma, no período.
Ou seja, a moratória não impediu a expansão, mas redirecionou o crescimento para áreas já abertas, incluindo pastagens degradadas.
Costa alerta, contudo, que o abandono do acordo por parte de alguns produtores tende a enfraquecer o combate ao desmatamento justamente no momento em que o Brasil busca internacionalizar seus biocombustíveis — seja o biodiesel para descarbonizar o transporte marítimo (biobunker), seja o óleo vegetal utilizado na rota HEFA para produção de combustível sustentável de aviação (SAF).
Uma das entidades mais vocais em defesa do moratória é a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), que preferiu não participar da reportagem.
Em declaração recente à Repórter Brasil, seu presidente-executivo, André Nassar, afirmou que as empresas associadas não querem romper com o acordo, embora defendam “algum tipo de aprimoramento”.
E alertou que, após a COP30, “todo mundo vai fazer zoom no Brasil” para avaliar biocombustíveis agrícolas — com foco especial nas críticas sobre competição com alimentos e desmatamento.
Uma das agendas brasileiras na cúpula foi o compromisso de quadruplicar a produção de combustíveis sustentáveis até 2035, incluindo biocombustíveis, como uma das alternativas para a transição para longe dos combustíveis fósseis.
Pressão de produtores matogrossenses
O Mato Grosso é o maior produtor brasileiro da oleaginosa, e projeta encerrar a safra 2025/2026 com cerca de 47 milhões de toneladas.
A lei mato-grossense, aprovada em 2024, impede que o governo estadual conceda incentivos fiscais a empresas signatárias da Moratória da Soja.
A medida foi celebrada pela Aprosoja-MT, que considera a moratória um “pacto ilegal”, contrário à livre concorrência e ao Código Florestal.
A decisão do STF, relatada pelo ministro Flávio Dino, formou maioria para validar a lei, mas suspendeu sua aplicação até 2026, reconhecendo tanto o direito do estado legislar quanto a necessidade de preservar o acordo ambiental, dando tempo para negociação.
Para Costa, porém, é difícil identificar qualquer vencedor.
“É muito difícil achar quem é o ganhador dessa iniciativa, quem vai se beneficiar com isso, se você está retirando benefícios e igualando, colocando tudo na mesma regra”, afirma.
“Pode ser um ganho relativo de curto prazo para quem está promovendo esse tipo de situação, que é avançar sobre o desmatamento legal”.
Sinais contraditórios em meio à diplomacia climática brasileira
A tensão ocorre quando o Brasil se tornou um dos países mais ativos na defesa global dos biocombustíveis.
No G20, no Corsia (aviação), na IMO (marítimo) e em discussões sobre metodologias de contabilidade de carbono, o governo tem insistido na inclusão de biocombustíveis de primeira geração, como biodiesel de soja, na transição energética.
O esforço se soma à busca de financiamento para o TFFF, fundo voltado à proteção de florestas tropicais, e o compromisso reiterado do país em atingir o desmatamento zero até 2030.
Para Costa, o retrocesso interno mina a credibilidade do país.
“É um tamanho contrassenso estarmos discutindo a moratória da soja, e ao mesmo tempo debatendo plano climático e defendendo o agro sustentável lá fora”, afirma.
Para além do grão, segundo Costa, existe o risco de perda do potencial econômico em cima dos atributos ambientais dos biocombustíveis.
Seja na venda de crédito de carbono do Renovabio (CBIOs), seja na internacionalização desse créditos, no sistema book and claim — em que empresas internacionais podem compensar suas emissões comprando créditos relativos a descarbonização feita no Brasil, incluindo via uso de biocombustíveis.
“Temos potencial de duplicar o volume de produção de biodiesel aqui dentro do país e conseguir colocar um produto de qualidade para fora. Sem contar com os certificados que são os atributos ambientais, com a possibilidade de vender CBIOs também e aí fazer um book and claim de forma mais global”, diz Costa.
Desmatamento indireto
Ele também lembra que sistemas internacionais como o EUDR, o novo regulamento europeu anti-desmatamento da União Europeia, penalizarão países e setores com maior risco socioambiental. Sem moratória, o risco do Brasil aumenta e, com ele, o custo para exportar.
A lei europeia proibirá, a partir de novembro de 2026, a entrada de commodities (soja, cacau, café, carne, madeira, óleo de palma, borracha) produzidas em terras desmatadas ou degradadas após 31 de dezembro de 2020.
“Na visão da União Europeia, tem três níveis de risco. O nível Brasil, o nível setorial e o nível individual. Sem moratória da soja, o risco de compliance que está no nível intermediário deve subir para o maior nível de risco. Isso aí é custo na veia. Estamos falando de custo setorial”.
“Isso vai depreciar o prêmio que vai ser pago ao produtor e penalizar toda a cadeia de valor”, pontua.
Costa explica que o enfraquecimento da Moratória eleva não apenas o risco direto de desmatamento, mas também o indireto (ILUC), cada vez mais levado em conta por grandes compradores e reguladores internacionais.
Esse impacto é especialmente sensível para o SAF, cuja rota HEFA baseada em óleo vegetal já parte de notas baixas em metodologias de carbono — o que limita a competitividade brasileira no principal mercado internacional, os EUA.
Além da Europa, mercados como a China, maior compradora de soja brasileira, também devem endurecer critérios, afirma Costa.
“A China quer se apresentar no mundo como grande potência de sustentabilidade. Ela pode chegar e fazer cotas que pagam um prêmio. O Brasil pode ser penalizado por não estar mais com a Moratória da Soja.”
Costa também alerta para o impacto social. Segundo ele, sem credibilidade de origem, ficará mais difícil incluir pequenos produtores em programas de rastreabilidade e certificação.
“É um processo de concentração de renda, não de distribuição de renda”, afirma.
