Antes da covid-19 se alastrar pelo mundo, o consumo de petróleo era próximo dos 102 milhões de barris por dia (bpd), mas o mês de abril de 2020 marcou o afundamento histórico da demanda por óleo, sendo ela, em média, 18 milhões de bpd menor do que o valor registrado no ano anterior. A menor circulação de pessoas, por conta do combate à pandemia, impôs essa redução.
Os estoques de petróleo abarrotaram a tal ponto nos EUA que quem detinha contratos futuros com vencimento em 20 de abril não queria receber o óleo e, assim, os preços desses papéis negativaram pela primeira vez na história da indústria. Estavam literalmente pagando pra alguém levar o petróleo WTI naquela ocasião. Nenhum gestor de fundos vai esquecer este dia.
Passada a pior parte da tempestade (não quer dizer que ela tenha acabado), observa-se a recuperação em alguns mercados, como o chinês, que é um grande demandante de petróleo. Ainda assim, resta a dúvida se nós voltaremos aos níveis de consumo de óleo anteriores à pandemia ou se os novos hábitos de mobilidade, teletrabalho, consciência coletiva, entre outros fatores, reduzirão a demanda de forma permanente.
O pico do petróleo chegou? Teremos uma mudança estrutural no consumo de derivados de petróleo? É o que eu tentarei responder nas próximas linhas.
Para me ajudar nesta discussão, reuni a opinião de três expoentes profissionais que acompanham o setor de O&G, aos quais eu aproveito a oportunidade para agradecer pela gentil atenção e pronta resposta dada, as quais eu reproduzo em parte a seguir.
A Diretora de Estudos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Heloísa Borges Esteves, relata que “a demanda por petróleo retornará aos níveis pré pandemia, mas não é provável que seja uma retomada imediata. A nível global as estimativas atuais indicam que a demanda de petróleo pode retornar aos patamares de 2019 já no primeiro semestre de 2021. No Brasil, a demanda interna de petróleo é fortemente afetada pelo comportamento da demanda de seus derivados. Em estudo recentemente realizado pela EPE, foram desenhadas 3 trajetórias para retomada de demanda dos principais combustíveis, o que inclui diesel, gasolina, etanol hidratado, querosene de aviação e gás liquefeito de petróleo. A trajetória de base do estudo realizado indica que a demanda nacional de derivados deve retornar ao patamar de 2019 no final de 2021.”
Heloísa complementa que “é notório que a pandemia impactou o curto prazo de forma intensa, com mudanças comportamentais e até culturais. À medida em que se mantenha resiliente no cotidiano, pode alterar formas de organização social e permitir uma reestruturação de negócios/mercados. Muito da realidade pré-existente retornará gradualmente. Entretanto, alguns setores, como o de transportes, devem experimentar, em determinado grau, um rearranjo/uma dinâmica ainda pouco conhecida.”, pondera ela.
Outro profissional que acredita que os níveis de consumo retornarão aos patamares anteriores aos da atual crise é o Especialista em Energia e Diretor Executivo da RHDG Consultoria e Treinamento, Ricardo Giamattey. Ele avalia que “o comportamento da economia, e mesmos das sociedades, tende a reverter à média na ausência de quebras estruturais.”
“A crise de 29, que mudou os conceitos de política fiscal e monetária e do papel do Estado na economia, foi uma quebra estrutural; a segunda guerra mundial também, pois levou à elevação brutal da produtividade do capital e do trabalho, bem como inaugurou a era da geopolítica polarizada. A “Era da Informação” também foi uma quebra estrutural, na forma de as pessoas se relacionarem. Particularmente, não vejo a atual pandemia do Covid-19 como uma quebra estrutural” – complementa o executivo.
A recuperação, porém, não será igual em todos os mercados, segundo Giamattey. “Vejo o cenário econômico que virá bem parecido com o cenário pós segundo choque do petróleo – recessão e países “quebrando”. Mas somos mais produtivos hoje, acredito que algumas regiões puxarão mais rapidamente a recuperação da demanda por derivados de petróleo.
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Oferta não será o problema. Nas regiões mais “devastadas” economicamente, prevejo que em 2025 voltaremos aos níveis de consumo de 2019. Daí pra frente, o crescimento tende a reverter a média, que aponta para um crescimento vegetativo da demanda de petróleo. Neste cenário, energias renováveis foram deslocadas 10, 15 anos pra frente do ponto onde estavam, o capital para esses ativos vai sofrer escassez. E já se fala em usinas nucleares modulares. Em resumo, vejo uma recuperação da indústria já no segundo trimestre de 2021, e a partir de 2025 estaremos em regime, equilibrados. A indústria de O&G é uma das mais resilientes do mundo.”
Já para o estrategista e Diretor para as Américas no Downstream da IHS Markit, Felipe Perez, teremos algumas mudanças estruturais no consumo de combustíveis. “Aqui na IHS Markit vemos que haverá mudanças fundamentais e estruturais que provocarão uma demanda de combustíveis menor do que os níveis pré pandemia. Agora, o que você tem que olhar são dois cenários: curto prazo (próximos 3-5 anos) e o longo prazo (horizonte 2045 – 2050). No curto, prazo é possível que a demanda seja até maior do que vimos antes da pandemia por duas razões: o preço da energia fóssil estará deprimido e, mesmo com a discussão e políticas de transição energética, vai ficar difícil competir com ela; segundo, a recuperação econômica vai acelerar algumas atividades que consumirão mais energia para poder recuperar as perdas. Portanto, gasolina e diesel podem ter uma “sobrevida” nos próximos anos.”, segundo ele.
Perez faz ainda outras considerações importantes em relação ao comportamento do consumo no curto, médio e longo prazos. “Existem condições que também podem reduzir a explosão de consumo no curto prazo, mas que serão mudanças estruturais de longo prazo. Novos modelos de negócios, de trabalho (o trabalho remoto será mais aceitável, por exemplo) e novos serviços que podem alterar a conjuntura. Necessidade e adversidade são a mãe e o pai da criatividade – a era da tecnologia ficou ainda mais evidente com o lockdown.”
Há ainda questões globais a se considerar: “em que direção iremos em termos de liderança? Qual será o futuro das relações diplomáticas EUA-China-Rússia? Como ficam as eleições nos EUA? A globalização em xeque: quais serão os novos supply chains? Todos nos preocupamos com o meio-ambiente e com o que está acontecendo, mas estamos preparados para retornar para uma economia baseada em “barato made in China?”, questiona Perez.
Observa-se pelo exposto até aqui que temos muitas dúvidas ainda em relação aos caminhos que vamos percorrer nos próximos anos, mas há um certo consenso em relação à recuperação do consumo de petróleo e seus derivados no curto prazo. Faço coro ao time dos que acreditam que a retomada virá e que o consumo por petróleo e derivados se manterá crescente no curto-médio prazos.
Se olharmos a curva de consumo do petróleo dos últimos 50 anos (figura 1), observa-se que a cada crise a taxa de crescimento do consumo reduziu, porém, ela se manteve sempre crescente. Ademais, a atual crise é a primeira no século XXI a ocorrer num cenário de sobreoferta de óleo e baixos preços somados. As anteriores tinham como principal característica preços altos e/ou escassez de oferta.
Ok, a crise atual aparenta ser mais severa do que as anteriores, mas joga a favor do retorno do consumo a sobreoferta de óleo (com estoques cheios) a preços mais baixos do que os de antes da pandemia.
Figura 1 – Consumo mundial de petróleo de 1965 a 2020 (elaboração própria, a partir de dados da BP Statistical Review 2019)
Isso tudo me faz crer também que até o final de 2021 já teremos retornado aos níveis de consumo anteriores aos da pandemia, mesmo que algumas mudanças sócio-econômicas reduzam pontualmente a demanda por combustíveis em determinadas áreas, o cenário geral não aponta para uma mudança na estrutura global.
Países mais desenvolvidos, especialmente na Europa, já vêm apresentando redução no uso de combustíveis há mais de uma década, mas o consumo total de petróleo não parou de crescer mundo afora. Eu acrescentaria ainda que é preciso combinar todas estas questões com Russos, Árabes e Norte Americanos (EUA), pois a velha geopolítica do petróleo pode acelerar ou retardar a retomada. Mudanças estão ocorrendo e outras estão por vir, mas o “pico do petróleo” deve ficar para mais adiante. Este momento chegará, mas não será desta vez.