Coluna do Gauto

As transições do combustível marítimo – parte 2: do petróleo ao Net Zero

Do bunker ao Net Zero, o setor naval enfrenta o desafio de reduzir emissões, mirando nos biocombustíveis enquanto alternativas de longo prazo são desenvolvidas, escreve Marcelo Gauto

Navios irmãos 'Olympic' e 'Titanic' em 1912, atracados em Belfast, na Irlanda do Norte (Foto Robert John Welch/National Museums (NI)/Wiki Commons)
Navios irmãos 'Olympic' e 'Titanic' em 1912, atracados em Belfast, na Irlanda do Norte | Foto Robert John Welch/National Museums (NI)/Wiki Commons

O navio de passageiros Olimpic, construído em 1910, é bem menos conhecido do que seu “irmão gêmeo”, o Titanic. Enquanto este último naufragou tragicamente após bater em um iceberg durante sua viagem inaugural, o primeiro foi um navio que teve uma vida mais longa, operando de 1911 a 1935.

Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Olimpic serviu à Marinha Britânica, transportando tropas de variadas regiões do mundo para a Europa. Apesar de grande, o que o tornava um alvo fácil, seu grande trunfo era sua velocidade, considerada uma das maiores da sua época (até 21 nós, equivalente a 39 km/h), graças aos seus potentes motores movidos a vapor produzido nas suas 29 caldeiras à carvão.

O navio sobreviveu a alguns ataques e, de forma bastante inusitada, abateu um submarino alemão em 1918 após ter avistado o submarino e o atacado com canhões que haviam sido instalados no início da guerra. Talvez seja o único navio comercial na história que já afundou um submarino.

Chegada do transatlântico White Star RMS Olympic em Nova York, em 21 de junho de 1911, após sua primeira viagem transatlântica (Foto Paul Thompson/Library of Congress/Wiki Commons)
Chegada do RMS Olimpic, o “irmão gêmeo” do Titanic, em NY, em 21 de junho de 1911, após sua primeira viagem transatlântica

Finalizada a guerra, o navio foi docado e amplamente reformado. Dentre suas melhorias, estava a conversão das suas caldeiras para óleo combustível. A substituição do carvão reduziu substancialmente a tripulação envolvida com a operação de abastecimento das caldeiras, uma atividade altamente insalubre.

Com o passar do tempo, o óleo combustível, conhecido como óleo bunker, ou simplesmente bunker, tornou-se o combustível de referência na navegação comercial.

Para além do petróleo

Como descrito no artigo 1 desta série (As transições do combustível marítimo – parte 1: do remo ao óleo), a utilização de óleo combustível derivado de petróleo para movimentar navios representou uma série de ganhos frente ao carvão, reduzindo os custos operacionais, o impacto ambiental e elevando a segurança a bordo.

Apesar dos benefícios, reduzir a queima de combustíveis fósseis é hoje um imperativo que trará mudanças para o setor de transporte marítimo.

Ao longo das décadas de uso do bunker, sua especificação foi sendo aprimorada. Os regulamentos sobre emissões, especialmente, foram gradualmente reforçados, assim como ocorreu para gasolina e diesel. Os regulamentos relativos às emissões de poluentes por navios são deliberados pela Organização Marítima Internacional (IMO), uma organização especializada das Nações Unidas, a qual o Brasil é membro.

Para teor de SOx, por exemplo, a Marpol (Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios) determinou reduções da quantidade máxima de enxofre no combustível de 4,5 % para 3,5 %, em 2012, e para 0,5 % ou menos, em 2020.

Além disso, regulamentações ainda mais rígidas (0,1 % de enxofre ou menos) foram aplicadas aos combustíveis usados em Áreas de Controle de Emissões (ECA), como o Mar do Norte e a costa dos Estados Unidos. Ainda, os regulamentos de emissão de NOx foram ajustados três vezes desde 2005, reduzindo os óxidos de nitrogênio na atmosfera significativamente. 

Globalmente, o impacto ambiental dos combustíveis navais tem gradualmente reduzido. No entanto, as medidas ambientais não se limitam a material particulado, SOx e NOx, mas incluem hoje também os gases de efeito estufa (GEEs). A IMO ambiciona o Net Zero em 2050.

Variadas opções levarão à redução das emissões de GEE no transporte marítimo. Operação em velocidade de navegação reduzida, otimização de rotas, aplicação de novas tecnologias de motores, design da embarcação e propulsão são parte do pacote de alternativas. Entretanto, o Net Zero não é alcançável sem que ocorra mudanças no combustível. 

O bunker é hoje a principal força motriz dos motores de grandes navios mercantes e a sua substituição não é trivial. O leque de opções traz navios com propulsão elétrica carregados com baterias, biocombustíveis, hidrogênio, metanol e amônia. Cada uma das alternativas possui desafios técnico-econômicos.

A eletrificação de navios exige muito espaço para baterias, agrega peso e traz pouca autonomia se comparada ao que alcançamos hoje com a mesma massa de bunker. Hidrogênio, metanol e amônia requerem ser produzidos de fontes renováveis e têm hoje alto custo e desafios logísticos consideráveis. Eis que os biocombustíveis são a ponte-chave da transição.

“Os biocombustíveis podem fazer a ponte até que os e-fuels, soluções com base no hidrogênio, estejam confiáveis e completamente acessíveis tecno e economicamente”

O saudoso navio Olimpic, o “irmão” do Titanic, navegou pelos mares por quase 25 anos, tempo médio de vida de uma embarcação.

As soluções de baixo carbono para substituição do bunker precisam considerar a imensa frota de navios existentes, sua vida útil, logística de abastecimento, compatibilidade com a infraestrutura existente, entre outras questões. Assim, é natural que biocombustíveis drop-in, que podem ser misturados ao bunker em qualquer teor e não requerem ajustes nas máquinas ou infra existente, surjam como a principal alternativa.

No Brasil, já há disponibilidade de bunker com 24 % de biodiesel, conforme anúncio feito pela Petrobras, em linha com o observado em grandes polos mundiais, como Singapura e Roterdã.

Há quem advogue, caso da União Europeia, que os biocombustíveis vão atrasar a redução das emissões de GEE, porque os armadores, grandes empresas associadas ao gerenciamento do transporte marítimo, vão postergar a troca para navios movidos à metanol, amônia ou hidrogênio.

O raciocínio pode ser justamente o oposto: o não uso dos biocombustíveis posterga a redução das emissões, uma vez que as alternativas não estão prontas, enquanto eles já estão disponíveis e os navios prontos para o uso, posição defendida pelo Brasil.

Os biocombustíveis podem fazer a ponte até que os e-fuels, soluções com base no hidrogênio, estejam confiáveis e completamente acessíveis tecno e economicamente. Até lá, dentre um “mar de incertezas”, navegar é preciso. Os bios estão aí. Para quem quiser: “Terra à vista!”

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.


Referência

Wikipedia. RMS Olimpic. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/RMS_Olympic>. Acessado em janeiro de 2025.

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