Ao longo dos anos, em maior ou menor proporção, têm sido comuns as críticas à intervenção governamental em preços de combustíveis. É um assunto conhecido. Não vamos falar disso aqui.
O que pouco se fala, entretanto, é outra espécie de intervenção, discreta, dissimulada, pouco transparente, mas igualmente ou mais nociva. É aquela que pode acontecer a partir do poder de controlar operacionalmente a ociosidade do parque de refino, especialmente em mercados monopolizados ou oligopolizados.
Como? Quando não há efetiva concorrência no refino de petróleo, reduzir deliberadamente a produção de derivados induz a um efeito perverso, capaz de alterar o regime de Preço de Paridade de Exportação (PPE) para a referência de Preço de Paridade de Importação (PPI). E como consequência, influencia todos os preços no mercado doméstico.
Como o volume importado afeta o PPI
Vamos elucidar. O custo unitário de importação varia de acordo com o volume importado, sendo que, pelo senso comum, com aquela lembrança do conceito de economia de escala, temos a percepção de que menor será o custo unitário quando o volume importado for crescente. Verdade? Não.
No caso de importação de combustíveis, não se aplica esse conceito de economia de escala. Ocorre o inverso. Vejamos.
Vamos considerar, como premissa, para ilustrar, que a cotação internacional da gasolina no golfo americano (USGC, em inglês) seja igual a US$ 1,00/litro. Como hipótese inicial, vamos supor que haja um déficit anual de 500 milhões de litros de gasolina no Brasil.
A alternativa do pólo supridor mais próximo seria, por exemplo, a Argentina, que poderia ter um excedente de 600 milhões de litros. Então, nessa situação, nosso déficit poderia ser suprido integralmente pelo país vizinho, ao preço da cotação internacional de referência, somado o frete internacional até o Brasil (hipoteticamente, 10 centavos de frete, incluso seguro e demais custos associados à importação).
Essa negociação já consideraria que, para a Argentina exportar, a primeira alternativa é o Brasil, caso contrário precisaria buscar mercado em um país mais distante.
Por isso, a cotação de referência na Argentina sofre um desconto pelas condições de mercado (5 centavos, por hipótese). Assim, o PPIBrasil = USGC + frete de 0,10 – desconto de 0,05 = USGC + 0,05 = 1,00 + 0,05 = US$ 1,05/litro.
Agora, em outra hipótese, vamos imaginar que nosso déficit de gasolina passe a ser de 1.000 milhões de litros. Com isso, precisaríamos importar 600 da Argentina, que é o pólo competitivo mais próximo, ao preço de US$ 1,05/litro. Mas ainda faltariam 400 milhões de litros.
Aí passa a ser necessário trazer gasolina de alguma refinaria no Caribe, por exemplo. E a qual preço? Ao preço da cotação USGC, mais o frete até o Brasil (vamos supor 15 centavos).
Nesse caso, para a refinaria caribenha, o desconto de paridade em relação à cotação USGC seria menor do que no caso da Argentina, ou mesmo nenhum, porque esse pólo tem como primeira alternativa o mercado norte-americano, não o Brasil.
Ademais, o frete marítimo é maior, em função da distância. Nessa hipótese, o PPIBrasil = USGC + frete de 0,15 – desconto de 0,00 = US$ 1,15/litro.
Cálculo do PPI médio, referência também para produção doméstica
Qual seria o PPI médio no Brasil? A média ponderada entre Caribe e Argentina? Não. Para todo o volume importado, será o valor caribenho de US$ 1,15, que é o custo marginal de expansão.
A parcela proporcionalmente mais barata, importada da Argentina, tende a ser absorvida como margem pelos importadores e pelos produtores nacionais, observada a lógica do custo de oportunidade. Esse “matematiquês” pode ser chato de compreender, mas quem opera esse mercado conhece muito bem.
Em uma terceira hipótese, supomos que o déficit brasileiro passe para 1.500 milhões de litros de gasolina por ano, ou mesmo 2.000 milhões de litros. Nessa situação, pode ser que esgotemos a disponibilidade do pólo supridor caribenho, inclusive em função da competição com a demanda dos Estados Unidos por aquelas refinarias.
Como consequência, o Brasil precisará buscar uma alternativa ainda mais distante, talvez alguma refinaria na África, ou mesmo, extrapolando, no sudeste asiático, como em Singapura.
Obviamente, o custo de frete marítimo e seguro será ainda maior (por suposição, 25 centavos). Além disso, deslocamos a cotação de referência do golfo americano para outra referência internacional (vamos supor CSingapura=1,02). O resultado seria um PPIBrasil = CSingapura + 0,25 = US$ 1,27/litro.
Da mesma forma como na hipótese anterior, este é o custo marginal de expansão da importação que será aplicado sobre todo o volume importado. E será também o valor de referência para toda a nossa produção doméstica de gasolina.
De forma ilustrativa, o gráfico a seguir mostra esse efeito de custo unitário crescente com o aumento do volume importado. Ou seja, quanto maior for o volume importado, maior será também o PPI aplicado ao volume de gasolina produzido no país. Todo o mercado brasileiro será precificado pelo custo marginal de expansão da importação.
Para as exportações, a lógica é inversa
Agora, ao invés de importador, e se o Brasil fosse exportador de gasolina? Qual seria a referência para precificar a produção doméstica? A resposta é simples: Preço de Paridade de Exportação.
Para uma refinaria que tem excedente de mercado, só há uma alternativa para não reduzir sua produção, que é buscar outro mercado. Por isso, precisa observar as cotações desse mercado.
Nessa situação, supondo que esse mercado seja o norte americano, vai precisar seguir a cotação USGC, mas considerando o frete de levar a gasolina brasileira até lá. Por isso, PPEBrasil é igual à cotação USGC, menos o frete de 0,15. O resultado seria US$ 0,85/litro.
Vejam a diferença. Mesmo perfeitamente aderente às cotações internacionais, em regime de livre mercado, passaríamos de uma referência de precificação de PPIBrasil = US$ 1,27/litro para PPEBrasil = US$ 0,85/litro. Esse seria o efeito de produzir mais ou menos nas refinarias brasileiras, com base nos valores considerados neste artigo.
Por sua vez, quando observamos a produção das refinarias brasileiras nos últimos anos, comparativamente à capacidade de refino, observamos aumento da ociosidade, como mostra o próximo gráfico.
Atualmente, Brasil opera com 25% de ociosidade
Atualmente, operamos com 75% da capacidade, ou 25% de ociosidade, o que equivale a aproximadamente 35 bilhões de litros de derivados que poderiam ser produzidos no país, sem construir uma nova refinaria, apenas utilizando a infraestrutura já instalada.
Decerto, cada refinaria tem seu perfil de refino, que é mais ou menos rígido em função do tipo de petróleo processado. Além da necessidade de paradas para manutenção e outros fatores que dificultam operar a 100% da capacidade o ano inteiro. Mas, certamente, haveria espaço para reduzir essa ociosidade, caso não houvesse concentração de mercado.
Cabe recordar que a capacidade de refino teve ampliações importantes entre 2013 e 2015, o que poderia ser um instrumento para elevar a produção doméstica e reduzir a importação de derivados. Nesse período, iniciou-se a operação da refinaria Abreu e Lima (RNEST), em Pernambuco, assim como ampliações/renovações pontuais de refinarias existentes.
- Leia em epbr: A subutilização do parque de refino
No entanto, estranhamente, na direção contrária à ampliação da capacidade, o volume de petróleo processado nas refinarias brasileiras diminuiu. Em 2021, o processamento foi similar àquele que acontecia em 2006, uma década e meia antes. Como consequência, reduziu-se a produção de derivados. Por quê?
Expansão do refino doméstico de derivados
Na gasolina, em particular, como consequência do não desenvolvimento da produção doméstica no mesmo ritmo do crescimento da demanda, houve uma inversão da curva em 2011, como mostra a próxima figura. De exportadores, passamos a ser importadores.
Sim, o Brasil já foi exportador de gasolina. Como se observa, os volumes importados variaram em torno de 2 a 4 bilhões por ano. É relevante ressaltar que esses volumes equivalem a tão somente 6% e 12%, respectivamente, da ociosidade do parque de refino brasileiro em 2021.
Tudo bem que nem toda a ociosidade esteja de fato disponível, em específico, para as correntes de nafta (produto intermediário do refino) que compõem a gasolina, dado o perfil de refino de cada refinaria. Porém, quanto seria possível expandir a produção de gasolina, entre outros derivados, a partir da maior utilização do parque de refino brasileiro?
A partir dessa inversão em 2011, convenientemente, para quem produz gasolina, todo o mercado doméstico passou a ser precificado com PPI ao invés de PPE, quando passamos a ser importadores, de acordo com o apresentado na próxima figura. Lembrando que, quanto maior o volume importado, maior é o PPI.
Maior ociosidade, maiores preços
Como resultado, todavia, mesmo com a paridade internacional, a população fica sujeita a preços mais elevados, tão apenas em função do aumento da ociosidade do refino. Pagamos por isso quando não há concorrência adequada.
A ociosidade tem, certamente, um custo, ninguém em tese gostaria de investir em algo para ficar com o negócio parado. Mas tal custo é menor quando a infraestrutura está em sua maior parte amortizada.
Além disso, mais relevante, o efeito principal é compensar esse custo com o ganho da mudança do PPE para o PPI, assim como induzir a uma maior importação para elevar ainda mais o valor do PPI.
A verdade inconveniente é o duro efeito do controle da ociosidade do refino sobre todos os preços dos combustíveis produzidos internamente. Em um mercado pouco competitivo, onde um único agente concentra a capacidade de refino de um país, pode ser uma estratégia bastante oportuna operar com ociosidade, na visão desse agente, em detrimento da sociedade como um todo.
Basta reduzir a carga de petróleo processada nas refinarias e a produção diminui imediatamente. Logo, o preço aumenta.
- Leia em epbr: A subutilização do parque de refino
Tudo isso é prejudicial ao desenvolvimento saudável do mercado. Qualquer novo empreendedor, nacional ou estrangeiro, ingressa com a sombra do risco da histórica intervenção estatal, mas também dessa outra intervenção, mais discreta.
É um movimento que pode afastar investimentos, prejudicar o ambiente concorrencial, passar a incorreta sinalização de preços para o consumidor e ainda provocar efeitos colaterais em outros setores econômicos.
O fato é que vivemos um paradoxo: importação de derivados mesmo existindo capacidade de refino ociosa, assim como excedentes de petróleo sendo exportado in natura. Manter essa situação pode ser interessante na visão do dominante no mercado, porque possibilita praticar Preços de Paridade de Importação, ao invés de Paridade de Exportação. Entretanto, não é visão de país.
A solução é vender as refinarias, não é segredo. É premente reduzir a concentração na produção de derivados. Deve envolver também as infraestruturas de internação e escoamento de óleo cru e combustíveis, como portos, terminais, tancagens e dutos.
Esse processo precisa estimular a desconcentração e múltiplos agentes, para também não corrermos o risco, enquanto sociedade, de transformar monopólio estatal em monopólio privado.
Ricardo Gomide é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Atuou por 18 anos no Ministério de Minas e Energia (MME) e atualmente coordena a assessoria técnica da Liderança do “Novo” na Câmara dos Deputados