Dizem que o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode provocar um furacão no Texas. Essa é a essência do “efeito borboleta”, a ideia de que pequenas ações locais podem gerar grandes consequências a quilômetros — e até continentes — de distância.
No mundo dos biocombustíveis, existe uma teoria parecida, mas que gera muito mais controvérsia do que poesia: o ILUC, sigla para Indirect Land Use Change (Mudança Indireta do Uso da Terra).
O conceito surgiu com uma boa intenção. Ao reconhecer que a expansão agrícola para produzir biocombustíveis poderia, indiretamente, incentivar ao desmatamento em outros lugares, especialistas buscaram incluir esse “efeito invisível” no cálculo das emissões de carbono dos biocombustíveis.
A lógica é mais ou menos assim: se plantarmos mais soja para produzir biodiesel no Brasil, isso pode fazer com alguém, em algum lugar do mundo, precise abrir novas terras, talvez desmatando uma floresta, para suprir essa área que foi ocupada.
Resultado? O biocombustível, que deveria ser parte da solução climática, poderia, segundo essa visão, agravar o problema de emissão de gases de efeito estufa, por conta do desmatamento indireto supostamente causado. A ideia soa à primeira vista interessante, mas, como em muitas boas histórias, o enredo do ILUC é cheio de furos.
Uma maneira simples de entender o problema do ILUC é imaginar um jogo de dominó gigantesco: ao derrubar uma peça em um canto da sala, outra peça, distante e fora da nossa vista, também cai. Os modelos de ILUC tentam prever onde e como essas peças distantes cairiam com base em regras complexas sobre o comportamento do jogo.
O problema é que muitas vezes as peças estão dispostas de maneira diferente em cada país, e o vento, a força aplicada e até mesmo obstáculos no caminho (como políticas ambientais) podem mudar o resultado.
No entanto, políticas públicas baseadas em ILUC agem como se todas as salas fossem idênticas e os dominós sempre caíssem da mesma forma. Essa simplificação cria injustiças e distorções, penalizando quem monta seu jogo com mais cuidado.
O ILUC não é diretamente observável, ele é quantitativamente estimado por meio de modelos que simulam mercados globais de commodities agrícolas e usos da terra. O conceito se apoia em modelos matemáticos extremamente complexos e carregados de suposições.
Pequenas variações nas premissas desses modelos, como crescimento populacional, produtividade agrícola, políticas públicas, preços de commodities e elasticidades de oferta e demanda, podem levar a resultados divergentes.
É como tentar prever, com exatidão, aonde cada folha caída será levada pelo vento. As margens de erro beiram o incontrolável. Pequenas mudanças nas premissas do modelo geram resultados e conclusões contraditórias, e a “premonição” vai por “terra abaixo”.
A incorporação quantitativa rígida do ILUC em políticas públicas acaba sendo problemática, pois decisões com enormes impactos econômicos e sociais são tomadas com base em resultados modelados, e não em evidências empíricas robustas.
O “elefante” na sala
Não se pode ignorar que o desmatamento causado pelo avanço das fronteiras agrícolas é um problema sério e real, que ameaça ecossistemas inteiros e contribui para a crise climática.
No entanto, o conceito de ILUC, ao tentar antecipar impactos de forma indireta e hipotética, não ajuda a resolver essa questão de maneira concreta.
Ao penalizar biocombustíveis sustentáveis com base em modelos incertos, o ILUC desvia o foco daquilo que realmente importa: o fortalecimento da fiscalização ambiental, o ordenamento territorial inteligente e o incentivo a práticas agrícolas que recuperem áreas degradadas em vez de abrir novas fronteiras.
Em vez de atacar diretamente quem desmata, o ILUC cria uma rede de suposições que, na prática, não impede o desmatamento e ainda desencoraja investimentos em alternativas renováveis e sustentáveis.
O ILUC acaba penalizando produtores que fazem um trabalho sério, sustentável e localmente responsável. Imagine um agricultor que investe em alta produtividade, preserva reservas legais e usa áreas já degradadas para plantar biocombustíveis.
Ainda assim, ele pode ser penalizado porque, segundo algum modelo distante, sua plantação teria causado, indiretamente, desmatamento em outro país.
A abordagem do ILUC, em vez de estimular melhores práticas no campo, cria um ambiente de desconfiança generalizada.
Além disso, ela ignora movimentos positivos que vêm crescendo mundo afora, como o aumento da produtividade agrícola, o uso de tecnologias de monitoramento via satélite, certificações de cadeias sustentáveis e o aproveitamento de áreas degradadas para a expansão agrícola, iniciativas reais, mensuráveis e muito mais eficazes para proteger o meio ambiente do que cenários hipotéticos que tentam prever o futuro como se fosse um jogo de adivinhação.
Com os pés no campo
A ironia é que, ao tentar “corrigir” o mercado de biocombustíveis com base no ILUC, muitas políticas acabam favorecendo os combustíveis fósseis, atrasando a transição energética. Então, se o ILUC é tão problemático, qual o caminho?
Abandonar os cálculos de premonição e focar no que é concreto.
- Coibir o desmatamento, utilizar monitoramento via satélite para fiscalizar o uso da terra em tempo real, responsabilizando diretamente quem desmata e premiando quem preserva;
- Incentivar o uso de áreas degradadas para a expansão agrícola, transformando antigas terras abandonadas em polos de produção sustentável;
- Fortalecer certificações ambientais, como o RenovaBio, dando rastreabilidade às matérias-primas e biocombustíveis;
- Estimular a adoção de metas de desempenho de carbono, onde produtos com baixa emissão real de gases de efeito estufa sejam valorizados.
Essas são algumas propostas, de uma lista que deve ser expandida.
O conceito do ILUC merece crédito por aumentar a conscientização sobre um problema relevante, que é o desmatamento, mas ele não é a solução. A ciência e a política devem se concentrar na mitigação proativa do ILUC no mundo real, em vez de fatores ILUC reativos e teóricos.
O debate deve se concentrar ao chão firme, olhando para o que acontece de fato no campo, e não para o que modelos incertos imaginam que acontecerá. No fim das contas, o bater de asas de uma borboleta é lindo justamente porque é imprevisível. Já a política ambiental precisa de certezas mais sólidas do que o vento. Há muito por fazer para ampliar de forma sustentável a produção de biocombustíveis. Vamos adiante.
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