Internacional

Entenda como o leilão de petróleo na Guiana reacende disputa territorial de quase 2 séculos com Venezuela

Governo venezuelano contesta legalidade do 1º leilão de áreas exploratórias do país vizinho

RIO — O governo da Venezuela contestou, esta semana, a legalidade do primeiro leilão de áreas exploratórias de óleo e gás da vizinha Guiana. A reação de Caracas reacende uma disputa territorial histórica entre os dois países, que se estende desde o século 19, sobre uma região conhecida como Essequibo.

A Guiana reivindica o território de 160 mil km2 com base numa fronteira estabelecida em 1899 por um tribunal de arbitragem em Paris e que envolvia os Estados Unidos, Inglaterra e a Rússia (mediadora).

Já a Venezuela se baseia no Acordo de Genebra, assinado com o Reino Unido em 1966, pouco antes da independência da Guiana, e que fixou as bases para uma negociação (não concluída) sobre os limites territoriais.

A disputa é objeto de discussão na Corte Internacional de Justiça (CIJ, tribunal da ONU localizado em Haia).

A seguir, a agência epbr mostra o que está em jogo nessa disputa, em pleno século 21, e resgata o histórico do conflito que, num passado nem tão distante, já levou à interceptação, pela Marinha da Venezuela de um navio que fazia levantamento sísmico para a ExxonMobil no litoral guianense.

O que está em jogo

Essequibo é uma região em terra, no Planalto das Guianas, mas a disputa extrapola para o mar. A Guiana tem em sua zona econômica exclusiva (espaço de até 200 milhas náuticas do limite do mar territorial) soberania para explorar os recursos naturais.

A disputa por Essequibo ganhou novos contornos em 2015, quando foram feitas as primeiras descobertas de petróleo da ExxonMobil no litoral da Guiana e que hoje já somam mais de 11 bilhões de barris. A partir daí, a Venezuela reforçou sua reivindicação pelo território.

O mais novo capítulo dessa contenda foi a iniciativa da Guiana de leiloar 14 blocos exploratórios de óleo e gás, em águas rasas e profundas em seu litoral.

A Guiana recebeu, este mês, propostas por 8 dos 14 blocos offshore que ofertou em sua primeira rodada de áreas exploratórias de petróleo e gás.

Segundo a Reuters e a AP, petroleiras como ExxonMobil, Hess, CNOOC, TotalEnergies, Qatar Energy e Petronas marcaram presença no leilão. A expectativa é que os contratos, sob o modelo de partilha, sejam assinados em novembro.

Como a Venezuela reagiu

O governo de Nicolás Maduro classificou o leilão de ilegal, por ofertar áreas pendentes de delimitação entre os países. Alega que a Guiana não possui direitos soberanos sobre a região marítima em questão e que quaisquer ações nessas áreas constituem uma violação do Direito Internacional, a menos que sejam realizadas em comum acordo com a Venezuela.

Nesta quinta (21/9), a Assembleia Nacional, parlamento controlado pelo chavismo, propôs um referendo para que o “povo da Venezuela, por meio do voto direto e secreto, tome decisão e reforce os direitos inalienáveis da Venezuela e de seu povo sobre o território da Guiana Essequiba”.

A reação vem em um momento em que a Venezuela tentar retomar sua produção de petróleo, depois da derrocada nos últimos anos. Especialistas, no entanto, não acreditam que voltará aos mesmos patamares de décadas anteriores.

A resposta de Guiana

Em discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, na quarta (20/9), o presidente da Guiana, Irfaan Ali, disse que o país considera a posição da Venezuela “uma ameaça à paz e segurança regional e internacional, bem como aos parceiros de investimento da Guiana”.

Ali apelou para que o governo de Nicolas Maduro procure apenas “meios pacíficos” para resolver qualquer controvérsia, incluindo a arbitragem perante a CIJ.

As reações na comunidade internacional

O secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, condenou, na terça (19/9) o que chamou de “táticas intimidatórias” da Venezuela que “procuram minar o princípio da ‘boa vizinhança”.

Almagro reconheceu o direito da Guiana de receber investidores e citou que a Guiana deve preservar sua integridade territorial abordando o caso no Tribunal Internacional de Justiça.

No dia seguinte, um alto funcionário dos EUA, Brian Nichols, expressou o apoio de Washington à Guiana. O subsecretário de Estado para Assuntos do Hemisfério Ocidental, afirmou, em suas redes sociais, que os esforços venezuelanos “para infringir a soberania da Guiana são inaceitáveis”. 

Na sequência, o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, respondeu: chamou o apoio americano de “intromissão insolente” e acusou a Guiana de agir como “uma colônia”.

Como chegamos até aqui

A disputa territorial por Essequibo remonta ao século 19 (Conflitos Territoriais: A disputa entre Venezuela e Guiana Britânica pela região do Essequibo)

Em 2018, o Secretário Geral da ONU deu por esgotadas as possibilidades de intermediação e indicou que a Corte Internacional de Justiça seria o órgão competente para solucionar a questão.

Um dos últimos capítulos dessa história ocorreu em abril deste ano, quando a CIJ determinou que possui competência para decidir sobre a disputa pelo controle do território do Essequibo, num revés para Caracas. O governo venezuelano havia solicitado ao tribunal “declarar as pretensões da Guiana como inadmissíveis”.

A Guiana defende, na Corte, o esgotamento das possibilidades de conciliação por intermédio do Acordo de Genebra, de 1966.

O envolvimento do Reino Unido no caso é parte das reivindicações da Venezuela, mas a Corte já declarou que os britânicos não possuem obrigação em tomar parte na disputa, marcando outra decisão desfavorável a Caracas.

Para o pesquisador do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da FGV, Leonardo Paz, a oposição das autoridades venezuelanas ao leilão na Guiana é um aceno político, um reforço de sua retórica em defesa da soberania do território, sem maiores implicações práticas sobre o avanço da licitação do país vizinho.

“A Venezuela não pode fazer nada nesse momento. Até esse momento, Essequibo é uma região da Guiana… A discussão na Corte Internacional de Justiça segue, a Venezuela não perdeu na solução, mas tem perdido nos elementos que envolvem o julgamento final”, comentou.

Os precedentes do conflito

  • 1835 – O governo britânico começa a mapear mais profundamente o território guianense e delimitar suas fronteiras. A Venezuela protesta contra a demarcação – que definia a fronteira nas alturas da foz do Rio Orinoco. O local legítimo e justo, segundo os venezuelanos, seria na região do Rio Essequibo. Nasce então a disputa, acirrada nas décadas seguintes com o início da corrida pelo ouro por colonos ingleses na região;
  • 1888 – Venezuela rompe suas relações diplomáticas com a Inglaterra e pede auxílio diplomático aos EUA;
  • 1897 – Reino Unido aceita submeter a disputa a uma arbitragem internacional;
  • 1899 – Comissão arbitral decide conceder 94% do território disputado à Guiana Britânica;
  • 1962 – Venezuela apresenta um dossiê questionando a parcialidade da comissão arbitral de 1889 e declara, de forma unilateral, toda a região a oeste do Rio Essequibo como Zona em Reclamação;
  • 1966 – Uma nova comissão arbitral é instalada, por meio do Acordo de Genebra, com os britânicos, com prazo de conclusão de quatro anos. Três meses depois, Guiana se torna independente do Reino Unido;
  • 1970 – Esgotado o prazo da comissão, sem nenhuma medida acordada, Venezuela e Guiana assinam um novo protocolo, com o intuito de congelar a situação pendente por mais doze anos;
  • Década de 1980 – ONU passa a intermediar a situação;
  • 2015 – Descobertas de petróleo da ExxonMobil na Guiana reacendem disputa territorial;
  • 2018 Marinha da Venezuela intercepta navio sísmico que operava em nome da ExxonMobil no bloco Stabroek, na Guiana. Guiana solicita à jurisdição da CIJ para que se valide o acordo de 1899, sob a alegação de as possibilidades de conciliação por intermédio do Acordo de Genebra se esgotaram;
  • 2021 – Venezuela e Guiana trocam notas de protesto em meio a tensões sobre dois barcos pesqueiros guianenses capturados por militares venezuelanos na região.

Brasil e Guiana já estudaram usina juntos na região

Os dois países se aproximaram em 2009, durante o segundo mandato de Lula, para discutir a construção de uma hidrelétrica de 800 MW no Alto Mazaruni, na fronteira entre Venezuela e a Guiana.

De acordo com documentos diplomáticos vazados pelo WikiLeaks e publicados pela Agência Pública, o embaixador Rubem Barbosa, consultor do então ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, confidenciou que as razões políticas para a obra eram fortes.

O presidente da Guiana à época, Bharrat Jagdeo, via, no projeto, um “esforço importante para consolidar a reivindicação da Guiana sobre a área”, disse Barbosa, em telegrama diplomático.

Ainda segundo o documento, Barbosa disse ainda que Lula queria ver a Guiana e o Suriname na União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e via o investimento como uma oportunidade nesse sentido.