Os freios da transição energética

Os freios da transição energética. Na imagem: Geração centralizada de energia solar fotovoltaica e eólica onshore (Foto: Cornell Frühauf/Pixabay)
Geração centralizada de energia solar fotovoltaica e eólica onshore (Foto: Cornell Frühauf/Pixabay)

Pode-se imaginar o dia em que as pessoas vão sair e respirar fundo o ar puro da rua, enquanto as turbinas eólicas compõem a imagem do horizonte, antes de irem para casa tomar aquele café preparado a base de energia do teto fotovoltaico.

Se você ouvir a mídia e os mercados, este dia está chegando. Eis a era da energia limpa, a energia suja acabou.

É consensual e pacífico o fato de que estamos em plena transição energética e que ela deverá avançar nos próximos anos.

O desafio, porém, ainda é imenso. Com a rápida valorização das energias renováveis associadas à queda do valor das empresas de combustíveis fósseis, o mercado está avaliando que a transição do “sujo” para o “limpo” já ocorreu, é fato consumado.

No entanto, ainda não chegamos lá. Estamos no começo na travessia da ponte entre o fóssil e o renovável. Em 2019, as fontes não renováveis ainda respondiam por 89% da energia primária consumida no mundo (BP, 2020).

A transição enfrenta balizadores que retardam seu rápido avanço. Substituir metade dos fósseis da matriz energética mundial vai requerer um esforço econômico de dezenas (ou centenas) de trilhões de dólares.

Além disso, haverá pressão sobre a produção de matérias-primas ligadas à nova infraestrutura de energia “limpa”, jogo de poder geopolítico e reticência dos governantes para tomar medidas mais ousadas como programas mais agressivos de créditos de carbono.

Mineração a todo vapor

A corrida para criar painéis solares e turbinas eólicas não levou em consideração ainda os danos ambientais que essas fontes de energia também representam para o mundo.

Embora o sol e o vento sejam obviamente limpos, a infraestrutura de que precisamos para capturá-los não é. Longe disso.

A transição para as fontes alternativas ​​vai exigir um aumento substancial na extração de metais e minerais, com reais custos ecológicos e sociais. Brumadinho e Mariana conhecem bem o lado obscuro da mineração neste sentido.

Uma planta de um megawatt de capacidade de energia solar consome 70 toneladas de vidro, 56 de aço, 47 de concreto, 19 de alumínio, 7 de silício, 7 de cobre e 6 de plástico.

Uma planta de 50 megawatts de energia eólica necessita de 22.836 toneladas de concreto, 5.860 de aço e ferro, 681 de materiais poliméricos, 370 de fibra de vidro, 168 de alumínio e suas ligas, 87 de cobre e suas ligas, entre outros (IRENA, 2019).

A bateria de um Tesla S de 60 kWh tem 24 quilogramas de lítio, 24 de níquel, 24 de manganês e 13,5 de cobalto (números obtidos cruzando a capacidade da bateria com dados do Banco Mundial, 2017).

Estima-se que existem 1,2 bilhões de veículos no mundo. Supondo que um terço destes sejam elétricos nos próximos 20 anos, seriam consumidos no período 9,6 milhões de toneladas de lítio ou então 51 milhões de toneladas carbonato de lítio, um dos principais minérios a partir do qual se extrai o lítio. Outros tantos milhões de toneladas de diferentes minérios seriam necessários para eletrificar essa frota de carros.

A produção de todos estes materiais citados é intensiva em energia, água e vem de extrativismo mineral.

Ou seja, da exploração de recursos finitos e com profundas marcas socioambientais. Há também alguns problemas não endereçados em relação ao final da vida útil das baterias, placas fotovoltaicas e componentes dos geradores eólicos, que são de difícil e baixíssima taxa de reciclagem atualmente.

Segundo dados estatísticos, a maioria dos componentes hoje vai para aterros. Ao ganharem escala, este problema aumenta. Existe muita gente defendendo que no futuro eles serão reciclados em massa. Se considerarmos o que ocorre com os plásticos simples de fácil reciclagem, fica difícil de acreditar nessa hipótese pois os fatos contradizem o otimismo.

As principais reservas de metais importantes para essa transição, como o lítio e o cobalto, estão presentes respectivamente na Bolívia e no Congo (USGS, 2020).

Ambos carecem de avanços consideráveis na área de SMS durante a lavra dos minerais. Uma busca rápida na rede mostra que é comum trabalho em condições de escravidão, acidentes graves, garimpo ilegal, poluição de mananciais de água, entre outros problemas associados à produção mineral, especialmente em países de baixa renda per capta.

A exploração de recursos naturais é uma oportunidade para melhorar a renda da população. Mas estamos preparados para pagar mais caro por estes metais caso sejam garantidas melhores condições de trabalho para quem atua na linha de frente da mineração?

O custo da transição

As usinas solares mais recentes inauguradas na China tiveram custo de US$ 1 bilhão por cada gigawatt de capacidade instalada. Para que 25% da energia elétrica fóssil seja substituída por solar, seriam necessários 3.530 GW de capacidade instalada, o que demandaria US$ 3,53 trilhões de dólares em investimentos (quase duas vezes o PIB do Brasil).

Obviamente, os custos de produção deverão seguir caindo, mas o montante de investimento ainda será bastante elevado. A transição econômica depende da substituição gradativa das instalações fósseis que forem chegando ao final da vida útil, porém deve ser colocado nesta conta também o custo de descomissionamentos.

Outro exemplo a respeito do impacto econômico da transição energética seria a China substituir a queima do carvão por gás natural (GN). Segundo o consultor em O&G Ricardo Giamattey, diretor executivo da RHDG Consultoria & Treinamento, em valores constantes de 2019 a China precisaria investir US$ 2,3 trilhões em termelétricas[1] à GN para substituir 50% de sua geração de energia primária via carvão.

O equilíbrio econômico desse processo de conversão levaria aproximadamente 30 anos, considerando uma economia anual de US$ 80 bilhões devido ao GN possuir maior poder calorífico que o carvão.

Esse equilíbrio econômico poderia levar mais tempo no caso de o preço do gás na Ásia subir, o que é uma hipótese bastante plausível se considerarmos o GN como combustível da transição energética, uma vez que o aumento da demanda provavelmente tenha algum impacto no preço.

Há muitas outras questões a respeito do custo envolvido na criação da infraestrutura associada à transição, como expansão da rede elétrica, estrutura de recarga de veículos elétricos, substituição das baterias, depreciação dos bens etc.

A própria taxação crescente do carbono fóssil, apesar de necessária para conter as emissões e custear as fontes alternativas, trará desgaste político e impactos visíveis aos preços dos combustíveis fósseis.

Uma taxa fixa de 5 centavos de dólar aplicados sobre cada litro de gasolina e diesel produzidos mundialmente, baseando-se nos volumes de 2019, poderia gerar um custo adicional de 3,48 trilhões de dólares nos próximos 20 anos.

O efeito geopolítico da transição

Um elemento estratégico adicional que poderia dificultar a propensão dos países em migrar para fontes mais limpas, reduzindo a velocidade da transição, é a geopolítica. No caso da China, a conversão das usinas a carvão para GN a deixaria mais suscetível ao mercado externo e importações, reduzindo sua garantia de suprimento de energia uma vez que ela é autossuficiente em carvão e necessitaria importar cada vez mais GN.

Se o Brasil decidir fomentar a eletrificação da frota de carros, ficará mais dependente da importação de tecnologia e componentes associados aos veículos elétricos, que são importados quase que na totalidade.

A opção por híbridos e carros Flex, por sua vez, garantem maior independência energética, pois além de sermos produtores de etanol e gasolina já dispomos de infraestrutura e tecnologia nacional para ambos.

Os EUA influenciaram fortemente a geopolítica do petróleo no último século, disputando espaço com os produtores da OPEP. A migração para as fontes renováveis deslocará o poder geopolítico para novos agentes.

Garantir acesso as reservas minerais já é campo de batalha de muitos países, assim como inflama discursos nacionalistas nos detentores destes recursos assim como viu-se acontecer com o petróleo ao longo da história.

Ninguém sabe ao certo que impactos essas mudanças trarão, mas imagina-se que a busca pela independência energética continuará sendo ponto-chave de discussões, podendo retardar a transição.

Atravessando a ponte

A energia limpa está em alta, mas é bom lembrar que os combustíveis fósseis ainda não estão em declínio. A transição terá grandes desafios nos próximos anos.

Como dito, a criação da infraestrutura necessária para produzir energia “limpa” tem um potencial custo socioambiental que merece ser examinado de perto.

Já estamos bem à frente dos níveis sustentáveis ​​de extração mineral. Produzir 50% de energia limpa já indica um cenário extremamente desgastante, trazendo conflitos geopolíticos e novas consequências socioambientais que ainda não foram devidamente consideradas.

O esforço econômico da transição não é algo que possa ser negligenciado. O investimento para substituir o fóssil pelo renovável a nível mundial é trilionário. Vai ocorrer, mas não no tempo que se almeja ou gostaria, dando sobrevida a energia “suja”.

A imposição de fontes mais “limpas” tem que ser ancorada na viabilidade ou vantagem econômica, senão a transição aumentará a desigualdade ao invés de melhorá-la. Quem paga a conta por produtos mais caros é a camada mais humilde da população na maioria dos casos.

Qualquer taxação, subsídio ou imposição para produção de energia “limpa” tem que ser tecnicamente avaliada considerando as opções disponíveis e o ciclo de vida da tecnologia envolvida.

A velocidade da transição depende de um componente estratégico: onde o consumo e a produção se dão na mesma geografia haverá mais chance de avanço. Os interesses geopolíticos poderão acelerar ou frear as mudanças em curso por conta disso.

Outras variáveis exógenas importantes que interferem no tamanho do passo durante a travessia dessa ponte são os movimentos dos ciclos das commodities e taxas de juros da economia, que balizam o custo de implantação de projetos juntamente com a percepção de risco deles.

Esses fatores possuem menor impacto para países mais estáveis e para tecnologias mais conhecidas. Outro fator que pode alterar essa velocidade são os sistemas tributários que vem tornando-se mais agressivos ao longo das décadas para os combustíveis fósseis.

Os lindos campos floridos, com a brisa eólica e o café fotovoltaico ainda são apenas visões no horizonte da maioria dos países, não um fato consumado. O “limpo” é menos limpo do que se imagina, mas ainda assim é mais limpo do que o “sujo”.

Há muito ainda por se fazer e não vai ser barato. Novas tensões geopolíticas estão apenas começando. Vai um café “sujo” com brisa de carbono aí?

[1] Premissas: Preço carvão na China (2019) = US$ 86/ton; Preço GNL Ásia (2019) = US$ 10/MMBTU; Termelétrica GN = US$ 2.200/MWh de capacidade instalada

REFERÊNCIAS

BP Statistical Review of World Energy 2020. Disponível em: <http://www.bp.com/statisticalreview>. Acessado em Novembro de 2020.

IRENA. Measuring the socio-economic footprint of the energy transition: the role of supply chains. Disponível em: <https://www.irena.org/-/media/Files/IRENA/Agency/Publication/2019/Jan/IRENA_-Measuring_socio-economic_footprint_2019_summary.pdf?la=en&hash=98F94BCC01598931E91BF49A47969B97ABD374B5>. Acessado em novembro de 2020.

REN, F-R.; TIAN, Z.; LIU, J. SHEN, Y-T. Analysis of CO2 emission reduction contribution and efficiency of China’s solar photovoltaic industry: Based on Input-output perspective. Energy. Volume 199, May 2020.

USGS – Mineral Commodity Summaries. Disponível em: <https://pubs.usgs.gov/periodicals/mcs2020/mcs2020.pdf>. Acessado em novembro de 2020.

WORLD BANK. The Growing Role of Minerals and Metals for a Low Carbon Future. Washington: World Bank, 2017.

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